quarta-feira, 28 de agosto de 2013

VARELA "PÉLONGO"



 O homem que tenho à minha frente, ligeiramente arqueado pelo peso de muitos esforços, alegrias e tristezas, ao longo de 88 anos, é uma lenda viva da fotografia em Coimbra, no país e no mundo inteiro. Escrevo sobre Varela Pécurto. Esta pessoa simples, afável e tímida, é o decano, o precursor do retrato a preto e branco da imagem aérea da cidade. Foi um dos primeiros a poisar os olhos nos pormenores que passavam despercebidos ao comum e chamar a atenção para a sua conservação. Com a digitalização e o acesso popular à fotografia, hoje, ver imagens de um qualquer alçado de um edifício ou recanto da urbe é fácil e até corriqueiro pelo papel da Internet, mas há meio-século não era assim. Para além dos meios disponíveis nessa altura serem incipientes também não havia sensibilidade geral para o património artístico e monumental. Mas entrando pelos olhos dentro da pessoa com quem converso, como se rebobinasse um filme, em “déjà-vu”, é fácil de imaginar e ver um homem de máquina fotográfica a tiracolo a calcorrear, em passo apressado, as ruas e becos do burgo. Só corre assim quem ama o que faz, sentindo que o tempo urge e a mudança das coisas que julga mal está ao alcance da sua vontade e não dos outros, e toma a generosidade como lema.
Não me é fácil escrever sobre este gigante da divulgação das artes. Sobretudo porque já muito foi dito e gosto pouco de chover no molhado, isto é, dizendo a mesma coisa. Por isso mesmo, para me desonerar desta responsabilidade quem vai falar é o próprio. Faça o favor, Senhor Varela. Tem a palavra.
Sou natural do Ervedal, concelho de Avis. Vim para Coimbra com 23 anos, em 1948. Casei em Évora numa véspera de Natal. De malas e bagagem, abalei imediatamente para a cidade dos estudantes já com emprego garantido. Tinha sido convidado por António Gonçalves para vir trabalhar para a livraria Atlântida, que tinha uma secção fotográfica. Um ano depois fui chamado para ir trabalhar para a Ilda, no Largo da Portagem, que abriu como tabacaria e estava a desenvolver a fotografia. Entrei como sócio-gerente.
Em Évora eu era um observador; conhecia tudo, até as próprias pedras da calçada. Em Coimbra comecei a fazer o mesmo, a olhar para as minudências, a dissecar os cantos e recantos, para aqueles pormenores que ninguém ligava. Adaptei-me muito bem à Lusa Atenas. Morava nas Escadas de Quebra-Costas, o meu café era a Brasileira e trabalhava na Portagem. Chamava a este percurso o meu triângulo turístico. Preferi abdicar de casas com muito mais comodidades, mas que estavam muito mais longe, e viver junto ao estabelecimento.
Pergunta-me se estou bem? (Encolhe os ombros conformado e os seus olhos tornam-se embaciados). A minha mulher está inválida, acamada, há cerca de oito anos. Sou eu que tomo conta dela. Sinto algumas dificuldades, sim. Recebemos de reforma, ela e eu, 800 euros. Está a ver, não está? Medicamentos e alimentação… É uma verba insuficiente para vivermos com dignidade. Fisicamente é um esforço enorme o que faço pela minha companheira, mas encaro a minha entrega a esta causa nobre como uma missão. Normalmente conto com a ajuda do meu filho mas, como ele tem a sua vida, nem sempre pode. Se preciso for faço o almoço e tudo o que uma mulher desempenha num lar melhor do que um homem. Não foi esta a velhice que idealizei. Sinto-me um pássaro preso numa gaiola, refém desta situação, mas, apesar de ao longo da existência podermos escolher o nosso caminho, só temos poder de opção em face das alternativas que se nos apresentam. Mas, deixe lá! Já fiz um pouco de tudo. Tive uma vida cheia, sempre ocupada. Já fui correspondente da televisão na zona centro; como colaborador, já escrevi e fotografei para vários jornais locais e nacionais; já escrevi vários livros; já doei muito do meu espólio. Por parte das entidades públicas sinto um grande reconhecimento, uma grande consideração pela minha obra, e isso, esse facto, deixa-me confortado.
A Baixa há 60 anos era o coração da cidade. Construíram bairros à sua volta, transferiram para lá as pessoas que aqui nasceram e este núcleo foi perdendo os seus filhos. Foi um erro retirar os transportes das ruas largas. Esta medida ajudou a matar este centro comercial. A expansão urbanística, conjuntamente com a desregulada proliferação das grandes superfícies foi o golpe final. Actualmente o futuro desta zona está muito incerto. Não consigo vislumbrar uma solução. Os citadinos estão muito comodistas não se deslocam para fazer compras. Como não há movimento, os cafés perderam o espírito de tertúlia permanente. O comodismo das pessoas foi também o responsável por esta apatia e ajudou a aniquilar todas as vivências do centro histórico.
Antevejo que, qualquer dia, vou ter de ir para um lar. Gostava de não ficar longe porque Coimbra é a minha vida, é a minha alma. Alimento-me dos seus ruídos, o barulho das sirenes dos bombeiros, o pregão do cauteleiro, a lengalenga do ceguinho. Enquanto profissional de fotografia era obrigado a mergulhar nestes fragores. Sempre os associei às horas do dia. Foram sempre o meu relógio do tempo. Amo-te muito, minha Coimbra adorada!”

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