(Imagem da Web)
Ontem, sexta-feira, no café do centro da
cidade um grupo de mulheres sentadas numa mesa falava alto e bom som: “a “Leta” –diminutivo truncado- está toda
pisadinha. Esta noite levou um enxerto do namorado, que é guarda prisional, e
que a deixou num estado lastimoso. Segundo ela me contou, encostando-lhe a arma
ao peito, ele ameaçou matá-la se ela denunciar esta agressão. Olhe que ele teve
o cuidado de a amassar no corpo mas deixou o rosto sem marcas para que não
fossem visíveis. Às tantas é o que ele faz lá na cadeia com os presos por que é
responsável?! Coitada!”
Porque frequento este café há muito tempo e
conheço praticamente todos os seus clientes identifiquei imediatamente a
senhora em causa. A “Leta” é uma mulher
linda, de 46 anos de idade e com uma história de solidão maior que o túnel do
Canal da Mancha. Como tantos de nós, certamente com uma infância difícil onde
não teriam faltado maus-tratos de violência física e outras, esta rapariga
carente de afecto, ao longo da sua vida e como passarinho em busca de colo, vai
procurando aconchego nos braços de namorados temporários. Porque, mais que certo,
só tenha olhos para a remela ou como a desdita raramente imbrica na boa-sorte,
tanto quanto julgo saber, sempre lhe calha no sorteio homens que apenas se
querem servir do seu corpo bem modelado e nada mais. Quanto às amigas, algumas
mais velhas do que ela, cheias de rugas e um pneu incomodativo, só o facto de
estarem sentadas ao lado de uma boneca assim desencadeia estigmas e medos,
invejas e um ostracismo não declarado. A amizade desta gentinha é do pior, do
mais primário que existe dentro de nós. Como é habitual nestes casos e numa
hipocrisia mesquinha fazem-se muito próximas e parecem meter a “Leta” pelo coração dentro.
Então ontem, estava o Sol a recompor-se de um
dia longo e fastidioso, em face do “cortar
na casaca” da vítima desta sociedade dissimulada onde o que é preciso é
assunto para tema de conversa e nada mais, à minha chegada uma das mulheres mal
me viu e atirou logo: “já sabe a última? A
“Leta” levou um enxerto, de caixão à cova, do namorado. Coitadinha! Há pessoas
que não têm sorte nenhuma!”. Como? Perguntei. Um absurdo desses, e ninguém
vai denunciar essa agressão? Respondeu uma delas: “isso é um problema dela. Ela que faça queixa!”. Enfatizei, nesse
caso faço eu a participação à polícia. Isto não pode ficar assim! É demasiado
aviltante para nos calarmos! Todos ficamos com a nossa quota-parte de
responsabilidade moral se ocultarmos. Diz uma
delas, “não me ponha como testemunha que eu nego tudo! Eu não vi nada! Não
quero saber de nada! Não é nada comigo!”
Hoje de manhã voltei ao café e encontrei a “Leta”. Às perguntas sobre o assunto, mostrando-me
um braço com uma grande equimose negra, as costas e uma das coxas completamente
escurecidas com uma rosácea avermelhada e escurecida, respondeu afirmativamente
de “que de facto tinha sido sovada e que
o seu namorado agressor lhe tinha mostrado o coldre, presumivelmente com a arma
lá dentro, e que lhe dissera que se ela denunciasse isto que a matava e se
suicidava de seguida”. Pedi-lhe os seus dados e disse-lhe que iria fazer
uma participação na polícia. Enquanto me cedia os nomes e moradas ia interrogando:
“ele vai ser prejudicado por isto? Ele
pode ser despedido por eu falar? E se ele me mata? Ele disse que me matava se
eu desse com a língua nos dentes!”
Saí e dirigi-me à PSP. Enquanto estava a prestar
declarações perante o agente, recebi vários telefonemas da “Leta” para que não apresentasse queixa.
Em grande aflição, misturado em choro compulsivo, implorava: “por favor, senhor Luís, não faça a participação.
Ele mata-me! Não faça! Não faça! Se o senhor fizer eu vou atirar-me debaixo do
comboio. A minha vida não vale nada! Por favor… por favor!”
Ainda não tinha terminado o
processo de inscrição recebi outro telefonema. Era de uma outra “amiga” a quem,
certamente, a “Leta” fora pedir para me ligar. “É o senhor Luís? Interrogou a voz feminina. É verdade que vai apresentar queixa em nome da “Leta”? O que é que o senhor
tem a ver com isso? Se ela não quer o senhor só tem de respeitar e mais nada.
Está a ouvir?”
Eu desliguei-lhe o telefone e não
lhe respondi sobre a razão de estar ali. Mas vou replicar agora. Estava ali
pelas 38 mulheres mortas às mãos de sacanas
que não valem uma merda, assassinos e
cobardes, vítimas que morreram no ano passado às mãos destes escroques. Estava ali em
memória da minha mãe que enquanto criança tantas vezes presenciei levar
bofetadas do meu pai e nada fiz, ou não pude fazer. Mas isto foi há 50 anos e,
pelo tempo passado e cultura da época, até já perdoei ao meu desaparecido
criador. A estes cobardes frustrados que agridem mulheres com esta selvajaria não
posso deixar passar. Temos pena!
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6 comentários:
Parabéns pela coragem!
É à sombra do medo de ter medo, da solidão, do vazio interior, que tudo acontece no silêncio, com a cumplicidade igualmente silente de quem sabe e nada faz.
É por isso, por lutares contra o silêncio, que tenho que te abraçar a partir de onde estou.
Obrigada, Susana!
Obrigada, Susana!
Obrigada, Susana!
Obrigado, São Rosas!
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