Foi
há cerca de um ano que deixei de ver o Cadaxo. A Praça do Comércio
era o seu pequeno mundo. Rodeado de pombos, a quem distribuía
migalhas certamente trazidas da Cozinha Económica, sentado num banco
de madeira ou nas escadas da Igreja de São Tiago, era ali o seu
quartel-general. Apareceu por cá há volta de vinte anos. Como as
andorinhas, de tempos-a-tempos, partia em busca de outro clima mais
quente, ou para fazer uma desintoxicação ao álcool. Retornava
sempre ao ponto de partida. Era um sem-abrigo. Um rosto nosso (des)conhecido que vagueava entre nós. Sempre com histórias mirabolantes para contar. Cada um com um percurso de vida impressionante. Numa sina previamente anunciada, quase sempre morrem sozinhos.
Desta vez o Joaquim Cadaxo não voltou. O que lhe teria
acontecido? Teria morrido? Se foi assim, até na morte se cumpriu a
tradição: ou seja, se em vida foi um pária, para não variar, na
hora do último acto de corpo presente ter-se-á seguido um enterro
no maior anonimato. Não é a primeira que escrevo sobre a profunda
discriminação que os indigentes, os acantonados da vida sem
família, deveriam merecer algum respeito por parte das autoridades.
No mínimo, tinham obrigação de informar a comunidade do seu
falecimento. E para isso, tal como os ditos “normalizados”,
era fazer anunciar o seu desaparecimento na sua área de convivência.
A falta de informação de pessoas próximas é redundante e marca
toda a diferença no seu sepultamento. Havendo conhecimento do
falecimento, qualquer amigo ou conhecido pode contactar uma agência
funerária e accionar uma cerimónia fúnebre com dignidade para o
finado. Sendo o morto pensionista, a Segurança Social suporta o
custo de um funeral mínimo. Tanto quanto julgo saber, sempre que um
destes desprezados da
vida se vai e não
aparece nenhum familiar ou outro, o hospital -quando eles se
finalizam lá- com uma cerimónia simplíssima, encarrega-se das
exéquias. Pode até parecer que o que estou a escrever não
interessa nada. Pensarão alguns, afinal
se em vida ninguém lhe ligou patavina, o que importa o acto formal
na morte? De
facto, até porque é muito mais cómodo, poderemos todos pensar
assim. Acontece que, a meu ver, para estas pessoas que em vida foram
abandonadas, deveria haver por parte das autoridades um reforço da
dignidade no último acto inter-vivos. Se a Constituição da
República Portuguesa (CRP) prescreve que são “Tarefas
Fundamentais do Estado” “Promover o bem-estar e a qualidade de
vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a
efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e
ambientais, mediante a transformação e modernização das
estruturas económicas e sociais”
-Artigo 9º, alínea d) da CRP-, porque esquecem estas pessoas? Bem
sabemos que, na sua curta existência terrena, é muito difícil
orientar estes sujeitos, mas, ao menos na morte, atribuamos-lhe a
perdida dignidade de pessoa humana.
CURIOSO,
ATÉ NA MISÉRIA HÁ DESIGUALDADE
Numa
crónica assinada por alguém que não recordo o nome, na semana
passada, em todos os jornais locais, foi defendida a ideia peregrina de fazer perpetuar a
memória do “Carlitos
popó” no Largo das
Ameias, na Baixa. Para quem não sabe, o “Carlitos”
foi uma personagem típica, carismática, com deficiência, uma rosa brava num
jardim humano formatizado por iguais, que durante mais de meio-século
percorreu as pedras milenares da zona histórica. Era também
presença assídua na Procissão da Rainha Santa.
Como
ressalva, sempre considerei o “Carlitos”
como pessoa em vida e, tal como realizo sempre com outros que conheça
e que andem por aqui, faço sempre questão de estar presente no seu
funeral. Instituo isto porque entendo que se, enquanto são vivos,
lhe dou palmadinhas nas costas, na hora da sua derradeira partida
devo ter a mesma prossecução comportamental. Mas, sublinho, nesta
homenagem final, tudo acaba aqui.
Quero
dizer o quê com este arrazoado? Que, com todo o respeito pelas
iniciativas particulares de cada um, não me convidem a colaborar em
exageros. E a cidade é peculiar em excessos a homenagear “cromos”.
Relembro que o “Taxeira”,
um figurão popular entre a academia nas décadas anteriores a 1980,
está memoriado numa rua da cidade. Posso não ser unânime, mas
ninguém me tira da cabeça que estamos no campo do absurdo.
Portanto,
pelo exposto, está de ver, numa desigualdade gritante para uns vai tudo, para
outros, mais anónimos e que não caíram nas boas graças de muitos,
nem um funeral nobre têm direito.
Vale
a pena pensar nisto?
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