Quando dei
conta da sua existência, recordo bem, teria sido há cerca de vinte e cinco anos
quando, todos os dias, batia com os olhos no seu anúncio nos classificados do
Diário de Coimbra (DC): “Afinador de pianos, Manuel dos Reis, Figueira da Foz”.
Noutros tempos, quando os periódicos constituíam um dos poucos meios de
publicitar a compra e venda ou prestação de serviços, os leitores diários, sem
o querer e sem conhecer o anunciante, estabeleciam uma relação de proximidade.
Ou seja, pela insistência propagandística, se, por um lado, deixávamos de ler a
mensagem, por outro, ela ficava gravada na nossa memória e era como se fizesse
parte da nossa parte.
A primeira vez que o conheci pessoalmente
foi há cerca de uma vintena de anos. Entrou-me pela porta da loja dentro.
Afirmando ser natural da praia da claridade
e que estava a residir na Baixa, apresentando-se e ao mesmo tempo que
interrogava, disse: “chamo-me Manuel dos
Reis, sou afinador de pianos. Não precisará o senhor dos meus serviços?”. Foi
então que o relacionei com o anúncio no DC. Olhei para ele, como se faz quando
falamos com alguém pela primeira vez, e vi um homem praticamente invisual, que
não enxergava quase nada. Pensei para mim que se ele não via como podia afinar
e reparar os martelos de ressonância? Nessa altura, por acaso, tinha um velho piano
francês, armado em madeira, encostado e avancei para afinação ali mesmo. Então,
nos dias seguintes, assisti à maior surpresa da minha vida. Com umas lentes
grossíssimas e mal amanhadas –que lhe dava um aspecto de professor Pardal, da banda desenhada- este velho afinador fazia
milagres. Com o tacto, às apalpadelas, com uma mestria inigualável, ele
reparava qualquer batente mesmo desmantelado. No final da operação vinha então
a afinação. Com um ouvido musical invulgar, ele não necessitava de nenhum
acessório digital. Enquanto morou por cá, pela cidade, ainda me reparou mais
alguns. Depois regressou à terra do mar e só de vez em quando me visitava.
Sempre foi marcante o sublinhado que empregava nas palavras, na sua
inesquecível retribuição de cumprimento: “vou
muito bem, senhor Luís! Vivo encantado!”
Há dias encontrei-o, sentado num
banco, na Praça do Comércio. Sozinho, de olhos postos sabe-se lá onde e, se
calhar, embrenhado numa vida que não viveu, abandonado como sós ficam os
velhos, como se de trapo sem prestabilidade se tratasse. Sem levar em conta o
seu passado tão rico em sabedoria experiencial. Como todos temos uma história
para narrar, convidei-o a contar a sua. Vamos ouvir. Senhoras e senhores, na
primeira pessoa, Manuel da Conceição dos Reis:
“Corria o ano de1932 quando nasci na Cova, Gala, Figueira da Foz. O meu
pai era pescador de bacalhau e a minha mãe estava em casa a cuidar de mim e a
rezar para que o Criador o trouxesse de volta, em bom regresso e são e salvo.
Apesar do berço pobre em que cresci os meus pais sempre quiseram o melhor para
o meu futuro. Deveria ter pesado o facto de, com cerca de 5 anos, ter ficado
quase sem ver a pouco mais de um palmo do nariz. Assim que terminei a 4ª. Classe
concorri ao exame de admissão e fui para o Conservatório de Música do Porto.
Durante sete anos aquela escola foi a minha primeira e segunda casas. Com cerca
de 18 anos regressei à Figueira e fui tocar piano para o Lagosta Vermelha –era um
cabaret, uma espécie de casa de alterne, como se diz agora. O dono era o
Joaquim Pereira da Silva, que era despachante oficial da Alfândega. Estive lá a
trabalhar à volta de 9 anos. Havia lá umas sete mulheres –e que mulheres,
senhor Luís?!- que serviam ao balcão e à mesa. Sempre a seguir a carreira
musical, fiz parte de sete agrupamentos de música ligeira. Um deles era
internacional, o Musisom. Corremos a França toda a tocar para os emigrantes.
Depois, já cansado daquela vida de jogral, não me lembro bem em que
ano, talvez na década de 1970 ou 1980, sei lá!, comecei a apostar na afinação
de pianos. Coloquei um anúncio no mais antigo diário da cidade e, aos poucos,
comecei a ser solicitado por particulares, por conservatórios –durante mais de
30 anos fiz serviço no Conservatório de Castelo Branco e da Covilhã. No Casino da
Figueira, antigo Peninsular, fui responsável pelos acordes também durante três
décadas e cheguei a tocar lá com o conjunto residente. Era no tempo em que o
piano era o rei. Veja que o Conservatório de Castelo Branco tinha 16; o da
Covilhã 15; e o Casino Peninsular tinha 6 ao seu serviço –aqui, lembro-me,
sempre que o Carlos Paião lá ia tocar, antes, tinha de ir lá verificar se o
piano estava afinado. Trabalhei para muitos artistas de nomeada; para o Shegundo
Galarza, para o maestro Vitorino de Almeida e para a Maria João Pires, de
Castelo Branco. Sem margem para dúvida, esta senhora é a maior pianista do
País.
Sou solteiro e bom rapaz. Nunca tive apetência para casar –até confesso,
nunca amei verdadeiramente uma mulher. Nunca me atirei a um grande amor. Também
nunca vi um interesse por aí além de nenhuma delas. Certamente pesou muito o
facto de eu ser quase cego; é uma doença hereditária. Esta anomalia condicionou
para sempre a minha vida. Mas agora pensando nisso, tenho a certeza, o que
pesou mais foi o facto de eu ganhar pouco. Achava que o que eu auferia não
chegava para a sobrevivência de duas pessoas. Comecei a vislumbrar o futuro e
achei que o piano, enquanto instrumento de grande porte e símbolo de novo-riquismo,
tinha os dias contados. Eu sempre gostei da solidão. Sinto-me bem só. Geralmente
todos os artistas são assim. Dou-me bem, talvez, porque sou cem por cento
autónomo.
Há uns meses saí da minha terra, a Figueira, por dificuldades
económicas. Agora vivo numa pensão da Baixa de Coimbra. Tenho uma reforma
baixita. Recebo 256,39 €. Pago 135 € na pensão e vou comer à Cozinha Económica.
O que sobra é para a lavagem da roupa e para uma buchita e um copo… nem só de
pão vive o homem! É pouco, bem sei! Merecia melhor sorte, não é o que está a pensar?
Claro que do alto dos meus 81 anos considero-me injustamente tratado, mas se tem
de ser assim, o que se há-de fazer? Uma pessoa tem de se resignar. Apesar disso não
me sinto revoltado. Contento-me com o que tenho. A política não me interessa; a
política é para os políticos. Eu sou músico. A música é o meu mundo! Quando
morrer só levo a música comigo. De bens materiais tenho apenas as roupas que
visto e uma mala de ferramentas. Absolutamente mais nada! Quando partir para a
grande viagem sigo feliz. Se nasci sem nada porque haveria de sair de outro
modo?”
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