(Imagem da Web)
Na esplanada do pequeno café de bairro a mulher, de cerca
de meio século, está sentada numa cadeira e apoiada na mesa rectangular. Magra,
enfezada, cabelo curto, dá para adivinhar que está alcoólica de profissão e
frustrada na desilusão. Em dois abraços perceptíveis num olhar está todo o seu pequeno
mundo. No braço esquerdo e a afagar com a mão contra o peito está o “Kikas”, o
pequeno caniche, lingrinhas, cinco
cêntimos e regra de três simples de um cão de guarda. Na mão direita, acompanhada
com o braço em círculo apertado, bem agarradinho como se fosse o último desejo
de um qualquer pés para a cova, está
um príncipe, um copo alto e esguio cheio de cerveja,
como se fosse a representação material de um sonho idealizado em noites
marteladas, um amor não concretizado. Em forma de carícia, ora passa a mão
direita pela cabecita do canídeo, ora beija o copo com sofreguidão em trago
repetido de entrega carnal e libidinosa, ora fala com o cãozinho como se este
fosse pessoa.
No entretanto, passa um
conhecido, supõe-se que vizinho, e este interroga: “então o “Kikas” está melhor? Já lhe passou a má disposição intestinal?”.
E a mulher, grata ao interlocutor por lhe dar cinco reis de conversa, fala do
seu querido, da sua segunda alma,
como se de um familiar se tratasse. E fala. E repete, repete. E o vizinho,
coitadinho, já muito arrependido de ter tocado no cão, salvo seja, vendo que
vai ser difícil desligar o botão, pondo fim à eterna meada, pede a todos os
santos de serviço àquela hora na freguesia que lhe valham naquela aflição.
Certamente pelos apelos mentais do homem, o santo protector, que não
conseguimos saber a identidade, mesmo tendo imenso que fazer lá no paraíso, lá
lhe deu uma abébia, enviando alguém em
socorro da pobre alma terrena, e o vizinho se foi à vida, certamente maldizendo
a mulher, o cão e a porcaria das contas para pagar que, mensalmente, não o
largam e lhe infernizam a vida.
No meio disto tudo, o pobre
animal, que por acaso até tem vida de rico, olha para isto tudo com deleite mas
também alguma apreensão. Nos últimos dias deu em ficar preocupado e, em
constantes especulações, deu em interrogar se este obsessivo amor dos humanos pelos
animais será para continuar e para sempre. É que um cão, mesmo não sendo cão danado,
quando a esmola é grande também desconfia e pergunta-se o que se passa no reino
dos inteligentes. Aparentemente tudo indica que sim, que, perante a solidão e a
carência de afecto dos humanos, os carinhos infindáveis
estão com tendência até para aumentar. Não é que ele perceba muito da coisa,
mas quando está junto da dona a folhear páginas e mais páginas virtuais no
Facebook já deu para entender que por lá se vêm mais fotografias de cães e
gatos do que pessoas. Nem se admira se um dia destes passar a haver um Facedog e um facecat. Mas, sendo assim, por que está angustiado o lingrinhas do “Kikas”? Então a gente sabe lá? Às tantas está depressivo. Não é
verdade que a depressão é património dos ricos? E quem é que sabe o penar de
tais angústias por ter sempre jantar a tempo e horas? Se calhar, observamos
nós, a pensar que este estado de coisas pode mudar. E depois? Como é que um
animal, habituado ao bem-bom, se cair
na desgraça por mudança dos costumes, vai viver? Especulando nós, que não
percebemos nada de interpretação de pensamentos animalescos, quem sabe não
imagine o pobre corpo, sem alma, de quatro patas delicadas e franzinas: “ai
Nosso Senhor, protector de todos os animais domésticos, valha e, em milagre, faça
com que os humanos amem os amigos irracionais acima de todas as coisas para
sempre. Ámen!
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