Para além do texto "MUI CHOCOLATE" COM GALA", deixo também as crónicas "O EGOÍSMO TRADICIONAL"; e "O REGRESSO DO EMBUFO".
“MUI CHOCOLATE” COM GALA
Quem recorda o filme “Chocolate”,
que passou nos cinemas portugueses há cerca de oito anos, com Juliette Binoche
e Johny Depp nos principais papéis de uma história de amor? Pelo ar apático do
seu rosto, já vi que há mais de uma década que não entra num cinema. Deixe lá.
Não há problema. Eu conto resumidamente a sinopse. O filme gira em volta de uma
recém-aberta loja de chocolates, que apesar da desconfiança da população da cidade
perante uma desconhecida, aos poucos, através da simpatia da dona da venda (Juliette
Binoche), da inovação na apresentação dos produtos, e sobretudo do cheiro, os
odores que se entranhavam entre a viúva infeliz e a casadoira esperançada,
aquela, consegue conquistar completamente e persuadir os seus habitantes a
desfrutarem os seus deliciosos produtos.
Para me servir de introdução,
falei desta obra cinematográfica porque a semana passada abriu a “Mui Chocolate”, na Rua da Gala. Se
fizermos comparação, entre esta nova casa de docinhos do céu que agora emerge e a fita que referencio, há mais
semelhanças que diferenças. Vou começar por apresentar a nova heroína deste
filme real: Leonor Ramos. Prazer Leonor. Seja bem-vinda ao nosso meio. Vou
dar-lhe voz. Conte um pouco da realidade que está por trás desta abertura. Tem
a palavra:
“Estou na meia-idade, naquela altura de balanço existencial em que uma
pessoa dá por si a interrogar-se sobre o que fez até agora, o que faz neste
momento, e o que quer fazer no futuro. Há quem diga que esta catarse toca
todos. O problema será conseguirmos dar resposta. O medo de tomar decisões
toma-nos de assalto e condiciona-nos na inação. Eu era secretária de direção
numa empresa na cidade há cerca de duas décadas. Estava portanto empregada. Há
muitos anos que me deitava embrulhada no sonho de ter um negócio meu e acordava
com a mesma pergunta: quando vais ser capaz de ser capaz de dar o salto,
Leonor? Eu não queria morrer sem tentar dar corda aos sapatos da minha
imaginação. Até que este ano, da graça de 2013, decidi-me: vai ter de ser agora
mesmo, disse para mim. Tenho família ligada à hotelaria no distrito da Guarda.
Desde pequena que me lembro de ter brincado por entre dropes e a magia de um
balcão. Sempre gostei desta parte da cidade, da Baixa. Há aqui qualquer coisa
de místico, de mistério, que não consigo explicar. Sinto uma atração fatal pelo
casario de pedra e ambiente familiar de bairro. Acredito que o futuro da cidade
mora aqui. Quando vi este local, ainda em bruto, do agora meu café, foi como
uma luz que se acendeu na minha cabeça. Como uma revelação, tive um
pressentimento: é aqui que vou edificar o meu sonho. Naquelas paredes velhas,
carcomidas pela idade, desamparadas pelo tempo, imaginei imediatamente o que
queria. Falei com a senhoria, prontifiquei-me a fazer as obras, e como a renda
acordada ficou acessível, em 200 euros, disse para mim: atira-te Leonor, que
vale mais um único gosto realizado do que uma vida sem gosto e sem amor.
Para além de mim, criei um posto de trabalho. Estou muito contente. Por
enquanto, o horário que praticamos é das 9 às 19h00, de segunda a sexta-feira.
Ao sábado é das 9 às 13h00. Como só abri portas há uma semana ainda não posso
fazer projeções, mas pelas manifestações pressinto que os clientes gostam muito
dos meus gelados de bola. Vejo o quanto é difícil recusar a minha doçaria
caseira; os crepes de chocolate, os profiteroles, os bolinhos de coco, as
bolachas de manteiga. Quer provar?”
O EGOÍSMO TRADICIONAL
Esta “estória” começa assim: tive
conhecimento que no final do mês de Setembro ia encerrar uma das mais antigas
lojas tradicionais da Baixa de Coimbra. Situada numa rua estreita, este antigo
estabelecimento terá cerca de oito décadas de existência. Embora nos últimos
anos se defendesse em têxteis variados, o seu forte ao longo do último século
foi as fazendas a metro. Na sua frontaria, identificativo de uma época e a
lembrar as lojas de Marrocos, conservou os tecidos estendidos ao longo do seu
toldo. Lá dentro, até há dias, foram visíveis os balcões e prateleiras de
madeira que, se estivéssemos numa sociedade com memória e mais interessada em
preservar o passado, deveriam ser guardados para um futuro museu, ou, no
mínimo, conservá-los para colocar num espaço onde as crianças e alunos tivessem
contacto com uma realidade que desaparece a olhos fechados. Este será,
porventura, o último exemplo vivo de um comércio tradicional que todos os dias
morre um pouco pela apatia de quem manda e, acima de tudo pelo desinteresse de
quem se está a aguentar mal. Não reclama, não dá um ai a pedir socorro. Por
parte de quem parte, de quem desiste da atividade, como que envergonhado, com o rabo entre pernas, e com o seu
silêncio a pedir desculpa por ter feito parte e ter existido no universo
comercial de longa história, nem um lenço se levanta em respeito por quem fica.
Sabendo do valor patrimonial e
museológico deste vetusto e histórico ponto de venda, e o quanto significa o
seu desaparecimento na paisagem urbana da Baixa da cidade, fui ao encontro dos
donos a pedir-lhe umas palavras para uma crónica de “últimos dias”. “Não senhor,
não queremos falar disto. Fechamos e mais nada!” –argumentaram em coro. E umas fotos ao interior, para memória
futura, para que fique registado, posso tirar? Interroguei. “Não senhor! Não queremos. Venha cá depois de
encerrarmos, que ainda vamos estar por aí a tratar de umas coisas, e depois
fotografa”. De pouco me valeu insistir que as fotos valiam como documento,
como amostragem corriqueira de um dia-a-dia normalíssimo. “Não senhor. Venha depois de fecharmos ao público. Isso não interessa
nada. Não precisamos de publicidade”. Tenho de confessar, não sou a boa rês
santificada que pareço, muito menos sou candidato a beato. Quando o caldo se
entorna, sou uma besta como outra qualquer. E perante certos egocentrismos não
me controlo. Fico fora de mim. E foi o que aconteceu. Puxei da culatra argumentativa e disparei: é por isto mesmo, por esta vossa posição de
nunca darem a cara, que o comércio tradicional está como está. É pela vossa
forma de estar, egoísta e conformada, aceitando a morte como uma
inevitabilidade e sem um queixume que ninguém se importa com o que está
acontecer. Já pensaram que umas simples palavras de testemunho, agora que estão
de partida, podem fazer toda a diferença para quem fica? E sobretudo o vosso
depoimento é importante para quem manda -pensemos que sim! Para que quem governa a cidade saiba que
terá de se fazer alguma coisa para evitar este morticínio patente ao nosso
olhar. Respondeu um deles: “ai sim, e
o que é que vocês fizeram para evitar que fechássemos?”
O REGRESSO DO EMBUFO
Nesta última segunda-feira,
subitamente, como na ressaca de um temporal que varreu tudo pela fúria dos
elementos, a Baixa acordou calma. Não se ouviam as buzinas estridentes dos
automóveis. As ruas, como sempre estiveram até há cerca de três semanas,
apresentavam-se calmas e sem agitação, vazias de pessoas, com muitas lojas
fechadas. As abertas, resistentes, com alguns comerciantes nas portadas com
cara de quem já acreditou mais num passado, que se foi, do que num futuro que
se avizinha.
Prostrado na porta, tendo por
fundo uma média luz amarelada refulgente e que esboçava os contornos, o profissional
da venda mais parecia uma imagem sacra em oratório de catedral medieval. Mas
não deveria ser assim, afinal, mais uma vez, e já tantas que se perdeu a conta,
acabou de se concretizar mais uma eleição autárquica. O homem deveria estar
feliz. Se calhar, quem sabe, o candidato ganhador não foi o eleito do seu voto.
E será que ele teria ido votar? Quase de certeza que não. É um descrente.
Perdeu completamente a fé num Deus feito à imagem de gente e num humano
transformado em divindade. Por já não confiar nos partidos políticos, por não
acreditar em promessas vazias dos pretendentes ao trono, o mais provável é ter
feito parte dos cerca de 40 por cento de abstencionistas nacionais -47 por
cento, segundo os dados oficiais, mas com mais de um milhão de eleitores
fantasmas. Quem sabe, não estaria o homem indignado por nestes últimos meses
haver dinheiro para tudo menos para a atualização premente dos cadernos
eleitorais?
Bom, às tantas aquela tristeza
toda poderia ter sido pelo facto de o candidato da Coligação por Coimbra,
Barbosa de Melo ter sido apeado. Seria isso? Naã… não me parece! Não foi
surpresa. Caiu porque tinha mesmo de cair. O ciclo estava esgotado. Não por
total inabilidade dele – se bem que também alguma. Nestes dois últimos anos, na
edilidade, nunca largou as vestes de professor universitário. Voz palheta de
solista, trato fino e requintado e charme de bom burguês. Foi sempre o
paradigma do senhor doutor –um estereótipo agridoce, amado e odiado, numa urbe
de estudantes. Por outro lado, mesmo que o anátema do Governo não pesasse e ele
fosse diferente, como encosto, trazia
consigo, em espírito de maldição, o peso de muitos falhanços na cidade, sendo o
mais notório o Metro Ligeiro de Superfície. Não por culpa de Barbosa, mas do
anterior presidente Encarnação, que comeu o bolo e deixou a fava a este seu sucessor.
Portanto, num rotativismo já tão nosso conhecido, o fim estava anunciado.
Mas por que razão não estaria o
comerciante com o rosto iluminado de felicidade? Habemus um novo presidente! Poderia ser esta a frase. É certo que
novo, novo, não é. Manuel Machado regressou à casa, símbolo da negação da
aspiração popular, que conhece bem, ao fim de uma dúzia de anos de ausência
forçada. Para além disso, no seu discurso de vitória até disse que o seu
mandato será orientado para a valorização da cidade, com inovação e criação de
empregos. Disse também que vai baixar os impostos
municipais. Como as contradições fazem sempre parte, por um lado, prometeu uma
governação inclusiva, “em que todos temos
de puxar mais fundo pela raiz identitária dos conimbricenses”. Por outro,
contrariando-se, teve uma palavra de ameaça ao afirmar que “aqueles que tentaram, sem sucesso, minar a
nossa determinação. Esses não terão lugar na nossa cidade renovada”, in Diário de Coimbra. Teria sido por
esta manifestação sem ética de vencedor, onde deve predominar o respeito pelos
vencidos, que o comerciante estaria apreensivo?
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