Encerrou neste último Sábado o Eldorado, na
Rua Adelino Veiga. A história desta grande catedral está associada ao período
áureo da Baixa comercial e à sua decrepitude. Sob orientação de Manuel Ribeiro,
nasceu na Rua Eduardo Coelho, em 1970, e por lá se manteve até que, por alturas
de 1974, um grande incêndio dizimou completamente todo o seu recheio e
incluindo o edifício. Passou então para a rua do poeta morto, onde se manteve
até agora. Sobre direcção do Ribeiro até 1991 e após esta data passou para propriedade
de um grupo de comerciantes indianos de Lisboa. Quem veio gerir o
estabelecimento foi o Asslam, um português nascido em Moçambique. Como
curiosidade, como nunca conheci mais ninguém à frente da loja, sempre pensei que
este homem simpático de ascendência muçulmana era o proprietário.
Com a abertura das primeiras grandes
superfícies, o Continente e a Makro, em 1993 esta grande universidade comercial
levou o primeiro abanão. A partir de 2005, por parte da sua gerência de Lisboa,
passa a ser acompanhado com preocupação. Por volta de 2010 entra em morte
clínica assistida. Em Janeiro de 2012 foi anunciado o eminente desligar das
máquinas quando o seu proprietário colocou toda a existência da loja em
liquidação total, dispensou praticamente todos os funcionários e deixou o
Asslam -casado com a Clara, uma conimbricense e também trabalhadora numa loja comercial da Baixa. Tudo indicava que só restava a memória.
E SE EU ARISCASSE?
Depois de mais de vinte anos à frente dos
destinos da loja –para lá veio jovem, ali contraiu matrimónio, ali recebeu a
notícia do nascimento do seu primeiro filho-, aquele ponto de venda, para além
de ser o espírito da sua existência, era parte integrante da sua família. Em casa,
inevitavelmente durante todas as refeições falava-se do Eldorado como se,
fazendo jus ao nome, continuasse a ser o sonho idealizado e realizado do menino
que nasceu em Moçambique. Especulando, perante o anúncio do fecho, certamente
numa daquelas noites de preocupação em que o sono teima em vir, a ideia
bombardeou-lhe a mente: “e se eu arriscasse
em ficar com o Eldorado? A Clara trabalha no comércio e tem muita experiência e
pode ajudar-me. Amanhã vou propor-lhe o plano para vir trabalhar comigo!”
A Clara concordou e despediu-se
do emprego onde exercia há muitos anos. E em Janeiro de 2013, sem funcionários,
marido e mulher assumem o comando do Eldorado.
O QUE É QUE CORREU MAL,
ASSLAM?
Teoricamente este projecto deveria ter dado
certo. O que falhou? Responde Asslam: “Tendo
em conta a área e a localização do espaço até considero a renda que pago acessível.
O problema é que não se vende. E não é por se dizer que a Rua Adelino Veiga
está morta. Isso é um mito! É a Baixa, no seu todo, que está moribunda. Desde
há vários anos que há um completo desprezo político por esta zona. Não vejo os
políticos a fazerem alguma coisa para alterar o actual situacionismo. Os
portugueses, na generalidade, não têm dinheiro para comprar e se calhar, a
maioria dos que podem, escolhem os shopping’s em detrimento do comércio
tradicional. Eu tinha clientes que moram cá e que me diziam que há vários anos
que não vinham à Baixa. Assim, com este isolamento, como é que se podem manter
abertas as lojas? O mercado interno nacional não funciona. Cerca de 80 por cento dos
meus clientes eram turistas –mas isolados, que largavam o grupo e se
aventuravam à pressa a comprar. Antes que nos afundássemos ainda mais decidimos
encerrar.
Não consigo perceber como é que uma urbe que tem uma Universidade tão
antiga e reconhecida em todo o mundo não forma os seus alunos para defenderem a
cidade. Coimbra apanha constantemente pancada e não responde. O cidadão comum
também não quer saber e não a resguarda. Coimbra foi desbaratando importância.
Basta ver o número de deputados que perdeu na Assembleia da República.”
E DOMINGO? VAIS VOTAR?
Assim, de chofre, coloquei a pergunta aos
dois. Primeiro, respondeu Asslam: “Não,
não vou votar! Estou muito desconsolado com este sistema. Votar para quê? Isto
só lá vai com uma grande revolução! De outra maneira não vamos lá! Sinto-me
traído!”. A seguir desabafa a Clara: “Eu
também não vou votar! Estou demasiado ferida e descontente para o fazer. Não
vale a pena!”
E COMO É FICAS, ASSLAM?
Apesar de prometido pelo actual Governo –que chegou
a mandar promulgar o decreto-lei nº 12/2013, de 25 de Janeiro e ter alterado as
contribuições para a Segurança Social- o regime de jurídico de protecção social
na eventualidade de desemprego dos trabalhadores independentes com actividade
empresarial, com aplicação em Janeiro de 2015, os empresários em situação de
insolvência continuam sem apoio. Segundo a CPPME, Confederação Portuguesa das
Micro, Pequenas e Médias Empresas, nove meses depois de ter entrado em vigor e
1900 empresários terem requerido o apoio, apenas 145 estão em apreciação. Até
agora nenhum pedido foi satisfeito.
À minha
pergunta, com a voz embargada, respondeu Asslam: “Ficamos muito mal. Muito debilitados. Como é óbvio saímos com dívidas –não
leve a mal não entrar muito em pormenores. Entende, não entende? Para piorar
somos os dois a ficar sem trabalho. Eu tenho 47 anos e a Clara 45. Somos novos
para desempregados e velhos para conseguirmos trabalho. Temos um filho. Este é
que nos preocupa. Ainda não sabemos o que vamos fazer amanhã. Para nos valer
nesta aflição, não temos família para nos ajudar a nível financeiro nem alguém
a quem possamos recorrer –só se for ajuda psicológica. Há dois anos eu tinha
direito a desemprego, agora não sei como vou viver. Está certo acontecer isto?
Só porque tentei não me acomodar?”
E PASSA UMA SENHORA…
Estou a conversar com o Asslam e a Clara na
rua, em frente às montras agora mudas e sem brilho. Em andar ligeiro, passa uma
senhora, olha as grades corridas e estanca subitamente. Volta atrás e,
encarando o casal, interroga: “Encerrou o
estabelecimento?!? Ai, não me diga!? É uma loja que faz muita falta!”.
Sem comentários, a Clara mirou o
marido e eu fixei os dois. É assim que reagem os munícipes.
TALVEZ VÁ PARA O
ESTRANGEIRO…
Sem apoio,
embora não tivesse colocado a questão assim, provavelmente o Asslam gostaria de
ser, neste momento, migrante do Médio Oriente. Como no seu corpo, por
hereditariedade, corre sangue muçulmano, é bem possível que haja uma ou várias
instituições a ajudar este casal. Vamos todos esperar para ver.
“É possível que vá para o estrangeiro. Estamos a ver a que nos podemos
agarrar, ver o que acontece amanhã.”
Sem comentários:
Enviar um comentário