sexta-feira, 9 de agosto de 2013

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "O ÚLTIMO OLHAR", deixo também as crónicas "DEZ DIAS DEPOIS..."; e "O JOÃO SOPROU UMA VELA".



O ÚLTIMO OLHAR

“Encerrei hoje a minha loja para sempre. Estou sozinho, sentado no meio da penumbra, no ambiente que reflete o meu estado de espírito. Por entre as frestas do estore, onde uns fios dourados do Sol parecem querer confortar-me, vejo pessoas a passar na rua. Vultos apressados, cabisbaixos, em busca de soluções para as suas vidas intrincadas, emaranhados em teias que cada um tece e que, mais tarde, vêm a ser o verdugo fatal que nos corta a cabeça da realidade e extingue a esperança que dá alento.
Não posso evitar desmanchar-me em prantos múltiplos. E choro como nunca chorei assim. Nos últimos tempos fiquei muito vulnerável. Sinto-me um vidrinho. À mínima imagem de tristeza os olhos inundam-se-me como recanto seco surpreendido por uma intensa chuva de verão. Sinto-me desfalecer. Há muito que as forças me abandonaram. Agora que sei que não vou voltar a abrir a porta, que está à minha frente e que foi transposta por milhares e milhares sem conta, sinto-me completamente vazio por dentro. Como se alguém, à força e sem pedir licença, tivesse vindo arrancar-me a alma. Comprar, vender, foi sempre o que gostei de fazer e fiz ao longo da vida. Trabalho desde criança. Os objetos, poucos que ainda restam nas prateleiras, como se pedissem ajuda, parecem mirar-me em suplício. Olho para o canto esquerdo, para a imagem da Rainha Santa que guardo religiosamente desde o primeiro dia que abri o negócio. Quantas vezes, num olhar, lhe implorei que me ajudasse para ultrapassar as dificuldades que me assoberbavam. E sempre me valeu. Procurei agradecer-lhe em visitas diárias à igreja. Mas nos últimos anos abandonou-me. Sei lá, às tantas, os pedidos foram tantos, de tantos, que, se calhar, teve que esquecer alguns velhos conhecidos como eu.
Estou envolvido pelo silêncio. Tudo à minha volta parece sofrer comigo. Até aquela coluna de pedra, que tanto me custou pagar, parece chorar e estar carregada de solidão e desilusão. Quem sabe a questionar-se para onde irá parar depois de se tornar inútil? As coisas são como a água dos rios, só têm valor, pela utilidade, pela vida que geram na nossa existência. A água precisa de se sentir viva, a correr, sempre a correr, encadeada na mesma água, na direção do mar. Se coartarem o seu destino, mais tarde ou mais cedo sucumbirá.
Sei que lutei muito. Muito mesmo. Trabalhei arduamente para dar uma vida digna à minha família. E consegui. Dei-lhes tudo o que não tive. São o melhor que tenho nesta vida. Sem eles não conseguiria aguentar o que estou a passar. É muito duro. Vivemos uma cultura do sucesso. Para o vencedor, pouco importa se foi uma escalada de roubo e trapaça a todos os seus conhecidos. Isso não interessa nada desde que tenha dinheiro, seja influente, e bem-sucedido na vida, todos lhe prestam vassalagem. Estamos numa selva onde a lei do mais forte impera. Os fracos, os desafortunados pela sorte, um a um, vão sendo dizimados como árvores na floresta pela vontade do homem.
Vou partir sem nada, com menos do que quando aqui entrei. Estou a limpar as lágrimas do rosto. Não devo aparentar fragilidade lá fora. Amanhã é outro dia. Vou-me embora. Vou para casa, para o meu porto de abrigo. Lá tenho um abraço da minha mulher e dos meus filhos à minha espera. Há alguma riqueza maior? Amanhã será outro dia!”

(Singela homenagem sentida a um amigo)




DEZ DIAS DEPOIS…

 No princípio do mês passado, abriu uma nova sapataria na Rua do Almoxarife –saliento que é uma transversal, com cerca de 50 metros, que liga as artérias das Padeiras e Eduardo Coelho. A chover no molhado, digo também que, na Baixa, há umas ruas principais que ainda vão tendo circulação de transeuntes, como é o caso das referidas Padeiras e Eduardo Coelho, e outras sem movimento e que pouquíssima gente atravessa, no caso em análise e a servir de exemplo, como aquela de Almoxarife. Para complementar o meu raciocínio e melhor se entender, estas duas vias principais estão em excedente, maioritariamente, ocupadas comercialmente com o ramo de venda de sapatos. Ora, penso, que já podemos antever que a abertura de mais uma sapataria numa ruela secundária ao pé de gigantes com décadas de traquejo –e que alguns estão a encerrar- é puro suicídio empresarial. Continuando na especulação, poderemos também interrogar: o que temos nós a ver com a vontade livre e legítima de alguém abrir um qualquer estabelecimento, nem que seja no inferno? Nada! Ninguém tem absolutamente nada a ver com o assunto. A não ser que…?
A não ser que este projeto tivesse sido financiado pelo IEFP, Instituto de Emprego e Formação Profissional. Nesse caso já teremos, uma vez que, embora seja uma retribuição do desempregado, o financiamento é com dinheiros públicos. E ao que parece foi mesmo. Não consegui ouvir o investidor, que neste caso era uma senhora ainda nova. Passei lá nos primeiros dias e prometi passar mais tarde para fazer a notícia. Quando voltei já estava encerrada. Só o eterno “volto já”, na porta de vidro, lá permanece pendurado como símbolo de um futuro que acabou ontem sem ter começado. Por esta impossibilidade de comunicação, falei com a proprietária da loja, a senhoria, que, não identificando intencionalmente, me afirmou que de facto assim aconteceu: “o plano de investimento foi através do IEFP. Não sei como é que aprovaram um projeto de sapataria para aquele local. O arrendamento do espaço foi contratualizado através de uma agência imobiliária. Estranhei, mas arrendei por um ano. A renda até não era cara: 150 euros. A candidata a comerciante pagou dois meses adiantados, como prescreve a lei. Foi um mês para o intermediário do contrato e eu recebi outro. Passados uns dias a minha arrendatária já me estava a transmitir que o negócio não estava a dar. E que, mais que certo, não estaria lá mais do que esse tempo determinado, de sessenta dias. Sei agora que já não está –de facto só lá se encontram os balcões e a máquina registadora, acrescento eu. Continua a senhoria, acho que está a tentar vender a sua existência ao desbarato. Admite-se uma coisa destas?
Já escrevi vários textos sobre a ligeireza com que estão aqui a abrir novos investimentos com verbas antecipadas pelo IEFP. Em juízo de valor que vale o que vale, parece-me que se houvesse mais bom senso e uma maior responsabilidade neste instituto público, que se exige necessariamente a quem decide, poder-se-iam evitar desastres como este. Porque, na maior inocência, é preciso interrogar: como se sentirá, agora, a senhora depois desta experiência falhada? Quantos dramas em subsequência, como castelos de cartas, se vão seguir na sua vida? Sendo mauzinho, posso também especular: e se, eventualmente, este falhanço fosse previsto à partida? Claro que quero acreditar que nada disto teria acontecido, mas podemos ser levados a pensar assim.
Calculo que, por parte do IEFP, quem deu luz verde a este absurdo plano sem saber o que estava a licenciar, depois de ter ratificado com a sua assinatura, lavou as mãos da responsabilidade social na tina do deixa-correr e limpou-as na toalha do sistema. Alguém terá de arcar com as culpas. Naturalmente que sempre foi assim. Mas os ventos que sopram agora não deveriam exigir outra postura? Sei lá! Se calhar não! O mais certo é que, no vamos à vida que a morte é certa e coitados dos que partem, o responsável teria ficado com a sua consciência em paz Talvez valesse a pena pensar nisto. Não?




O JOÃO SOPROU UMA VELA

 Num destes dias de agosto canicular, encontrei o senhor João numa destas ruas estreitas. Eu sabia que ali para os lados da Fundação Inatel, na Rua António Granjo, há pouco tempo houve romaria de amigos para lhe dar os parabéns por mais um feliz aniversário. Afinal não é todas as semanas que se comemoram 84 verões com muita vida e maior destreza mental. Com o motivo da efeméride, estava dado o mote para começar uma longa conversa, em circum-palestra, acerca do que se passa à nossa volta.
Quase aposto que não haverá por aqui ninguém que não conheça o senhor João Fernandes. Mesmo assim, e não vá alguém erguer o dedo, vou rogar-lhe que seja ele a fazer a apresentação e nos conte um cheirinho da vivência do homem simples, discreto e filho do povo, que tenho à frente. Para complementar, sempre vou escrevendo que, pelo reconhecido mérito enquanto diretor da Agência da Fundação Inatel do distrito de Coimbra, foi agraciado com a medalha de ouro da cidade no ano passado. Naquela instituição desde 1984, o João, calculo, com uma lágrima no canto do olho, está a esvaziar as estantes e a encher malas com memórias de uma vintena de anos. Em setembro, próximo, deixa a atividade que mais gozo lhe deu, numa vida cheia, prenhe de trabalho, mas com muita paixão e amor. Vamos então ver o que diz o João Fernandes:
Muito Obrigado, Luís, pelos parabéns. É verdade que comemorei há dias as minhas 84 primaveras –a propósito como é que você soube? Mas, deixe lá, não responda, passemos à frente. Sinto-me ainda com forças para laborar e com vontade de fazer coisas. Para o próximo mês, sim, vou deixar a casa, e a causa, a que me entreguei totalmente nos últimos vinte anos. Enquanto representante do Inatel, realizei este ano a 22.ª feira Medieval, mas vou continuar a andar por aí e, se me pedirem, estarei sempre disponível para ajudar.
Como deve imaginar já percorri muitas veredas espinhosas. O que me custa mais suportar são as cretinices e as rasteiras dos maneirinhos e dos oportunistas. Gente mal preparada e que não sabe o que é a vida. Tenho medo do que estão a fazer à juventude; do que estão a fazer ao nosso país. Não temo a velhice. Só tenho receio de ficar inutilizado numa cama. Sempre trabalhei ao longo do meu respirar e talvez por isso veja o meu futuro com apreensão. Considero que os meus 780 euros de reforma, depois de uma caminhada sempre a dar corda aos sapatos, ficam muito aquém do que eu e a minha mulher –que não teve direito a aposentação remunerada- precisamos para vivermos um final feliz. Mas não importa, sinto-me realizado.
Perguntava-me você sobre como vejo a Baixa? Ai, meu amigo, isto é uma dor de alma –e leva a mão ao peito. Vejo toda esta área histórica e comercial com muita melancolia. Com uma grande tristeza. Agora está tudo vazio; ruas e estabelecimentos sem movimento e a declinarem. Tenho dúvidas que volte a recuperar os tempos de outrora. Repare, quando os consultórios médicos estavam instalados nas ruas principais, chegou a haver aqui 12 farmácias. O facto de se ter retirado o trânsito automóvel teve muita influência para a sua queda. Apesar do meu ceticismo, quero acreditar que a Baixa tem futuro. Precisamos de famílias a morarem aqui. A Câmara Municipal deveria fomentar mais o arrendamento para casais jovens. É urgente vermos crianças a brincar por aqui.”






Sem comentários: