(Imagem de arquivo)
Decorria
a década de 1980 a bom ritmo, nem me passava pela cabeça que anos
mais tarde enveredaria pelo mesmo ramo de negócio, quando, pela
primeira vez, travei conversa com o Carlos Manuel Dias no Largo do
Romal, no rés-do-chão de um prédio que, cerca de cinco anos depois
e ainda nos gloriosos anos oitenta, viria a ser demolido pela
autarquia para alargar uma das mais pitorescas pracetas da Baixa de
Coimbra. Após o desmantelamento do prédio passou para o Pátio do
Castilho, junto ao Arco de Almedina. Como ficava mais próximo do meu
estabelecimento, na altura, volta e meia lá lhe fazia uma visita e
comprava uma velharia. Sempre senti uma fascinação absolutamente
incontrolável por tudo o que sejam peças antigas. Ao longo da
minha vida, lembro-me, sempre que em viagem encontrava uma placa a
indicar coisas velhas, imediatamente parava. É inevitável esta
ligação a objectos que marcaram o passado passado e passado
recente. Basta apenas que sejam originais e singulares.
Nunca
foi acessível estabelecer conversa com o “senhor Carlos do
Velhustro”, como sempre foi carinhosamente conhecido. Homem de
argumentos eloquentes, convicções poderosas e ideias feitas acerca
de tudo o que o rodeava, não era fácil condescender e apanhar a sua
flexibilidade. Sem aparente filiação ideológica, não era fácil
de chegar ao pensamento crítico interior que o movia. Talvez fosse um
anti-sistema ou, sei lá, um anti-poder instituído, no sentido que,
embora não o afirmasse claramente, sabia que toda a autoridade
corrompe e pode ser corrompida.
Com
o seu bigodinho fino por cima do lábio superior, numa mistura entre
a
sedução de Errol Flyn
e a intransigência do escritor filósofo e romancista Albert Camus
em
aceitar
de
ânimo leve as correntes existencialistas e marxistas,
a
verdade é que, fosse pela imagem, fosse pela sua idiossincrasia,
Carlos Dias - sem
o ser
- foi sempre um “intelectual”,
um
figurão
respeitado na sua área profissional e até pelos presidentes
camarários que se foram sucedendo na cidade.
Nos
últimos
anos da década de 1980
voltou novamente ao Largo do Romal onde
ainda hoje mantém o estabelecimento identificado, com placa alusiva,
como “Velhustro”.
Juntamente
com
o apoio da direcção da Escola Silva Gaio e o do Departamento da
Cultura, da Câmara Municipal de Coimbra, em 1991, fundou a “Feira
dos Trastes”,
na
Praça do Comércio.
Mais
tarde este
popular certame passou a chamar-se
“Feira
das Velharias de
Coimbra”
e
ganhou uma Comissão de Feira composta pela Câmara Municipal de
Coimbra/Departamento de Cultura, Junta de Freguesia de São
Bartolomeu, Polícia de Segurança Pública, Escola C+S Silva Gaio,
Grupo de Arqueologia e Arte do Centro e o “Velhustro”
- como
se sabe, a mando da edilidade, este popular evento adeleiro,
em Julho do ano passado, foi
transferido
para o Terreiro da Erva. Notoriamente a extinguir-se aos poucos, em
farrapos de memória
- o Diário de Coimbra deste último Domingo, em bom trabalho jornalístico de uma
página, disso dava conta -, era
bom saber se as entidades constituídas em Comissão de Feira foram
consultadas. Uma coisa tenho a certeza: fosse o dono do “Velhustro”
mais novo e estivesse de boa saúde jamais permitiria que fosse feita
uma trasladação tão absurda da menina dos seus olhos.
Prestes
a comemorar 95 anos, apesar disso e da sua natural fragilidade
inerente
ao peso da vivência,
o estimado Carlos Dias conserva a sua peculiar lucidez. Segundo um
familiar directo com quem falei, “sofreu
recentemente uma pequena cirurgia mas está muito bem! Devido
ao frio que se tem feito sentir, e para não se constipar, mantém-se em
casa. Mas,
embora tenha de ser acompanhado, um dia destes vai andar por aí,
pela Baixa.”
Pelo
significado, pela importância carismática que marcou a ferros a
nossa memória colectiva contemporânea, o nosso amigo da
arte vária,
por direito próprio conquistado, merece fazer parte da nossa galeria
“Rostos Nossos (Des)conhecidos”. Muita saúde, e muitos anos de
vida, senhor Carlos Dias!
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