Para além do texto "A RUA DO VOLTA ATRÁS", deixo também as crónicas "SOMBRAS DE NÓS NA CIDADE"; e "REFLEXÃO: A ACIC EM CÂMARA ARDENTE".
A RUA DO VOLTA ATRÁS
Durante a tarde do último sábado começaram a ser montados
andaimes para restauro da fachada de um prédio, onde funcionou, durante
décadas, uma das várias lojas Valise, na Rua Eduardo Coelho e à entrada da Rua
das Padeiras. Salienta-se que a largura desta artéria é de cerca de dois metros
e meio. A estrutura de ferro ocupou sensivelmente metade da via pedonal
estreita. Convém salientar também que, pelo conhecimento que se tem, até agora
e sempre que era necessário edificar estes pontos de apoio, era recorrente o
requerente erguer uma plataforma em madeira assente em quatro barrotes, de modo
a ficar um túnel e o acesso aos prédios e lojas confinantes não ser lesado. Os
andaimes eram erguidos em cima do madeiramento e a partir do primeiro andar. Com
esta medida, procurava-se criar o menos impacto visual negativo nos
estabelecimentos para não prejudicar ninguém.
Francisco Veiga, reputado
comerciante na antiga Rua dos Sapateiros e
com loja de pronto-a-vestir quase em frente a estas obras, não se conforma. “Bolas, eu não gosto de empatar a vida a
ninguém, mas exijo que haja um mínimo de respeito pelos meus interesses e,
neste caso, também a salvaguarda dos meus colegas. Até agora, nestas passagens
estranguladas, estas estruturas sempre foram edificadas em cima de uma outra em
madeira. Por que razão a Câmara Municipal autorizou desta forma? Está de ver
que, como está, está mal! Prejudica a circulação na rua, que por si só já é
apertada. Fica mais estreita, dificultando a passagem de peões, e, acima de
tudo pela visão mastodôntica, gera uma sensação de medo. As pessoas que vêm da
Praça 8 de Maio chegam aqui e, perante a imagem, cortam imediatamente para a
Rua das Padeiras. Se até aqui já havia poucos transeuntes agora ficamos muito
pior. Eles, os pedreiros, dizem que têm licença. Não contesto a sua ação. Nada
me move contra estas pessoas, antes pelo contrário. Até os admiro por estarem a
fazer obras nesta altura. O que contesto é o licenciamento por parte da
edilidade. Parece que quem cá está não conta, não tem interesses e uma vida
difícil para aguentar. Além disso, aqui sempre passou um carro do lixo agora já
não dá. Se houver um fogo, ou se for preciso uma ambulância, os carros não
podem passar. Numa obra, por muito necessária que seja, tem sempre de haver o
cuidado de harmonizar os interesses de todos os envolvidos. Os fins não podem
ser atingidos por quaisquer meios.”
A loja Belíssima está mesmo em frente ao tapume. Rosa Maria, a lojista, um
pouco conformada, lá vai dizendo: “prejudica
muito. Tira a visibilidade e as pessoas deixam de passar por aqui e cortam para
a Rua das Padeiras. Bem sei que temos, todos, de ter calma, mas as obras não
podem ser feitas de qualquer maneira. O aspeto visual da rua é muito
importante. Quem vem de Santa Cruz chega aqui, vê este monstro, e, como se
imaginasse uma placa de stop, vira para a direita. Isto é mais um agravo,
sobretudo numa altura em que precisamos de ajuda. Para além disso estorva a
circulação. Por exemplo, ainda ontem reparei que um homem teve de transportar
às costas uma série de encomendas.”
E O QUE DIZ O RESPONSÁVEL?
Contactei o responsável pela obra. Depois de me
identificar como colaborador do jornal O Despertar e procurando ouvir a sua
versão, dando-lhe nota do descontentamento que a montagem desta estrutura em
ferro estava a provocar nos lojistas vizinhos, sem disfarçar alguma má vontade,
a mostrar que o problema reside no mensageiro, porque divulga os queixumes,
este é que deve apanhar por tabela. Sem dar o nome e mostrando algum azedume,
lá foi dizendo: “Temos licença passada
pela Câmara Municipal”. À pergunta de durante quanto tempo iria estar a rua
impedida respondeu: “Não se sabe quando
termina. Depende do tempo. Vá lá à Câmara e pergunte. Ou então fale com Santo
António ou São Pedro e eles lhe dizem!”
SOMBRAS DE NÓS NA CIDADE
Passam duas horas deste meio-dia do último Sábado. Caminho
na Rua da Sofia, em direção à Caixa Geral de Depósitos, na Baixa da cidade.
Acabei de almoçar ali bem próximo e dou a minha volta para remoer –o circuito de um tolo, como costumo
dizer. É neste calcorrear pós-almoço e digestivo que, mais calmamente, tento
aperceber-me do que me rodeia. Olho as montras das muitas lojas encerradas e
leio as comunicações coladas nos vidros. Leio os obituários nas paredes –estou acabadito, está de ver. Só nos
preocupamos com a morte de quem parte quando estamos na fila de espera. Com o
meu olhar, meço, de cima a baixo, tudo o que me rodeia, um edifício ou até um
passarinho, em busca de algo que me prenda a atenção e faça parar. Para quem se
cruza comigo tento adivinhar um traço singular que me leve a fotografar.
Nesta caminhada, neste penúltimo
dia de uma semana que está a exaurir, de repente, cruzei-me com a sombra – afinal o que somos todos senão sombras? Será que não somos simplesmente
projeções de um passado? Glorioso ou não, mas cheio de força, e que, pela
decadência física, nos tornamos amostras recordativas em que apenas sobram as
memórias atrofiadas e as carências em demasia. Num balanço de sobras, parece
que o que fica é pouco. É como se fôssemos confrontados com o princípio de
Lavoisier, que defendia que nada se perde tudo se transforma, e chegássemos à
conclusão de que o pai da química moderna estava profundamente errado. Nestes
tempos hodiernos, sobretudo na velhice, tudo se perde nada se recupera.
A sombra que se cruzou comigo -vou chamar-lhe assim, primeiro, porque
não sei o seu nome; segundo, porque, pela pose emproada, pelo que se conta, é
mesmo uma silhueta do que foi. Há muitos anos que me cruzo com este homem na
cidade, sobretudo na zona da Estação Velha, nos Campos do Bolhão. Sempre me
despertou um sentimento de curiosidade: alto, de média compleição, cãs
prateadas, a descaírem sobre os ombros, e passo cadenciado sobre o asfalto,
como se fugisse de alguém, ou de si mesmo, de um passado que lhe pesa
bestialmente. Embora de aspeto pouco cuidado e cabelos desgrenhados, sempre lhe
reconheci um aparente porte altivo e orgulhoso. Uma aura aristocrática. Alguém
que, provavelmente, será oriundo de famílias abastadas. Já li, não sei onde, que
será herdeiro de uma grande fortuna no Baixo-Mondego, com casas de renda em
que, para quem lhe pagou em cheque nunca os teria apresentado a desconto no
banco. Segundo o que entendi, será um eremita dos tempos modernos. Terá esta
narração fundamentação e um mínimo de verdade? Não sei! O que sei é que a sombra passou por mim e o seu estado
andrajoso, de calçado e roupas rotas e miseráveis, impressionou-me. Será que
está monitorizado pela Segurança Social? Será que está a ser acompanhado? São
questões que, para já, ficam sem resposta.
Continuei a caminhar em direção à
Praça 8 de Maio. Um homem completamente embriagado, ainda novo, quase choca de
frente comigo. Junto à Pastelaria Palmeira um indigente estendido no chão,
costumeiro no poiso, com a mão em concha e no meio de uma lengalenga, pede uma
moeda. Junto à Câmara Municipal, como já é hábito, duas miúdas pedem também
para a uma reconhecida obra social. Em frente à Igreja de Santa Cruz os cromos do costume tentam vender o Borda de Água aos poucos transeuntes que
vagueiam na Baixa a esta hora.
Prossigo. Entro nas ruas largas
da calçada. Sou invadido pelo silêncio sepulcral que me rodeia. Nem um músico
de rua quebra a quietude do vazio. Dou por mim a pensar que, talvez pela
partida forçada do Paolo Vasil o nosso simpático acordeonista romeno que
abandonou Coimbra e regressou à sua terra, estas artérias, em solidariedade,
ficaram de luto.
Junto ao Café Nicola é saliente,
pela negativa invasora de um cenário que deveria ser harmonioso, uma tenda de
um dos vendedores que habituais e diariamente têm lugar certo na Praça do
Comércio. Continuo. Em frente ao Museu Municipal do Chiado mais outra barraca a
fazer lembrar Marrocos. Ao lado mais três sombras
humanas; dois posam para a fotografia a troco de uma moeda e um terceiro bate
uma soneca, certamente cansado deste mundo cheio de traços, riscos e rabiscos,
e futilidades.
Dou a volta pelo Largo da
Portagem e verifico que aqui é outro planeta. As esplanadas estão cheias apesar
do tempo climático não estar para grandes festarolas. Desço as Escadas do Gato,
Rua de Sargento-mor e entro na Praça do Comércio. Como sempre o espaço
histórico está repleto de automóveis estacionados em redor do pelourinho e mais
além. Penso para mim que não vale a pena bater
no ceguinho; esta praça, segundo alguns pensadores, dá um excelente parque
de estacionamento. Não convencido mas vencido pelas minoritárias forças da
utilidade automobilística, fico na minha. É assim uma espécie de braço de ferro entre a conservação histórica
e a modernidade futurista. Naturalmente que perde a primeira.
Está explicada a razão dos
vendedores de artesanato serem transferidos para as ruas de cima, é que está a
decorrer no largo uma exposição de espantalhos –ou analogamente sombras dos
humanos? Reparo que há pouca gente a visionar a exposição –uma belíssima
mostra, diga-se a propósito. Tanta
entrega para tão pouco reconhecimento público, penso para mim. Empregando
alguma sátira social e política as várias entidades presentes tentaram dar
humor aos bonecos, às sombras de nós.
Vou-me embora, vou partir na sombra do dia.
REFLEXÃO: A ACIC EM CÂMARA ARDENTE
No dia 9, deste mês de Cristo,
depois de um pedido na instância judicial, pelo Tribunal Judicial de Coimbra
foi decretada a Insolvência da ACIC, Associação Comercial e Industrial de
Coimbra. Esta vetusta agremiação celebra no próximo dezembro 150 anos. Ou seja,
não é uma coletividade qualquer na cidade. Talvez por isso se estranhe a
passividade e o silêncio de todos; da imprensa local, dos associados e da atual
direção –por parte desta ainda surpreende mais o facto de no dia 12, três dias
depois da declaração judicial, ser publicado no Diário de Coimbra um anúncio de
convocatória, cuja ordem de trabalhos era: “Ponto um –Apreciação, discussão e votação do Relatório
e Contas da Direção Geral relativos à gerência de 2012 e do Parecer do Conselho
Fiscal. Ponto dois – Outros
assuntos de interesse geral.” Mas há ainda outras surpresas. Quando a ACIC
está em câmara ardente, surge uma
nova associação liderada por Pina Prata, ex-presidente daquela corporação.
Pertenci à direção desta
coletividade entre 1998 e 2003. Conto em próximas edições escrever sobre o que
lá constatei e apreendi na última década.
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