O homem que tenho à minha frente, ligeiramente arqueado
pelo peso de muitos esforços, alegrias e tristezas, ao longo de 88 anos, é
uma lenda viva da fotografia em Coimbra, no país e no mundo inteiro. Escrevo
sobre Varela Pécurto. Esta pessoa simples,
afável e tímida, é o decano, o precursor do retrato a preto e branco da imagem
aérea da cidade. Foi um dos primeiros a poisar os olhos nos pormenores que
passavam despercebidos ao comum e chamar a atenção para a sua conservação. Com a
digitalização e o acesso popular à fotografia, hoje, ver imagens de um qualquer
alçado de um edifício ou recanto da urbe é fácil e até corriqueiro pelo papel
da Internet, mas há meio-século não era assim. Para além dos meios disponíveis
nessa altura serem incipientes também não havia sensibilidade geral para o
património artístico e monumental. Mas entrando pelos olhos dentro da pessoa
com quem converso, como se rebobinasse um filme, em “déjà-vu”, é fácil de imaginar e ver
um homem de máquina fotográfica a tiracolo a calcorrear, em passo apressado, as
ruas e becos do burgo. Só corre assim quem ama o que faz, sentindo que o tempo
urge e a mudança das coisas que julga mal está ao alcance da sua vontade e não
dos outros, e toma a generosidade como lema.
Não me é fácil escrever sobre
este gigante da divulgação das artes. Sobretudo porque já muito foi dito e
gosto pouco de chover no molhado, isto
é, dizendo a mesma coisa. Por isso mesmo, para me desonerar desta
responsabilidade quem vai falar é o próprio. Faça o favor, Senhor Varela. Tem a
palavra.
“Sou
natural do Ervedal, concelho de Avis. Vim para Coimbra com 23 anos, em 1948.
Casei em Évora numa véspera de Natal. De malas e bagagem, abalei imediatamente
para a cidade dos estudantes já com emprego garantido. Tinha sido convidado por
António Gonçalves para vir trabalhar para a livraria Atlântida, que tinha uma
secção fotográfica. Um ano depois fui chamado para ir trabalhar para a Ilda, no
Largo da Portagem, que abriu como tabacaria e estava a desenvolver a
fotografia. Entrei como sócio-gerente.
Em Évora eu era um observador; conhecia tudo, até as próprias pedras da
calçada. Em Coimbra comecei a fazer o mesmo, a olhar para as minudências, a
dissecar os cantos e recantos, para aqueles pormenores que ninguém ligava. Adaptei-me
muito bem à Lusa Atenas. Morava nas Escadas de Quebra-Costas, o meu café era a
Brasileira e trabalhava na Portagem. Chamava a este percurso o meu triângulo
turístico. Preferi abdicar de casas com muito mais comodidades, mas que estavam
muito mais longe, e viver junto ao estabelecimento.
Pergunta-me se estou bem? (Encolhe os ombros conformado e os seus
olhos tornam-se embaciados). A minha
mulher está inválida, acamada, há cerca de oito anos. Sou eu que tomo conta
dela. Sinto algumas dificuldades, sim. Recebemos de reforma, ela e eu, 800
euros. Está a ver, não está? Medicamentos e alimentação… É uma verba insuficiente
para vivermos com dignidade. Fisicamente é um esforço enorme o que faço pela
minha companheira, mas encaro a minha entrega a esta causa nobre como uma
missão. Normalmente conto com a ajuda do meu filho mas, como ele tem a sua vida,
nem sempre pode. Se preciso for faço o almoço e tudo o que uma mulher
desempenha num lar melhor do que um homem. Não foi esta a velhice que idealizei.
Sinto-me um pássaro preso numa gaiola, refém desta situação, mas, apesar de ao longo
da existência podermos escolher o nosso caminho, só temos poder de opção em
face das alternativas que se nos apresentam. Mas, deixe lá! Já fiz um pouco de
tudo. Tive uma vida cheia, sempre ocupada. Já fui correspondente da televisão
na zona centro; como colaborador, já escrevi e fotografei para vários jornais
locais e nacionais; já escrevi vários livros; já doei muito do meu espólio. Por
parte das entidades públicas sinto um grande reconhecimento, uma grande
consideração pela minha obra, e isso, esse facto, deixa-me confortado.
A Baixa há 60 anos era o coração da cidade. Construíram bairros à sua
volta, transferiram para lá as pessoas que aqui nasceram e este núcleo foi
perdendo os seus filhos. Foi um erro retirar os transportes das ruas largas.
Esta medida ajudou a matar este centro comercial. A expansão urbanística,
conjuntamente com a desregulada proliferação das grandes superfícies foi o
golpe final. Actualmente o futuro desta zona está muito incerto. Não consigo
vislumbrar uma solução. Os citadinos estão muito comodistas não se deslocam
para fazer compras. Como não há movimento, os cafés perderam o espírito de
tertúlia permanente. O comodismo das pessoas foi também o responsável por esta
apatia e ajudou a aniquilar todas as vivências do centro histórico.
Antevejo que, qualquer dia, vou ter de ir para um lar. Gostava de não
ficar longe porque Coimbra é a minha vida, é a minha alma. Alimento-me dos seus
ruídos, o barulho das sirenes dos bombeiros, o pregão do cauteleiro, a
lengalenga do ceguinho. Enquanto profissional de fotografia era obrigado a
mergulhar nestes fragores. Sempre os associei às horas do dia. Foram sempre o
meu relógio do tempo. Amo-te muito, minha Coimbra adorada!”
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