sábado, 12 de outubro de 2013

UMA LÁGRIMA PARA LUÍSA



 Em 1966, mal acabei a escola primária (hoje denominada de básica) na minha aldeia, tinha então 10 anos, vim trabalhar para o desaparecido Café Mandarim -hoje Macdonald’s-, na Praça da República.
Tenho ideia que ao longo da minha vida, como provável protecção invisível,  tive sempre alguém para me dar a mão. É minha suposição que foi o destino, Deus ou a natureza a rectificar, ou a colmatar, uma situação de grande carência material e espiritual por parte dos meus pais –pode até parecer que estou a ajustar contas com os seus erros, nada disso. Tenho a certeza de que agiram consoante as circunstâncias e sobre o que achavam melhor e conforme os referentes que traziam dos seus criadores. Onde quer que estejam, descansem eternamente. Da minha parte estão perdoados. Um homem avança e recua.
Nessa altura, em 1966, a pobreza nos lugarejos recônditos, incluindo a fome, estava ao virar de qualquer esquina. Só iam estudar os filhos de famílias abastadas. Os filhos dos humildes eram uma ferramenta a utilizar pelos pais para conseguirem a subsistência e almejarem a sobrevivência.
Antes de eu acabar a escola de quatro anos a professora Odete mandou recado para que um dos meus pais fosse falar com ela. Foi a minha mãe. À minha frente disse-lhe que eu deveria continuar ou estudos. Pragmaticamente a minha progenitora ditou ali mesmo que era impossível: não havia meios materiais –e de facto não havia mesmo. Éramos muito pobres. Os meus progenitores, incultos, que não conheciam uma letra virada ao contrário, eram agricultores que trabalhavam de sol-a-sol, à jorna, como alugados –se a sua ignorância era facilmente perdoada, já a sua estupidez, na falta de ambição para um futuro melhor para os filhos, não era entendível. Para o meu pai, os filhos –eu e a minha irmã- eram simplesmente coisas, extensões dos seus braços, uma mais-valia, que serviam para criar riqueza e poder fazer face à vida duríssima desse tempo. Foi assim que mal finalizei a instrução primária escrevi uma carta a um meu tio, o José Fernandes, que era o chefe da cozinha do Mandarim, a pedir que me arranjasse qualquer coisa para eu sair depressa da aldeia. Passados poucos dias, pessoalmente, estava a comunicar para eu ir trabalhar para a cozinha junto dele. Foi este familiar que me orientou nos primeiros tempos. Passados um ou dois anos, uns outros meus tios, a Cacilda e o Artur, vieram viver para a Rua Guerra Junqueiro e, a partir daí e até casar, estive sempre aos seus cuidados. O ordenado mensal que auferia ia inteirinho para o meu pai. Por estranho que pareça, este, nunca se preocupou com os gastos com a roupa e calçado que eu necessitava –usava roupas usadas que eram lavadas pela minha tia Cacilda durante a noite para, tantas vezes, as vestir húmidas de manhã. Ao longo da minha vida nunca me lembro do meu pai me interrogar: “estás bem? Precisas de alguma coisa?”. Nunca lhe ouvi tais frases. Eu e a minha irmã éramos apenas máquinas de fazer dinheiro –saliento que nunca estas verbas foram mal gastas. A sua intenção era poupar para adquirir umas leiras e assim poder ser auto-suficiente. Os meus pais trabalhavam desde a aurora até noite dentro.
Em 1970 várias mulheres trabalhavam no então café do senhor Antunes. Nessa altura os braços femininos, na hotelaria, apenas eram utilizados na cozinha, na copa, ou nas limpezas. Salvo excepções, porque as haveria certamente, as mulheres não labutavam ao balcão ou nas mesas dos cafés e restaurantes. Este serviço era estritamente masculino. Esta democratização de género, com abertura plena ao feminino, só começaria duas décadas mais tarde, em 1990.
Uma das mulheres que trabalhava na copa, lembro-me bem dela, dos seus traços, dos seus olhos, era diferente da maioria. Para além de ter um trato afável, era uma pessoa sensível. Um dia, neste ano de 1970, estava eu a fazer 14 anos, disse-me mais ou menos isto: “António, estás a fazer 14 anos e deves ir estudar de noite, para um dia seres alguém e teres outras ferramentas ao teu alcance”. Foi comigo à secretaria da então Escola Técnica de Sidónio Pais –hoje Jaime Cortesão-, e inscreveu-me como aluno para o ano lectivo em curso.
Quando fui a casa e disse ao meu pai que ia estudar de noite ele imediatamente retorquiu: “não vais não! Isso é que era bom!”. Na sua óptica profundamente egoísta, se eu ia estudar à noite o patrão dava-me menos ordenado. Bati o pé e disse que se ele teimasse eu nunca mais poria os pés naquela casa. Acabei por estudar e concluir o Curso de Aperfeiçoamento Comercial.
Continuando a estudar de noite, com 16 anos, saí do Mandarim e vim trabalhar para o comércio. O tempo foi passando e transformou completamente as nossas feições. Esqueci completamente o nome da minha bem-fazente. Certamente porque deixei de reconhecer o seu rosto ou porque não nos vimos mais, a verdade é que nunca mais encontrei a mulher, a alma generosa que me levou a matricular na escola comercial. Até ontem. Ontem encontrei a fotografia da minha outrora amiga colada no frontispício da Igreja de São Bartolomeu. Como sempre faço, costumo dar uma olhadela aos obituários. De repente, o nome Maria Luísa Gonçalo bateu-me fundo. Olhei outra vez a fotografia, andei para trás nos anais do tempo, e ali estava a minha benfeitora. Infelizmente já é tarde para lhe agradecer o que fez por mim. A comunicação colada na parede era referente à missa do sétimo dia do seu desaparecimento do nosso meio.
De qualquer modo, onde quer que esteja, senhora Dona Luísa Gonçalo, ficará a saber que, enquanto eu viver, jamais será esquecida. Bem-haja, minha grande amiga. Foi graças a si que desenvolvi o gosto por escrever. Tenho a certeza de que fui mal-agradecido e agora já e tarde para emendar. De qualquer modo, mesmo assim: descanse em paz!

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