sexta-feira, 18 de outubro de 2013

LEIA O DESPERTAR...



Para além  do texto "A RUA DO VOLTA ATRÁS", deixo também as crónicas "SOMBRAS DE NÓS NA CIDADE"; e "REFLEXÃO: A ACIC EM CÂMARA ARDENTE".



A RUA DO VOLTA ATRÁS

 Durante a tarde do último sábado começaram a ser montados andaimes para restauro da fachada de um prédio, onde funcionou, durante décadas, uma das várias lojas Valise, na Rua Eduardo Coelho e à entrada da Rua das Padeiras. Salienta-se que a largura desta artéria é de cerca de dois metros e meio. A estrutura de ferro ocupou sensivelmente metade da via pedonal estreita. Convém salientar também que, pelo conhecimento que se tem, até agora e sempre que era necessário edificar estes pontos de apoio, era recorrente o requerente erguer uma plataforma em madeira assente em quatro barrotes, de modo a ficar um túnel e o acesso aos prédios e lojas confinantes não ser lesado. Os andaimes eram erguidos em cima do madeiramento e a partir do primeiro andar. Com esta medida, procurava-se criar o menos impacto visual negativo nos estabelecimentos para não prejudicar ninguém.
Francisco Veiga, reputado comerciante na antiga Rua dos Sapateiros e com loja de pronto-a-vestir quase em frente a estas obras, não se conforma. “Bolas, eu não gosto de empatar a vida a ninguém, mas exijo que haja um mínimo de respeito pelos meus interesses e, neste caso, também a salvaguarda dos meus colegas. Até agora, nestas passagens estranguladas, estas estruturas sempre foram edificadas em cima de uma outra em madeira. Por que razão a Câmara Municipal autorizou desta forma? Está de ver que, como está, está mal! Prejudica a circulação na rua, que por si só já é apertada. Fica mais estreita, dificultando a passagem de peões, e, acima de tudo pela visão mastodôntica, gera uma sensação de medo. As pessoas que vêm da Praça 8 de Maio chegam aqui e, perante a imagem, cortam imediatamente para a Rua das Padeiras. Se até aqui já havia poucos transeuntes agora ficamos muito pior. Eles, os pedreiros, dizem que têm licença. Não contesto a sua ação. Nada me move contra estas pessoas, antes pelo contrário. Até os admiro por estarem a fazer obras nesta altura. O que contesto é o licenciamento por parte da edilidade. Parece que quem cá está não conta, não tem interesses e uma vida difícil para aguentar. Além disso, aqui sempre passou um carro do lixo agora já não dá. Se houver um fogo, ou se for preciso uma ambulância, os carros não podem passar. Numa obra, por muito necessária que seja, tem sempre de haver o cuidado de harmonizar os interesses de todos os envolvidos. Os fins não podem ser atingidos por quaisquer meios.”
A loja Belíssima está mesmo em frente ao tapume. Rosa Maria, a lojista, um pouco conformada, lá vai dizendo: “prejudica muito. Tira a visibilidade e as pessoas deixam de passar por aqui e cortam para a Rua das Padeiras. Bem sei que temos, todos, de ter calma, mas as obras não podem ser feitas de qualquer maneira. O aspeto visual da rua é muito importante. Quem vem de Santa Cruz chega aqui, vê este monstro, e, como se imaginasse uma placa de stop, vira para a direita. Isto é mais um agravo, sobretudo numa altura em que precisamos de ajuda. Para além disso estorva a circulação. Por exemplo, ainda ontem reparei que um homem teve de transportar às costas uma série de encomendas.”

E O QUE DIZ O RESPONSÁVEL?



 Contactei o responsável pela obra. Depois de me identificar como colaborador do jornal O Despertar e procurando ouvir a sua versão, dando-lhe nota do descontentamento que a montagem desta estrutura em ferro estava a provocar nos lojistas vizinhos, sem disfarçar alguma má vontade, a mostrar que o problema reside no mensageiro, porque divulga os queixumes, este é que deve apanhar por tabela. Sem dar o nome e mostrando algum azedume, lá foi dizendo: “Temos licença passada pela Câmara Municipal”. À pergunta de durante quanto tempo iria estar a rua impedida respondeu: “Não se sabe quando termina. Depende do tempo. Vá lá à Câmara e pergunte. Ou então fale com Santo António ou São Pedro e eles lhe dizem!”


SOMBRAS DE NÓS NA CIDADE

 Passam duas horas deste meio-dia do último Sábado. Caminho na Rua da Sofia, em direção à Caixa Geral de Depósitos, na Baixa da cidade. Acabei de almoçar ali bem próximo e dou a minha volta para remoer –o circuito de um tolo, como costumo dizer. É neste calcorrear pós-almoço e digestivo que, mais calmamente, tento aperceber-me do que me rodeia. Olho as montras das muitas lojas encerradas e leio as comunicações coladas nos vidros. Leio os obituários nas paredes –estou acabadito, está de ver. Só nos preocupamos com a morte de quem parte quando estamos na fila de espera. Com o meu olhar, meço, de cima a baixo, tudo o que me rodeia, um edifício ou até um passarinho, em busca de algo que me prenda a atenção e faça parar. Para quem se cruza comigo tento adivinhar um traço singular que me leve a fotografar.
Nesta caminhada, neste penúltimo dia de uma semana que está a exaurir, de repente, cruzei-me com a sombraafinal o que somos todos senão sombras? Será que não somos simplesmente projeções de um passado? Glorioso ou não, mas cheio de força, e que, pela decadência física, nos tornamos amostras recordativas em que apenas sobram as memórias atrofiadas e as carências em demasia. Num balanço de sobras, parece que o que fica é pouco. É como se fôssemos confrontados com o princípio de Lavoisier, que defendia que nada se perde tudo se transforma, e chegássemos à conclusão de que o pai da química moderna estava profundamente errado. Nestes tempos hodiernos, sobretudo na velhice, tudo se perde nada se recupera.
A sombra que se cruzou comigo -vou chamar-lhe assim, primeiro, porque não sei o seu nome; segundo, porque, pela pose emproada, pelo que se conta, é mesmo uma silhueta do que foi. Há muitos anos que me cruzo com este homem na cidade, sobretudo na zona da Estação Velha, nos Campos do Bolhão. Sempre me despertou um sentimento de curiosidade: alto, de média compleição, cãs prateadas, a descaírem sobre os ombros, e passo cadenciado sobre o asfalto, como se fugisse de alguém, ou de si mesmo, de um passado que lhe pesa bestialmente. Embora de aspeto pouco cuidado e cabelos desgrenhados, sempre lhe reconheci um aparente porte altivo e orgulhoso. Uma aura aristocrática. Alguém que, provavelmente, será oriundo de famílias abastadas. Já li, não sei onde, que será herdeiro de uma grande fortuna no Baixo-Mondego, com casas de renda em que, para quem lhe pagou em cheque nunca os teria apresentado a desconto no banco. Segundo o que entendi, será um eremita dos tempos modernos. Terá esta narração fundamentação e um mínimo de verdade? Não sei! O que sei é que a sombra passou por mim e o seu estado andrajoso, de calçado e roupas rotas e miseráveis, impressionou-me. Será que está monitorizado pela Segurança Social? Será que está a ser acompanhado? São questões que, para já, ficam sem resposta.
Continuei a caminhar em direção à Praça 8 de Maio. Um homem completamente embriagado, ainda novo, quase choca de frente comigo. Junto à Pastelaria Palmeira um indigente estendido no chão, costumeiro no poiso, com a mão em concha e no meio de uma lengalenga, pede uma moeda. Junto à Câmara Municipal, como já é hábito, duas miúdas pedem também para a uma reconhecida obra social. Em frente à Igreja de Santa Cruz os cromos do costume tentam vender o Borda de Água aos poucos transeuntes que vagueiam na Baixa a esta hora.
Prossigo. Entro nas ruas largas da calçada. Sou invadido pelo silêncio sepulcral que me rodeia. Nem um músico de rua quebra a quietude do vazio. Dou por mim a pensar que, talvez pela partida forçada do Paolo Vasil o nosso simpático acordeonista romeno que abandonou Coimbra e regressou à sua terra, estas artérias, em solidariedade, ficaram de luto.


Junto ao Café Nicola é saliente, pela negativa invasora de um cenário que deveria ser harmonioso, uma tenda de um dos vendedores que habituais e diariamente têm lugar certo na Praça do Comércio. Continuo. Em frente ao Museu Municipal do Chiado mais outra barraca a fazer lembrar Marrocos. Ao lado mais três sombras humanas; dois posam para a fotografia a troco de uma moeda e um terceiro bate uma soneca, certamente cansado deste mundo cheio de traços, riscos e rabiscos, e futilidades.
Dou a volta pelo Largo da Portagem e verifico que aqui é outro planeta. As esplanadas estão cheias apesar do tempo climático não estar para grandes festarolas. Desço as Escadas do Gato, Rua de Sargento-mor e entro na Praça do Comércio. Como sempre o espaço histórico está repleto de automóveis estacionados em redor do pelourinho e mais além. Penso para mim que não vale a pena bater no ceguinho; esta praça, segundo alguns pensadores, dá um excelente parque de estacionamento. Não convencido mas vencido pelas minoritárias forças da utilidade automobilística, fico na minha. É assim uma espécie de braço de ferro entre a conservação histórica e a modernidade futurista. Naturalmente que perde a primeira.


Está explicada a razão dos vendedores de artesanato serem transferidos para as ruas de cima, é que está a decorrer no largo uma exposição de espantalhos –ou analogamente sombras dos humanos? Reparo que há pouca gente a visionar a exposição –uma belíssima mostra, diga-se a propósito. Tanta entrega para tão pouco reconhecimento público, penso para mim. Empregando alguma sátira social e política as várias entidades presentes tentaram dar humor aos bonecos, às sombras de nós. Vou-me embora, vou partir na sombra do dia.



REFLEXÃO: A ACIC EM CÂMARA ARDENTE



 No dia 9, deste mês de Cristo, depois de um pedido na instância judicial, pelo Tribunal Judicial de Coimbra foi decretada a Insolvência da ACIC, Associação Comercial e Industrial de Coimbra. Esta vetusta agremiação celebra no próximo dezembro 150 anos. Ou seja, não é uma coletividade qualquer na cidade. Talvez por isso se estranhe a passividade e o silêncio de todos; da imprensa local, dos associados e da atual direção –por parte desta ainda surpreende mais o facto de no dia 12, três dias depois da declaração judicial, ser publicado no Diário de Coimbra um anúncio de convocatória, cuja ordem de trabalhos era: “Ponto umApreciação, discussão e votação do Relatório e Contas da Direção Geral relativos à gerência de 2012 e do Parecer do Conselho Fiscal. Ponto dois Outros assuntos de interesse geral.” Mas há ainda outras surpresas. Quando a ACIC está em câmara ardente, surge uma nova associação liderada por Pina Prata, ex-presidente daquela corporação.
Pertenci à direção desta coletividade entre 1998 e 2003. Conto em próximas edições escrever sobre o que lá constatei e apreendi na última década.



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