LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "O ÚLTIMO OLHAR", deixo também as crónicas "DEZ DIAS DEPOIS..."; e "O JOÃO SOPROU UMA VELA".
O ÚLTIMO OLHAR
“Encerrei
hoje a minha loja para sempre. Estou sozinho, sentado no meio da penumbra, no
ambiente que reflete o meu estado de espírito. Por entre as frestas do estore,
onde uns fios dourados do Sol parecem querer confortar-me, vejo pessoas a
passar na rua. Vultos apressados, cabisbaixos, em busca de soluções para as
suas vidas intrincadas, emaranhados em teias que cada um tece e que, mais
tarde, vêm a ser o verdugo fatal que nos corta a cabeça da realidade e extingue
a esperança que dá alento.
Não posso evitar desmanchar-me em prantos múltiplos. E choro como nunca
chorei assim. Nos últimos tempos fiquei muito vulnerável. Sinto-me um vidrinho.
À mínima imagem de tristeza os olhos inundam-se-me como recanto seco
surpreendido por uma intensa chuva de verão. Sinto-me desfalecer. Há muito que
as forças me abandonaram. Agora que sei que não vou voltar a abrir a porta, que
está à minha frente e que foi transposta por milhares e milhares sem conta,
sinto-me completamente vazio por dentro. Como se alguém, à força e sem pedir
licença, tivesse vindo arrancar-me a alma. Comprar, vender, foi sempre o que
gostei de fazer e fiz ao longo da vida. Trabalho desde criança. Os objetos,
poucos que ainda restam nas prateleiras, como se pedissem ajuda, parecem
mirar-me em suplício. Olho para o canto esquerdo, para a imagem da Rainha Santa
que guardo religiosamente desde o primeiro dia que abri o negócio. Quantas
vezes, num olhar, lhe implorei que me ajudasse para ultrapassar as dificuldades
que me assoberbavam. E sempre me valeu. Procurei agradecer-lhe em visitas diárias
à igreja. Mas nos últimos anos abandonou-me. Sei lá, às tantas, os pedidos
foram tantos, de tantos, que, se calhar, teve que esquecer alguns velhos
conhecidos como eu.
Estou envolvido pelo silêncio. Tudo à minha volta parece sofrer comigo.
Até aquela coluna de pedra, que tanto me custou pagar, parece chorar e estar
carregada de solidão e desilusão. Quem sabe a questionar-se para onde irá parar
depois de se tornar inútil? As coisas são como a água dos rios, só têm valor,
pela utilidade, pela vida que geram na nossa existência. A água precisa de se
sentir viva, a correr, sempre a correr, encadeada na mesma água, na direção do
mar. Se coartarem o seu destino, mais tarde ou mais cedo sucumbirá.
Sei que lutei muito. Muito mesmo. Trabalhei arduamente para dar uma
vida digna à minha família. E consegui. Dei-lhes tudo o que não tive. São o
melhor que tenho nesta vida. Sem eles não conseguiria aguentar o que estou a
passar. É muito duro. Vivemos uma cultura do sucesso. Para o vencedor, pouco
importa se foi uma escalada de roubo e trapaça a todos os seus conhecidos. Isso
não interessa nada desde que tenha dinheiro, seja influente, e bem-sucedido na
vida, todos lhe prestam vassalagem. Estamos numa selva onde a lei do mais forte
impera. Os fracos, os desafortunados pela sorte, um a um, vão sendo dizimados
como árvores na floresta pela vontade do homem.
Vou partir sem nada, com menos do que quando aqui entrei. Estou a
limpar as lágrimas do rosto. Não devo aparentar fragilidade lá fora. Amanhã é
outro dia. Vou-me embora. Vou para casa, para o meu porto de abrigo. Lá tenho
um abraço da minha mulher e dos meus filhos à minha espera. Há alguma riqueza
maior? Amanhã será outro dia!”
(Singela homenagem sentida a um amigo)
DEZ DIAS DEPOIS…
No princípio do mês passado, abriu uma nova sapataria na
Rua do Almoxarife –saliento que é uma transversal, com cerca de 50 metros, que
liga as artérias das Padeiras e Eduardo Coelho. A chover no molhado, digo também que, na Baixa, há umas ruas
principais que ainda vão tendo circulação de transeuntes, como é o caso das referidas
Padeiras e Eduardo Coelho, e outras sem movimento e que pouquíssima gente
atravessa, no caso em análise e a servir de exemplo, como aquela de Almoxarife.
Para complementar o meu raciocínio e melhor se entender, estas duas vias principais
estão em excedente, maioritariamente, ocupadas comercialmente com o ramo de venda
de sapatos. Ora, penso, que já podemos antever que a abertura de mais uma
sapataria numa ruela secundária ao pé de gigantes com décadas de traquejo –e
que alguns estão a encerrar- é puro suicídio empresarial. Continuando na
especulação, poderemos também interrogar: o que temos nós a ver com a vontade livre
e legítima de alguém abrir um qualquer estabelecimento, nem que seja no inferno? Nada! Ninguém tem absolutamente
nada a ver com o assunto. A não ser que…?
A não ser que este projeto
tivesse sido financiado pelo IEFP, Instituto de Emprego e Formação
Profissional. Nesse caso já teremos, uma vez que, embora seja uma retribuição
do desempregado, o financiamento é com dinheiros públicos. E ao que parece foi
mesmo. Não consegui ouvir o investidor, que neste caso era uma senhora ainda
nova. Passei lá nos primeiros dias e prometi passar mais tarde para fazer a
notícia. Quando voltei já estava encerrada. Só o eterno “volto já”, na porta de vidro, lá permanece pendurado como símbolo
de um futuro que acabou ontem sem ter começado. Por esta impossibilidade de
comunicação, falei com a proprietária da loja, a senhoria, que, não
identificando intencionalmente, me afirmou que de facto assim aconteceu: “o plano de investimento foi através do IEFP.
Não sei como é que aprovaram um projeto de sapataria para aquele local. O
arrendamento do espaço foi contratualizado através de uma agência imobiliária.
Estranhei, mas arrendei por um ano. A renda até não era cara: 150 euros. A
candidata a comerciante pagou dois meses adiantados, como prescreve a lei. Foi
um mês para o intermediário do contrato e eu recebi outro. Passados uns dias a
minha arrendatária já me estava a transmitir que o negócio não estava a dar. E
que, mais que certo, não estaria lá mais do que esse tempo determinado, de
sessenta dias. Sei agora que já não está –de facto só lá se encontram os
balcões e a máquina registadora, acrescento eu. Continua a senhoria, acho que está a tentar vender a sua
existência ao desbarato. Admite-se uma coisa destas?
Já escrevi vários textos sobre a
ligeireza com que estão aqui a abrir novos investimentos com verbas antecipadas
pelo IEFP. Em juízo de valor que vale o que vale, parece-me que se houvesse
mais bom senso e uma maior responsabilidade neste instituto público, que se
exige necessariamente a quem decide, poder-se-iam evitar desastres como este. Porque,
na maior inocência, é preciso interrogar: como se sentirá, agora, a senhora
depois desta experiência falhada? Quantos dramas em subsequência, como castelos de cartas, se vão seguir na sua
vida? Sendo mauzinho, posso também especular: e se, eventualmente, este
falhanço fosse previsto à partida? Claro que quero acreditar que nada disto
teria acontecido, mas podemos ser levados a pensar assim.
Calculo que, por parte do IEFP,
quem deu luz verde a este absurdo plano sem saber o que estava a licenciar, depois
de ter ratificado com a sua assinatura, lavou as mãos da responsabilidade
social na tina do deixa-correr e
limpou-as na toalha do sistema. Alguém terá de arcar com as culpas. Naturalmente
que sempre foi assim. Mas os ventos que sopram agora não deveriam exigir outra
postura? Sei lá! Se calhar não! O mais certo é que, no vamos à vida que a morte é certa e coitados dos que partem, o
responsável teria ficado com a sua consciência em paz Talvez valesse a pena
pensar nisto. Não?
O JOÃO SOPROU UMA VELA
Num destes dias de agosto canicular, encontrei o senhor João
numa destas ruas estreitas. Eu sabia que ali para os lados da Fundação Inatel,
na Rua António Granjo, há pouco tempo houve romaria de amigos para lhe dar os
parabéns por mais um feliz aniversário. Afinal não é todas as semanas que se
comemoram 84 verões com muita vida e maior destreza mental. Com o motivo da
efeméride, estava dado o mote para começar uma longa conversa, em circum-palestra, acerca do que se passa
à nossa volta.
Quase aposto que não haverá por
aqui ninguém que não conheça o senhor João Fernandes. Mesmo assim, e não vá alguém
erguer o dedo, vou rogar-lhe que seja ele a fazer a apresentação e nos conte um
cheirinho da vivência do homem
simples, discreto e filho do povo, que tenho à frente. Para complementar,
sempre vou escrevendo que, pelo reconhecido mérito enquanto diretor da Agência
da Fundação Inatel do distrito de Coimbra, foi agraciado com a medalha de ouro
da cidade no ano passado. Naquela instituição desde 1984, o João, calculo, com
uma lágrima no canto do olho, está a esvaziar as estantes e a encher malas com
memórias de uma vintena de anos. Em setembro, próximo, deixa a atividade que
mais gozo lhe deu, numa vida cheia, prenhe de trabalho, mas com muita paixão e
amor. Vamos então ver o que diz o João Fernandes:
“Muito Obrigado, Luís, pelos parabéns. É verdade que comemorei há dias
as minhas 84 primaveras –a propósito como é que você soube? Mas, deixe lá, não
responda, passemos à frente. Sinto-me ainda com forças para laborar e com
vontade de fazer coisas. Para o próximo mês, sim, vou deixar a casa, e a causa,
a que me entreguei totalmente nos últimos vinte anos. Enquanto representante do
Inatel, realizei este ano a 22.ª feira Medieval, mas vou continuar a andar por
aí e, se me pedirem, estarei sempre disponível para ajudar.
Como deve imaginar já percorri muitas veredas espinhosas. O que me
custa mais suportar são as cretinices e as rasteiras dos maneirinhos e dos
oportunistas. Gente mal preparada e que não sabe o que é a vida. Tenho medo do
que estão a fazer à juventude; do que estão a fazer ao nosso país. Não temo a
velhice. Só tenho receio de ficar inutilizado numa cama. Sempre trabalhei ao
longo do meu respirar e talvez por isso veja o meu futuro com apreensão.
Considero que os meus 780 euros de reforma, depois de uma caminhada sempre a
dar corda aos sapatos, ficam muito aquém do que eu e a minha mulher –que não
teve direito a aposentação remunerada- precisamos para vivermos um final feliz.
Mas não importa, sinto-me realizado.
Perguntava-me você sobre como vejo a Baixa? Ai, meu amigo, isto é uma
dor de alma –e leva a mão ao peito. Vejo
toda esta área histórica e comercial com muita melancolia. Com uma grande
tristeza. Agora está tudo vazio; ruas e estabelecimentos sem movimento e a
declinarem. Tenho dúvidas que volte a recuperar os tempos de outrora. Repare,
quando os consultórios médicos estavam instalados nas ruas principais, chegou a
haver aqui 12 farmácias. O facto de se ter retirado o trânsito automóvel teve
muita influência para a sua queda. Apesar do meu ceticismo, quero acreditar que
a Baixa tem futuro. Precisamos de famílias a morarem aqui. A Câmara Municipal
deveria fomentar mais o arrendamento para casais jovens. É urgente vermos crianças
a brincar por aqui.”
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