ESCRITO A QUATRO MÃOS.
POR MÁRCIO RAMOS E LUÍS FERNANDES
Pujante, cheia de alegria, vivi a minha infância na Baixa
onde podia não haver muitas iniciativas mas certamente havia mais movimentação
de pessoas.
Hoje vemos uma zona com muitos prédios degradados e quase vazia de
moradores, a essência que constitui o fulgor, a vida de uma comunidade.
Também por parte dos comerciantes deste bairro comercial há muitas culpas
por se ter chegado onde chegou. Pela passividade e deixa-correr, pela falta de
coragem em dar a cara e incapacidade de sublevação, as mais apontadas são o
fecho do trânsito nas Ruas Visconde da Luz e Ferreira Borges e a abertura de
centros comerciais. Ao longo dos últimos quinze anos, os negociantes têm
aceitado todas as decisões políticas como desígnios de Deus.
Coimbra até ao final da década de 1980 foi uma cidade parcialmente
industrializada. Só para referir algumas grandes empresas desaparecidas,
tivemos a Fábrica da Cerveja Topázio, a Triunfo, a Estaco.
O fecho destas indústrias, pelo desemprego criado e penúria financeira,
levou a que menos pessoas consumissem na zona comercial.
Depois foi o progressivo encerramento de serviços, pontos de atracção que
obrigavam as pessoas a vir e a movimentar-se no Centro Histórico. Um dos mais recentes,
há poucos anos, foi o Correio do Mercado –em criança, como num bailado bem
ensaiado, lembro-me do corrupio de pessoas a entrar e sair do bonito edifício.
O seu desaparecimento foi mais uma seta envenenada a contribuir para o
empobrecimento da Baixa e do Mercado Municipal D. Pedro V.
Outro foi o Arquivo Municipal. Outro ainda, foi o posto número um, de saúde,
na Avenida Sá Bandeira -diziam na altura que, por falta de obras, estava em
risco de colapso. A verdade é que detinha poucas condições mas, na realidade, abandonado
e sem utilidade, ainda lá está de pé. Outro serviço ainda foi a Manutenção
Militar. Quando era pequeno via lá soldados, não sei se ainda está activa, mas
é raro ver lá alguém.
Também pela deslocalização do antigo hospital, na Alta, em 1980,
paulatinamente, vimos abalar os consultórios médicos. Caminhávamos pelas ruas
largas e dávamos de frente com as placas médicas penduradas nas varandas dos
prédios. Víamos também anúncios de advogados, de cabeleireiros, de fotógrafos e
até escritórios de grandes firmas, já que, pela intensa procura, o exercício comercial
não se limitava ao rés-do-chão. De muitos outros, são apenas alguns exemplos de
serviços públicos e privados que desapareceram e davam dinamismo a esta zona.
De grandes firmas comerciais como, por exemplo agora, a Coimbra Editora
que, perante a nossa impotência encerram, nem vale a pena um grito. Morreu? Paz
à sua alma!
Na mesma enxurrada foram os cinemas, como o Tivoli, o Sousa Bastos, o antigo
Avenida e até o Teatro Académico de Gil Vicente, que até à década de 1980
passou filmes na sua espectacular sala. Antes da chegada dos Multiplex nas
grandes superfícies ainda se experimentou cinema, com duas salas, no novo
Centro Comercial Avenida e no Centro Comercial Girassolum. Nesta luta entre o
grande poder económico das grandes distribuidoras e os independentes,
naturalmente, os segundos tinham que morrer. Tudo se resume a uma questão de
força em que está transformada a economia nacional. Como está tudo encadeado, o
desaparecimento dos cinemas da zona da Baixa, a par de outros serviços, é
apenas a amostra de uma grande tragédia oculta nos subterrâneos da razão. Com
um poder político hábil a disfarçar as desgraças como se remendasse uma camisa
velha, procurando capitalizar a calamidade em proveito próprio ou partidário, tornamo-nos
animais amestrados, e habituaram-nos a justificar tudo em nome do progresso. Tudo
o que é tradicional, passado de costume arreigado popular, cheira a mofo e deve
ser trucidado em nome da inovação. Transformamo-nos em coveiros da nossa
memória. Os optimistas continuam a achar que na natureza nada se perde, tudo se
transforma, mas a verdade é outra: tudo se perde e se transforma em algo absurdo
e que não se vislumbra a utilidade social. Quando se destroem pilares citadinos
que constituíram a nossa identidade colectiva e, em substituição, surgem postes
de remedeio que ninguém reconhece, é evidente que, enquanto colectividade,
estamos ameaçados e o resultado social, inevitavelmente, é o desastre. Como
autómatos, sem dignidade nem personalidade, passamos a caminhar em direcção a
nada, sem objectivo, e somente em busca da sobrevivência.
Valerá a pena pensar nisto?
Valerá a pena pensar nisto?
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