“Encerrei hoje a minha loja para sempre. Estou sozinho, sentado no meio
da penumbra, no ambiente que reflecte o meu estado de espírito. Por entre as
frestas do estore, onde uns fios dourados do Sol parecem querer confortar-me,
vejo pessoas a passar na rua. Vultos apressados, cabisbaixos, em busca de
soluções para as suas vidas intrincadas, emaranhados em teias que cada um tece e
que, mais tarde, vêm a ser o verdugo fatal que corta a cabeça da realidade
e extingue a esperança que dá alento.
Não posso evitar desmanchar-me em prantos múltiplos. E choro como nunca
chorei assim. Nos últimos tempos fiquei muito vulnerável. Sinto-me um vidrinho.
À mínima imagem de tristeza os olhos inundam-se-me como recanto seco surpreendido
por uma intensa chuva de verão. Sinto-me desfalecer. Há muito que as forças me
abandonaram. Agora que sei que não vou voltar a abrir a porta, que está á minha
frente e que foi transposta por milhares e milhares sem conta, sinto-me completamente
vazio por dentro. Como se alguém, à força e sem pedir licença, tivesse vindo
arrancar-me a alma. Comprar, vender, foi sempre o que gostei de fazer e fiz ao
longo da vida. Trabalho desde criança. Os objectos, poucos que ainda restam nas
prateleiras, como se pedissem ajuda, parecem mirar-me em suplício. Olho para o
canto esquerdo, para a imagem da Rainha Santa que guardo religiosamente desde o
primeiro dia que abri o negócio. Quantas vezes, num olhar, lhe implorei que me
ajudasse para ultrapassar as dificuldades que me assoberbavam. E sempre me
valeu. Procurei agradecer-lhe em visitas diárias à igreja. Mas nos últimos anos
abandonou-me. Sei lá, às tantas, os pedidos foram tantos, de tantos, que, se
calhar, teve que esquecer alguns velhos conhecidos como eu.
Estou envolvido pelo silêncio. Tudo à minha volta parece sofrer comigo.
Até aquela coluna de pedra, que tanto me custou pagar, parece chorar e estar carregada
de solidão e desilusão. Quem sabe a questionar-se para onde irá parar depois de
se tornar inútil? As coisas são como a água dos rios, só têm valor, pela
utilidade, pela vida que geram na nossa existência. A água precisa de se sentir
viva, a correr, sempre a correr, encadeada na mesma água, na direcção do mar.
Se coarctarem o seu destino, mais tarde ou mais cedo sucumbirá.
Sei que lutei muito. Muito mesmo. Trabalhei arduamente para dar uma
vida digna à minha família. E consegui. Dei-lhes tudo o que não tive. São o melhor
que tenho nesta vida. Sem eles não conseguiria aguentar o que estou a passar. É
muito duro. Vivemos uma cultura do sucesso. Para o vencedor pouco importa se foi uma escalada
de roubo e trapaça a todos os seus conhecidos. Isso não interessa nada desde
que tenha dinheiro, seja influente e bem-sucedido na vida, todos lhe
prestam vassalagem. Estamos numa selva onde a lei do mais forte impera. Os
fracos, os desafortunados pela sorte, um a um, vão sendo dizimados como árvores
na floresta pela vontade do homem.
Vou partir sem nada, com menos do que quando aqui entrei. Estou a
limpar as lágrimas do rosto. Não devo aparentar fragilidade lá fora. Amanhã é
outro dia. Vou-me embora. Vou para casa, para o meu porto de abrigo. Lá tenho
um abraço da minha mulher e dos meus filhos à minha espera. Há alguma riqueza
maior? Amanhã será outro dia!”
(Singela homenagem a um amigo)
2 comentários:
Lamento. A depauperada Baixa de Coimbra perde assim um dos seus principais e acérrimos defensores.
Como o País continuamos a definhar... até ao colapso final.
Quo vadis Coimbra?
Lamento. A depauperada Baixa de Coimbra perde assim um dos seus principais e acérrimos defensores.
Como o País continuamos a definhar... até ao colapso final.
Quo vadis Coimbra?
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