quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O MANTO DIÁFANO DA MORTE

 Como ressalva de valores, gostaria de deixar bem expresso o respeito por quem parte e pelas famílias enlutadas que sofrem a dor que se abate no seu seio. Esta crónica, se é que presumidamente pretende alguma coisa, será, no máximo, sensibilizar em forma de lembrete de que entramos e saímos desta vida de forma igual.
Na velha parede junto à Pastelaria Palmeira, na Rua da Sofia, os anúncios de necrologia mantêm-se alinhados com os olhos de quem passa. Em contraste com as demais, uma das comunicações salta à vista pelo apêndice junto ao nome: “Dr.”. Sabendo-se que o extinto exercia a profissão de causídico, poderemos nós interrogar: está errado? Não, não está! Mesmo eticamente estará certo. Então, nesse caso, por que melindre me haveria de dar para implicar com um sentimento tão profundo quanto é o desaparecimento de um humano? Não sei se conseguirei ser claro, e muito menos que alguém concorde com o meu ponto de vista, mas, sobretudo por parte das empresas funerárias e igual aos registos de nascimentos, deveria ser implementado um princípio universal de que a publicidade a alguém que deixa o mundo dos vivos deveria ser mostrada apenas pelo nome. Que os obituários falem de todo o percurso do defunto e contem toda a sua história de vida aceita-se completamente e nem sequer se coloca qualquer questiúncula. Dá-me a parecer que esta discriminação positiva, talvez sem que seja essa a intenção por parte das funerárias, acaba por manter um situacionismo, uma hierarquia, entre vivos. Não se pense que sou contra as hierarquias na sociedade. Nada disso! O que quero dizer é que deveríamos todos caminhar, cada vez mais, no sentido de um certo nivelamento. Procurarmos ser mais iguais mesmo na diferença estatutária. Sentirmos todos que estamos cá de passagem. Mesmo com honras, começando na molécula, chegamos sem nada e partimos apenas com uma roupa vestida que, juntamente com toda a materialidade, se transformará em pó.
É evidente que, e falo de Coimbra, um longo caminho tem sido percorrido e sempre a melhorar. Na década de 1960 qualquer estudante de capa e batina, ou um homem vestido de fato e gravata, era apodado de doutor. Não foi há muitos anos que, ao comprar uns livros de direito numa livraria da Baixa fui tratado por doutor. Embora rectificasse imediatamente o funcionário, tenho de confessar que me soube bem. Afinal, ali, naquele procedimento, ainda que obrigado pelas circunstâncias de subserviência ao cliente, estaria os juros de um capital humano por mim investido em tantas situações análogas ao longo da minha existência.
Comparando esses idos tempos e os de hoje na imprensa escrita deu-se um salto ciclópico. Numa notícia, raramente se apresenta um nome importante com o Dr., Eng.º, ou Arq.º a anteceder. Mas ainda há muito para fazer para que a universalidade, a igualdade nos direitos e obrigações sejam de facto uma premissa constitucional. Deveremos começar pelas coisas simples, como o caso que apresento em epígrafe.


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