Passam duas horas deste meio-dia do último Sábado. Caminho
na Rua da Sofia, em direcção à Caixa Geral de Depósitos, na Baixa da cidade.
Acabei de almoçar ali bem próximo e dou a minha volta para remoer –o circuito
de um tolo, como costumo dizer. É
neste calcorrear pós-almoço e digestivo que, mais calmamente, tento
aperceber-me do que me rodeia. Olho as montras das muitas lojas encerradas e
leio as comunicações coladas nos vidros. Leio os obituários nas paredes –estou acabadito,
está de ver. Só nos preocupamos com a morte de quem parte quando estamos na
fila de espera. Com o meu olhar, meço, de cima a baixo, tudo o que me rodeia,
um edifício ou até um passarinho, em busca de algo que me prenda a atenção e faça
parar. Para quem se cruza comigo tento adivinhar um traço singular que me leve
a fotografar.
Nesta caminhada, neste penúltimo
dia de uma semana que está a exaurir, de repente, cruzei-me com a sombra – afinal o que somos todos senão
sombras? Será que não somos simplesmente projecções de um passado? Glorioso ou
não, mas cheio de força, e que, pela decadência física, nos tornamos amostras
recordativas em que apenas soçobram as memórias atrofiadas e as carências em
demasia. Num balanço de sobras, parece que o que fica é pouco. É como se fôssemos
confrontados com o princípio de Lavoisier, que defendia que nada se perde tudo se transforma, e chegássemos à conclusão de
que o pai da química moderna estava profundamente
errado. Nestes tempos hodiernos, sobretudo na velhice, tudo se perde nada se
recupera.
A sombra que se cruzou comigo -vou chamar-lhe assim, primeiro, porque
não sei o seu nome; segundo, porque, pela pose emproada, pelo que se conta, é
mesmo uma silhueta do que foi. Há muitos anos que me cruzo com este homem na
cidade, sobretudo na zona da Estação Velha, nos Campos do Bolhão. Sempre me
despertou um sentimento de curiosidade: alto, de média compleição, cãs prateadas,
a descaírem sobre os ombros, e passo cadenciado sobre o asfalto, como se
fugisse de alguém, ou de si mesmo, de um passado que lhe pesa bestialmente.
Embora de aspecto pouco cuidado e cabelos desgrenhados, sempre lhe reconheci um
aparente porte altivo e orgulhoso. Uma aura aristocrática; alguém que,
provavelmente, será oriundo de famílias abastadas. Já li, não sei onde, que
será herdeiro de uma grande fortuna no Baixo-Mondego, com casas de renda em
que, para quem lhe pagou em cheque, nunca os teria apresentado a desconto no
banco. Segundo o que entendi, será um eremita dos tempos modernos. Terá esta
narração algum mínimo de verdade? Não sei! O que sei é que a sombra passou por mim e o seu estado
andrajoso, de calçado e roupas rotas e miseráveis, impressionou-me. Será que
está monitorizado pela Segurança Social? Será que está a ser acompanhado? São
questões que, para já, ficam sem resposta.
Continuei a caminhar em direcção
à Praça 8 de Maio. Um homem completamente embriagado, ainda novo, quase choca
de frente comigo. Junto à Pastelaria Palmeira um indigente estendido no chão,
costumeiro no poiso, com a mão em concha e no meio de uma lengalenga, pede uma
moeda. Junto à Câmara Municipal, como já é hábito, duas miúdas pedem também
para a obra de São Francisco de Assis, da Irmã Teresa. Em frente à Igreja de
Santa Cruz os cromos do costume tentam vender o Borda de Água aos poucos transeuntes que vagueiam na Baixa a esta
hora.
Prossigo. Entro nas ruas largas
da calçada. Sou invadido pelo silêncio sepulcral que me rodeia. Nem um músico
de rua quebra a quietude do vazio. Dou por mim a pensar que, talvez pela partida forçada
do Paolo Vasil o nosso simpático acordeonista romeno que abandonou Coimbra e
regressou à sua terra, estas artérias, em solidariedade, ficaram de luto.
Junto ao Café Nicola é saliente,
pela negativa invasora de um cenário que deveria ser harmonioso, uma tenda de
um dos vendedores que habituais e diariamente têm lugar certo na Praça do
Comércio. Continuo. Em frente ao Museu Municipal do Chiado mais outra barraca a
fazer lembrar Marrocos. Ao lado mais três sombras
humanas; dois posam para a fotografia a troco de uma moeda e um terceiro bate
uma soneca, certamente cansado deste mundo cheio de traços, riscos e rabiscos,
e futilidades.
Dou a volta pelo Largo da
Portagem e verifico que aqui é outro planeta. As esplanadas estão cheias apesar
do tempo climático não estar para grandes festarolas. Desço as Escadas do Gato,
Rua de Sargento-mor e entro na Praça do Comércio. Como sempre o espaço
histórico está repleto de automóveis estacionados em redor do pelourinho e mais
além. Penso para mim que não vale a pena bater
no ceguinho; esta praça, segundo alguns pensadores, dá um excelente parque
de estacionamento. Não convencido mas vencido pelas minoritárias forças da
utilidade automobilística, fico na minha. É assim uma espécie de braço de ferro
entre a conservação histórica e a modernidade futurista. Naturalmente que perde a primeira.
Está explicada a razão dos vendedores de
artesanato serem transferidos para as ruas de cima, é que está a decorrer no
largo uma exposição de espantalhos –ou analogamente sombras dos humanos?
Reparo que há pouca gente a visionar a exposição –uma belíssima mostra, diga-se
a propósito. Tanta entrega para tão pouco reconhecimento público, penso para mim. Empregando alguma sátira social e política as várias entidades
presentes tentaram dar humor aos bonecos, às sombras de nós. Vou-me embora, vou partir na sombra do dia.
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