(Imagem da Web)
Ontem, Domingo, por volta do meio-dia, quando estava na loja,
fui interpelado pelo chefe de uma família de seis pessoas para lhe indicar um
restaurante na Baixa onde o preço fosse proporcional à qualidade apresentada.
Como faço habitualmente, tento recomendar os que conheço bem, sobretudo aqueles
que já frequentei mais do que uma vez e saí satisfeito. Indiquei-lhes dois numa
rua estreita e as pessoas lá foram. Passado um bocado estavam novamente a
bater-me à porta. As duas casas de pasto estavam encerradas. A coçar na cabeça fui pensando para que
substituto os haveria de mandar. Lembrei-me de um perto da Câmara Municipal.
Como eles não conheciam a cidade fui com eles até lá. Mais uma vez batemos com
o nariz na porta: encerrado. Prevenido e a contar com o pior já levava uma
solução alternativa. Acompanhei-os então a um outro, ali próximo, em que se
come também optimamente. Enquanto regressava ao meu ponto de origem fui
pensando que estamos no mês de Agosto, no pico turístico do ano, na cidade
recentemente classificada pela Unesco como Património Mundial da Humanidade. E
com bastantes visitantes em Coimbra.
Depois de almoço, enquanto tomava
café no estabelecimento do meu bairro, reparei no título do Jornal de Notícias que se encontrava
numa mesa próxima: “dois terços dos
portugueses fazem férias em casa”. Saí. Ao lado deste “snack” está uma loja de animais. Na porta de vidro um cartaz
anunciava: “encerramos de até tal dia.
Vamos recuperar forças para vos servir melhor”
Num pensamento profundamente
reacionário, dei por mim a questionar se de facto estaremos mesmo numa crise
sem precedentes como se apregoa por aí. De repente, como tantas vezes repito em
catarse, fiz uma viagem no tempo para os princípios de 1960. Senti-me novamente
um puto de cinco anos, descalço, a guardar umas ovelhas nas margens do sonho e
nos caminhos da minha aldeia. Na imaginação, vi-me sentado numa pedra, enquanto
os similares dos ruminantes tratavam de se alimentar. Ao mesmo tempo ia olhando
em volta, vendo o casario muito pobre, tugúrios, onde chovia lá dentro como na
rua, sem água, sem luz eléctrica, sem esgotos, comodidades hoje consideradas
essenciais num bem-estar mínimo de uma sociedade desenvolvida.
Os meus progenitores, nascidos e
criados nos campos, agricultores incultos e sem conhecerem uma letra à vista ou ao portador,
conjuntamente com outros trabalhadores, faziam parte da mão-de-obra barata,
alugada, ao serviço de quatro grandes proprietários agrícolas. Os afazeres
diários dos meus pais, em 361 dias do ano, eram sempre iguais, ou pelo menos
variavam pouco. Numa rotina escrita nas veredas de pó e lama, exceptuavam-se
quatro dias: o Natal, a festa anual do santo padroeiro, São Sebastião, em Janeiro,
a Páscoa e o dia da matança do porco, cuja carne, a única que entraria na nossa
casa, conservada à força de muito sal numa arca de madeira, salgadeira, duraria
cerca de meio-ano à custa de muita poupança.
Ao romper da aurora, mal o Sol
começava a espreguiçar-se, o meu pai, com a enxada ou o farpão ao ombro,
abalava na direcção dos campos perdidos no horizonte para só voltar já a noite
tinha estendido o manto negro no lugarejo havia horas. Escusado será dizer que,
como se alimentava mal, quantas vezes com uma cebola cortada em quatro com sal,
broa, e só uma sopa frugal de feijão com couves ao almoço levada pela minha mãe
numa canastra à cabeça, regressaria com um grão
na asa, esquinado, e pronto a embirrar com tudo o que mexesse desde o gato
até à pulga –esta, saltitantes que havia por lá em demasia já que os currais dos
animais eram por baixo do piso principal da pobre e humilde casa. Depois de um
árduo dia de trabalho, quantas vezes a cavar vinha sobre uma canícula tórrida,
ainda iria cuidar do rancho de quatro patas e só depois, por volta das 22h00, iria cear, a única refeição mais
abastada e aconchegante da jornada. Por volta das 5h00 da manhã, juntos, a
minha mãe e o meu pai, estariam novamente a soerguer-se da enxerga de palha. No
verão, ora iriam para as leiras regar o feijão trepador, o cebolo e as alfaces
com a água da represa, ora iriam escamisar as espigas de milho colhidas no
campo arrendado e arado. Retirando os quatro dias, trabalhavam sete dias por
semana durante todo o ano, incluindo o domingo. Não havia santo venerado que os
desviasse para uma missa, muito menos um qualquer dia santo que os afastasse
destes caminhos de formiga. Foram de tal modo sempre assim que no dia da minha Comunhão Solene não estiveram
presentes. Escusado será dizer que, embora eu fosse criança, não compreendia
porque, no inverno, me haveria de forçar a levantar a meio da noite para o
acompanhar ao moinho.
Desde muito novo comecei a
detestar todo aquele obsessivo ramerrão. Muito cedo me revelei contra esta
forma de viver, caótica e sempre igual. Ao longo das nossas existências, pela
forma contrária de pensar, foi sempre um prego martelado nas nossas relações.
Assim que fiz o exame da 4.ª Classe, com a ajuda de uns tios, consegui pisgar-me daquele ambiente maquinal
e depressivo. Apesar do meu pai beber uns copos de tinto, e tantas vezes se enfrascar, curiosamente, nunca me lembro
de o ter visto na taberna a acompanhar a maioria dos habitantes do lugar que,
no Dia do Senhor, aproveitava para afogar as mágoas no sangue de Cristo, jogar uma suecada
e descarregar as frustrações da vida duríssima nas malhas de ferro, atiradas em
frenesim na direcção do fito de madeira postado nos socalcos em terra poeirenta
da estrada principal.
Ao longo das suas existências de
romeiros, naquele caminhar vazio de ócio e assoberbados de trabalho como
albarda em burro de carga, nunca tiveram férias. Foi assim que conseguiram pagar
e arranjar a casa, de modo a torná-la habitável, e adquirirem umas leiras, uns
vinhedos de terra barrenta e uns pinhais nas terras circundantes da minha
aldeia.
Quando penso no penoso das suas
vidas de então e relaciono com o viver de hoje, tenho duas certezas: por
um lado, fui muito injusto para com eles; por outro, comparando com a
actualidade, sem critério de ponderação, fomos dos oito para o oitenta. Se nesse tempo aquele costume era um absurdo
elevado à quinta potência, pelo quase esclavagismo de entrega pela conquista
das coisas, hoje, pelo querer sem grande esforço, há um notório exagero no
desligamento e desvalorização do trabalho enquanto força motriz para alcançar
uma vida melhor.
Voltarei a este assunto.
TEXTOS RELACIONADOS
"A ilusão de óptica da modernidade"
Voltarei a este assunto.
TEXTOS RELACIONADOS
"A ilusão de óptica da modernidade"
Sem comentários:
Enviar um comentário