Durante
muitas décadas, tantas que já lhe perdemos a conta, foi a
“portageira” de serviço diário nos acessos que dão
entrada e saída para a Rua Visconde da Luz. Nos doze meses do ano
consecutivamente, Maria Adelaide, com um lugar cativo de relevo
marcado a fogo na nossa memória colectiva, conquistou para sempre a
nossa reverência e simpatia. Na Primavera e Verão, como diligente
funcionário público, sempre sentada no lancil de pedra em frente ao
antigo BES, a sua função era vender tremoços, amendoins,
pinhoadas e pistachos. Durante o Outono e Inverno, por entre nuvens
de fumo e aroma de desencadear apetite, ali a dois passos, comerciava
castanhas assadas na Praça 8 de Maio.
No
decorrer da sua longa vida experienciada em fatias de contrariedade,
o tempo tornou-a azeda e resiliente e fez dela uma mulher teimosa,
daquelas pessoas que faz sempre o que lhe dá na real gana sem
aceitar ordens para se render de quem quer que seja. Sempre com a
espada de Dâmocles a balouçar sobre a sua cabeça em representação
da miséria, que tão bem conheceu ao longo dos três primeiros
quartéis do século XX, a labuta, numa entrega obsessiva
existencial, foi sempre o azimute para não cair nas suas garras.
Como tantos nascidos da sua geração, talvez sem se dar conta
transformou-se numa viciada em trabalho. O estar permanentemente
ocupada era a a doença e a terapia.
Maria
Adelaide nasceu em Março de 1925, ano de grande penúria onde a fome
marcava os dias neste Portugal esconso e atrasado, estava a “Revolta
dos Generais” lá para os lados de Lisboa a ser planeada para
reivindicar os interesses dos militares. A bancarrota instalada desde
1892, que abriria a porta a António de Oliveira Salazar como
ministro das finanças no ano seguinte, em 1926, atirara o país para
o desamparo económico numa espécie de “salve-se quem puder”.
Até
2016, quando Adelaide comemorou 92 anos, com o corrimão de pedra
improvisado a servir de assento e montra de especiarias, manteve-se
firme no seu lugar de vendedeira inveterada junto ao Café Santa Cruz.
Não fosse uma queda infeliz, que ocasionou duas intervenções
cirúrgicas no ano seguinte, em 2017, e ainda hoje poderia estar no
seu posto de sempre a linguarejar entre curvas e contracurvas do
impropério. Com o seu desaparecimento, assim como outros, vai um pouco de nós.
Sem
se dar conta, pela elevada idade, pelas rugas profundas que sulcavam
um rosto envelhecido, sem se subjugar às dores persistentes que
atormentavam o frágil corpo, transformou-se em ícone, uma figura
sagrada, e a sua imagem, como embaixadora de produção contínua,
estará espalhada pelo mundo inteiro. Entre nós, para sempre, fará parte da nossa galeria de notáveis "Rostos Nossos (des)conhecidos".
A
começar pelo campesino que lavra esta leira de prosa, que a retratou
em largas dezenas de fotos e outros tantos textos narrativos e poéticos, quer
turistas do mundo, quer passantes locais, todos nos “servimos”
da sua imagem disponível e peculiar. Até quando, em 2012, foi
apanhada pela Polícia Municipal a vender baralhos de cartas e
bugigangas. Como estava licenciada para comerciar apenas produtos
para alimentar o estômago - e o jogo e os cacarecos são para a alma
– foi-lhe levantado um auto, cuja coima ia de 50 a 90 euros. Foi
assunto que serviu para abalar as calmas águas políticas do burgo.
Por
ter sofrido há dias uma nova queda, fracturando a perna esquerda,
Maria Adelaide está agora, novamente, internada na Unidade de
Trabalhos Continuados Fernão Mendes Pinto – Unidade de Saúde de
Coimbra, quarto 121, na Avenida Fernão de Magalhães. Quando a
visitei ontem estava muito tristonha e sofrida. Muito bem tratada e
acarinhada pelo pessoal da instituição de saúde, parece ter
tratamento VIP. Embora com falta de ouvido e a ver menos, tendo em
conta os seus quase 95 anos, a nossa mulher-resistência está muito
bem. Comecei por lhe perguntar se me reconhecia. Em resposta
automática, estendeu os braços e, no meio de um choro de saudade,
exclamou: “O meu amigo!”
1 comentário:
E a D.Teresa Pena, sabe alguma coisa dela?
Provavelmente terá já falecido, pois encontrei-a em Dezembro de 2017, já bastante debilitada, também numa unidade de cuidados continuados em Telhado.
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