segunda-feira, 12 de agosto de 2013

É PRECISO TRABALHAR OU DESCANSAR? (1)

(Imagem da Web)



 

 Ontem, Domingo, por volta do meio-dia, quando estava na loja, fui interpelado pelo chefe de uma família de seis pessoas para lhe indicar um restaurante na Baixa onde o preço fosse proporcional à qualidade apresentada. Como faço habitualmente, tento recomendar os que conheço bem, sobretudo aqueles que já frequentei mais do que uma vez e saí satisfeito. Indiquei-lhes dois numa rua estreita e as pessoas lá foram. Passado um bocado estavam novamente a bater-me à porta. As duas casas de pasto estavam encerradas. A coçar na cabeça fui pensando para que substituto os haveria de mandar. Lembrei-me de um perto da Câmara Municipal. Como eles não conheciam a cidade fui com eles até lá. Mais uma vez batemos com o nariz na porta: encerrado. Prevenido e a contar com o pior já levava uma solução alternativa. Acompanhei-os então a um outro, ali próximo, em que se come também optimamente. Enquanto regressava ao meu ponto de origem fui pensando que estamos no mês de Agosto, no pico turístico do ano, na cidade recentemente classificada pela Unesco como Património Mundial da Humanidade. E com bastantes visitantes em Coimbra.
Depois de almoço, enquanto tomava café no estabelecimento do meu bairro, reparei no título do Jornal de Notícias que se encontrava numa mesa próxima: “dois terços dos portugueses fazem férias em casa”. Saí. Ao lado deste “snack” está uma loja de animais. Na porta de vidro um cartaz anunciava: “encerramos de até tal dia. Vamos recuperar forças para vos servir melhor
Num pensamento profundamente reacionário, dei por mim a questionar se de facto estaremos mesmo numa crise sem precedentes como se apregoa por aí. De repente, como tantas vezes repito em catarse, fiz uma viagem no tempo para os princípios de 1960. Senti-me novamente um puto de cinco anos, descalço, a guardar umas ovelhas nas margens do sonho e nos caminhos da minha aldeia. Na imaginação, vi-me sentado numa pedra, enquanto os similares dos ruminantes tratavam de se alimentar. Ao mesmo tempo ia olhando em volta, vendo o casario muito pobre, tugúrios, onde chovia lá dentro como na rua, sem água, sem luz eléctrica, sem esgotos, comodidades hoje consideradas essenciais num bem-estar mínimo de uma sociedade desenvolvida.
Os meus progenitores, nascidos e criados nos campos, agricultores incultos e sem conhecerem uma letra à vista ou ao portador, conjuntamente com outros trabalhadores, faziam parte da mão-de-obra barata, alugada, ao serviço de quatro grandes proprietários agrícolas. Os afazeres diários dos meus pais, em 361 dias do ano, eram sempre iguais, ou pelo menos variavam pouco. Numa rotina escrita nas veredas de pó e lama, exceptuavam-se quatro dias: o Natal, a festa anual do santo padroeiro, São Sebastião, em Janeiro, a Páscoa e o dia da matança do porco, cuja carne, a única que entraria na nossa casa, conservada à força de muito sal numa arca de madeira, salgadeira, duraria cerca de meio-ano à custa de muita poupança.
Ao romper da aurora, mal o Sol começava a espreguiçar-se, o meu pai, com a enxada ou o farpão ao ombro, abalava na direcção dos campos perdidos no horizonte para só voltar já a noite tinha estendido o manto negro no lugarejo havia horas. Escusado será dizer que, como se alimentava mal, quantas vezes com uma cebola cortada em quatro com sal, broa, e só uma sopa frugal de feijão com couves ao almoço levada pela minha mãe numa canastra à cabeça, regressaria com um grão na asa, esquinado, e pronto a embirrar com tudo o que mexesse desde o gato até à pulga –esta, saltitantes que havia por lá em demasia já que os currais dos animais eram por baixo do piso principal da pobre e humilde casa. Depois de um árduo dia de trabalho, quantas vezes a cavar vinha sobre uma canícula tórrida, ainda iria cuidar do rancho de quatro patas e só depois, por volta das 22h00, iria cear, a única refeição mais abastada e aconchegante da jornada. Por volta das 5h00 da manhã, juntos, a minha mãe e o meu pai, estariam novamente a soerguer-se da enxerga de palha. No verão, ora iriam para as leiras regar o feijão trepador, o cebolo e as alfaces com a água da represa, ora iriam escamisar as espigas de milho colhidas no campo arrendado e arado. Retirando os quatro dias, trabalhavam sete dias por semana durante todo o ano, incluindo o domingo. Não havia santo venerado que os desviasse para uma missa, muito menos um qualquer dia santo que os afastasse destes caminhos de formiga. Foram de tal modo sempre assim que no dia da minha Comunhão Solene não estiveram presentes. Escusado será dizer que, embora eu fosse criança, não compreendia porque, no inverno, me haveria de forçar a levantar a meio da noite para o acompanhar ao moinho.
Desde muito novo comecei a detestar todo aquele obsessivo ramerrão. Muito cedo me revelei contra esta forma de viver, caótica e sempre igual. Ao longo das nossas existências, pela forma contrária de pensar, foi sempre um prego martelado nas nossas relações. Assim que fiz o exame da 4.ª Classe, com a ajuda de uns tios, consegui pisgar-me daquele ambiente maquinal e depressivo. Apesar do meu pai beber uns copos de tinto, e tantas vezes se enfrascar, curiosamente, nunca me lembro de o ter visto na taberna a acompanhar a maioria dos habitantes do lugar que, no Dia do Senhor, aproveitava para afogar as mágoas no sangue de Cristo, jogar uma suecada e descarregar as frustrações da vida duríssima nas malhas de ferro, atiradas em frenesim na direcção do fito de madeira postado nos socalcos em terra poeirenta da estrada principal.
Ao longo das suas existências de romeiros, naquele caminhar vazio de ócio e assoberbados de trabalho como albarda em burro de carga, nunca tiveram férias. Foi assim que conseguiram pagar e arranjar a casa, de modo a torná-la habitável, e adquirirem umas leiras, uns vinhedos de terra barrenta e uns pinhais nas terras circundantes da minha aldeia.
Quando penso no penoso das suas vidas de então e relaciono com o viver de hoje, tenho duas certezas: por um lado, fui muito injusto para com eles; por outro, comparando com a actualidade, sem critério de ponderação, fomos dos oito para o oitenta. Se nesse tempo aquele costume era um absurdo elevado à quinta potência, pelo quase esclavagismo de entrega pela conquista das coisas, hoje, pelo querer sem grande esforço, há um notório exagero no desligamento e desvalorização do trabalho enquanto força motriz para alcançar uma vida melhor.
Voltarei a este assunto.



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