sábado, 10 de agosto de 2013

A SOCIEDADE PROTECTORA ANIMAL

(Imagem da Web)


 Na esplanada do pequeno café de bairro a mulher, de cerca de meio século, está sentada numa cadeira e apoiada na mesa rectangular. Magra, enfezada, cabelo curto, dá para adivinhar que está alcoólica de profissão e frustrada na desilusão. Em dois abraços perceptíveis num olhar está todo o seu pequeno mundo. No braço esquerdo e a afagar com a mão contra o peito está o “Kikas”, o pequeno caniche, lingrinhas, cinco cêntimos e regra de três simples de um cão de guarda. Na mão direita, acompanhada com o braço em círculo apertado, bem agarradinho como se fosse o último desejo de um qualquer pés para a cova, está um príncipe, um copo alto e esguio cheio de cerveja, como se fosse a representação material de um sonho idealizado em noites marteladas, um amor não concretizado. Em forma de carícia, ora passa a mão direita pela cabecita do canídeo, ora beija o copo com sofreguidão em trago repetido de entrega carnal e libidinosa, ora fala com o cãozinho como se este fosse pessoa.
No entretanto, passa um conhecido, supõe-se que vizinho, e este interroga: “então o “Kikas” está melhor? Já lhe passou a má disposição intestinal?”. E a mulher, grata ao interlocutor por lhe dar cinco reis de conversa, fala do seu querido, da sua segunda alma, como se de um familiar se tratasse. E fala. E repete, repete. E o vizinho, coitadinho, já muito arrependido de ter tocado no cão, salvo seja, vendo que vai ser difícil desligar o botão, pondo fim à eterna meada, pede a todos os santos de serviço àquela hora na freguesia que lhe valham naquela aflição. Certamente pelos apelos mentais do homem, o santo protector, que não conseguimos saber a identidade, mesmo tendo imenso que fazer lá no paraíso, lá lhe deu uma abébia, enviando alguém em socorro da pobre alma terrena, e o vizinho se foi à vida, certamente maldizendo a mulher, o cão e a porcaria das contas para pagar que, mensalmente, não o largam e lhe infernizam a vida.
No meio disto tudo, o pobre animal, que por acaso até tem vida de rico, olha para isto tudo com deleite mas também alguma apreensão. Nos últimos dias deu em ficar preocupado e, em constantes especulações, deu em interrogar se este obsessivo amor dos humanos pelos animais será para continuar e para sempre. É que um cão, mesmo não sendo cão danado, quando a esmola é grande também desconfia e pergunta-se o que se passa no reino dos inteligentes. Aparentemente tudo indica que sim, que, perante a solidão e a carência de afecto dos humanos, os carinhos infindáveis estão com tendência até para aumentar. Não é que ele perceba muito da coisa, mas quando está junto da dona a folhear páginas e mais páginas virtuais no Facebook já deu para entender que por lá se vêm mais fotografias de cães e gatos do que pessoas. Nem se admira se um dia destes passar a haver um Facedog e um facecat. Mas, sendo assim, por que está angustiado o lingrinhas do “Kikas”? Então a gente sabe lá? Às tantas está depressivo. Não é verdade que a depressão é património dos ricos? E quem é que sabe o penar de tais angústias por ter sempre jantar a tempo e horas? Se calhar, observamos nós, a pensar que este estado de coisas pode mudar. E depois? Como é que um animal, habituado ao bem-bom, se cair na desgraça por mudança dos costumes, vai viver? Especulando nós, que não percebemos nada de interpretação de pensamentos animalescos, quem sabe não imagine o pobre corpo, sem alma, de quatro patas delicadas e franzinas: “ai Nosso Senhor, protector de todos os animais domésticos, valha e, em milagre, faça com que os humanos amem os amigos irracionais acima de todas as coisas para sempre. Ámen!

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