Num
amável convite pela organização das “Jornadas Transdisciplinares”, durante cerca de uma hora, dissertei hoje na
Faculdade de Psicologia de Coimbra sobre o tema “Rostos Nossos
(Des)conhecidos”. Numa resenha histórica, englobei a Coimbra de
antanho e a Coimbra de hoje.
Deixo
aqui o texto escrito exclusivamente para o efeito:
ROSTOS
NOSSOS (DES)CONHECIDOS - DISSERTAÇÃO
A
história das cidades remonta há milhares de anos. As primeiras
terão surgido na Mesopotâmia, ao longo do rio Nilo, e sempre
resultante da junção de pequenos lugares habitados. O crescimento
de grandes impérios antigos e medievais levou ao aparecimento de
grandes urbes como, por exemplo, Roma.
Durante a Idade
Média, na Europa, uma cidade era tanto uma entidade
política-administrativa como um conjunto de casario agregado. Com um
quadro legislativo próprio, era o senhor feudal que impunha a sua
lei. Com a queda do feudalismo, pela crise gerada nas relações
entre senhores e servos, pela contínua imposição de obrigações,
tributos e necessidade de permanecerem agarrados à terra, dos
primeiros sobre os últimos, as cidades multiplicaram-se. Os
camponeses, com o contingente populacional a crescer a par com as
actividades artesanais e comerciais, recorrendo aos seus próprios
meios de fuga para a liberdade, começaram a abandonar os feudos e a
refugiar-se na periferia da cidade muralhada, onde, com a criação
de feiras e mercados, permitia um melhor escoamento de produtos e,
sobretudo, fugir ao absoluto controlo da entidade administrativa. Com
o advento do Capitalismo e início da Globalização, com as viagens
marítimas de circum-navegação, estavam criadas as condições para
o desenvolvimento. Com a formação das associações de classe,
“fraternidades”, e as “corporações”, que agregavam os seus
membros em torno de estatutos comuns, bandeiras e santos padroeiros,
surgiam as oficinas, em que a loja era o ponto de venda do produto aí
criado, com os seus mestres, instaladas em ruas com ofício
designado.
Em
todas estas cidades, grandes ou pequenas, calcorreando as ruas, havia
um quadro social comum que as unia: os loucos, os
pedintes e a humilde gente do povo.
Os
primeiros, os loucos, são seres com um elevado grau de demência que
vagueiam na comunidade praticamente com total impunidade. Chegando a
ser agressivos para o meio em que se inserem. Entre sussurros de
espasmo verbal, nessa altura, algumas vezes pediam uma côdea ou uma
moeda. No entanto, apesar da tensão, tal como hoje, assistia-se a
uma desvalorização para os seus actos tresloucados.
Os
segundos, os pedintes, ao longo da história, são as sombras pardas
da colectividade. Tal como hoje, umas vezes mendigam por necessidade,
outras por vício de obter um rendimento fácil e sem esforço.
Os
terceiros, a gente humilde do povo, são a matriz identitária de um
lugar habitado. Esforçados trabalhadores divididos em várias áreas,
encontram no labor o único meio honesto de sobreviverem.
Com
o aparecimento da Revolução Industrial, em finais do século XVIII,
as migrações aumentaram do campo para a a cidade e estas
desenvolveram-se cada vez mais junto de rios e em torno do litoral.
Com o Estado-nação a surgir um século antes pelas ideias
iluministas e a serem levadas à prática pela Revolução Francesa,
estavam criadas todas as condições para a transformação da vida
em sociedade urbana. Com a divisão do trabalho, com o
burguês/cidadão a ser classificado de acordo com a sua função,
se, por um lado, com este processo de mudança económica, pela
primeira vez até aí, o padrão de vida das pessoas comuns começou
a melhorar, por outro, aumentaram as desigualdades sociais e,
consequentemente, cresceram os loucos, os pedintes e a gente humilde
do povo. Sem grande rigor histórico e científico, será ao longo do
século XIX que surge uma nova classe: os inadaptados. Embora
bem-sucedidos na vida, a meio do percurso vieram a tergiversar,
abandonam o rumo que tudo parecia indicar traçado e, muitas vezes
ancorados em adicções, transformam-se em vidas errantes, em sombras
de nós. Será porventura uma classe excedentária dos novos tempos,
a limalha societária que transborda de uma sociedade que não tem
complacência com os desiguais, os não-formatados, os não-alinhados
nas suas convenções.
E EM
COIMBRA?
Ao
longo de todo o século XIX, retratados em publicações chegadas até
nós, entre loucos, pedintes, gente humilde do povo e inadaptados,
foram muitos os personagens típicos na cidade de Coimbra. Nos
últimos, nos inadaptados, muitos deles foram também gerados no meio
estudantil.
Ao longo do
pretérito século XX proliferaram os “cromos”, designação
atribuída aos diferentes entre iguais, que pela sua excentricidade
deixaram forte marca na cidade. Embora se repartissem entre todas as
categorias, foram alguns loucos e pedintes que atingiram notoriedade
lendária, em projecção nacional e além-fronteiras, precisamente
por estarem fortemente ligados aos usos e costumes dos estudantes
universitários. Para ser mais exemplificativo, falo exactamente de
dois personagens, que conheci bem: O “Tatonas”, de nome de
registo apenas tratado como Daniel e a restante alcunha como
apêndice, e o “Taxeira”, registado civilmente como Manuel dos
Reis Carvalheira, que tem o seu nome gravado para a posteridade na
toponímia coimbrã.
Neste
século XXI, pela crise económica instalada, que pela falta de meios
estatais, tantas vezes desviados para fins malditos, tem vindo a
gerar instabilidade social, é provável que hoje em Coimbra o leque
de abrangência seja muito maior do que se pensa, quer na demência,
quer na mendicidade, quer nos classificados como inadaptados. O povo,
quer com restrições financeiras e apertos na bolsa e no coração
ou não, continua humilde e boa gente. Talvez por isto, a Dona
Adelaide, uma das retratadas na exposição, baptizada por mim como a
“última tremoceira”, com a vetusta idade de 93 anos, continue a
trabalhar diariamente na Rua Visconde da Luz. Se auferisse uma
reforma digna que lhe permitisse gozar uma legítima velhice na paz
dos deuses, certamente, não continuaria a laborar exposta ao frio e
ao calor da cidade.
O
OLHAR DE QUEM PASSA SOBRE QUEM ESTÁ
Pela
minha experiência, constata-se que estes “disfuncionais”,
enquanto são vivos, aparentemente, não desencadeiam exteriorizações
de extraordinário afecto. Os transeuntes, passando ao seu lado,
ignoram-nos completamente. Parecem fazer deles apenas mais uma
personagem que deambula pelas ruas estreitas e largas do casco urbano
de uma cidade velha. No entanto, quando morrem -quase sempre
abandonados e sozinhos- provocam um estertor de sofrimento colectivo.
As manifestações de dor são pungentes como se tratasse de uma alta
individualidade.
Especulando, dá
para pensar que durante a vida repetitiva e vazia destas pessoas,
enquanto circularam por entre nós, por que nunca lhes tivéssemos
ligado muito nem dado qualquer importância, perante o facto
consumado do seu desaparecimento, subitamente somos acometidos de um
certo complexo de culpa, como se, pela falta de atenção, nos
considerássemos responsáveis pelo seu nefasto sumiço.
Se respondermos sem
pensar, assim no óbvio, estou certo que facilmente nos pronunciamos
com uma palavra: hipocrisia. Porém, a meu ver, esta declaração de
pesar é muito mais profunda e, estranhamente, é mesmo sentida como
um corte na alma de cada um.
Gostava de
interrogar: afinal, o que são estas pessoas numa cidade? Carlos do
Carmo, em fado versejado e musicado, chamou-lhes os “loucos na
cidade”. Há cerca de 30 anos li uma tese de um advogado francês
–que já não recordo o nome- em que defendia que estes indivíduos,
diferentes da maioria no estapafurdismo, tal-qualmente como a pequena
delinquência, eram um quebrar da rotina nas urbes e pela sua acção
pragmática, ainda que por vezes negativa, impediam que, em mimética
estandardizada, fosse tudo igual. Por outras palavras,
transportemo-nos para um agregado onde não se ouve um barulho, uma
imprecação, onde tudo é previsível, onde a paz social é uma
constante, um lugar paradisíaco, será que conseguiríamos viver num
lugar assim? Penso que não. O homem é um ser social e ao mesmo
tempo associal, tanto precisa de estar só como acompanhado. É capaz
das maiores demonstrações de carinho, de solidariedade e bondade.
No entanto, este mesmo homem, a qualquer momento, é capaz de, num
repente, virar homicida e assassinar sem mácula na consciência. Se
for em guerra, com a desculpa de estado de necessidade, mata dezenas,
centenas, milhares de humanos. É portanto, em sincronismo, um ser
pacífico e conflituoso. Isto para dizer que, para além de todos
sermos bipolares, temos absoluta necessidade de exteriorizar os dois
sentimentos que transportamos dentro de nós como instintos siameses.
E nova
interrogação: o que tem estes dislates que descrevi atrás a ver
com os dois comportamentos antagónicos –desprezo em vida e carinho
na morte- perante um óbito? Comportamento que pode não ser avaliado
somente num vagabundo de rua e ser alguém relativamente chegado?
Pelo conhecimento
implícito, um falecimento desencadeia sempre em nós várias
sensações desencontradas. Lembra-nos, por exemplo, que somos
finitos, que a nossa vida é efémera, que a qualquer momento podemos
perecer –este pressentimento torna-se mais latente tanto quanto
mais velhos estivermos e próximos do fim. Mas, acima de tudo, na
generalidade, no âmago de cada um, acende a luz do perdão, da
caridade, e extingue ódios recalcados. É como se aquela imagem da
morte de outrem nos viesse lembrar que todos erramos e somos
pecadores. Que somos seres frágeis e fracos, e que, um dia, não se
sabe quando, iremos também precisar daquela absolvição. Digamos,
por outros termos, que, no nosso viver compulsivo, o desaparecimento
de alguém, uma morte súbita, que tomemos conhecimento, toma assim
no quotidiano o efeito de choque de um objecto arremessado na nossa
cabeça.
Por
outro lado, isto em relação ao desaparecimento destas pessoas
invulgares -chamemos-lhe dementes ou outro epíteto qualquer- que nos
cruzamos na rua mas que, provavelmente, nunca trocamos uma palavra ou
um sorriso mas que, inconscientemente, passamos a admirá-los, penso,
para além do sentimento de perda, solta também várias intuições
diferenciadas. Enquanto vivos, transeuntes na cidade, olhamos para
eles como o outro lado do espelho, o reverso de nós, a nossa alma
despida. Ao mirá-los, naquele estado decrépito, é como se
fizéssemos comparação entre o que somos e o que poderíamos ser.
Vemo-los como a materialização dos nossos medos. E ao constatar que
somos diferentes para melhor recebemos uma mensagem de bem-estar
instantaneamente. É como se ao vermos uma pessoa assim, diminuída,
nos obrigasse a um balanço imediato, mas também passível de ser
emergente num futuro próximo e esta impressão, pela dureza da
imagem viva, activa a nossa defensiva e alerta-nos para um hipotético
perigo. Esta ilacção, em projecção mental, pode continuar até ao
desaparecimento físico e visual da pessoa fixada pelo nosso olhar.
Nesta altura, quando perdemos esta visualização, haverá um
sentimento de culpa que se liberta em pena e dor materializada na
disponibilidade em fazer o que for preciso para colmatar o que não
foi feito anteriormente. Como se, em cada um de nós, houvesse uma
implícita e absoluta necessidade de expiação de culpa pelo lapso.
Poderemos pensar que haverá nesta manifestação um descarregar, um
lavar da alma, por, durante anos e anos, nunca lhe darmos qualquer
importância significante.
O MEU
OLHAR
Sempre
gostei muito de escrever. Há cerca de quatro décadas que exerço
esta minha inclinação. Sempre escrevi regularmente para a “Página
do Leitor” dos dois jornais diários da cidade, o Diário de
Coimbra e o Diário as Beiras. Porém, como tinha de estar limitado à
boa-vontade das redacções, acabava por ser um suplício a não
publicação dos textos. Quem escreve por amor, fazendo-o com total
entrega diariamente, precisa de sentir que é lido. O seu leitor é o
carburante que alimenta a “máquina” que produz textos em frases
encadeadas umas nas outras, mas versando sempre um sentido positivo
assente no estético e moral. Alegadamente, sem leitor não haverá
escritor.
Foi
então que em 2007, com a ajuda de uma amiga para a problemática da
Internet, criei o Blogue Questões Nacionais. E então, a partir daí,
senti-me um passarinho pronto a voar. Numa década, já escrevi cerca
de 11 mil posts, que se dividem em crónicas, textos de análise,
humor e drama. De forma acutilante, incido essencialmente sobre a
Baixa da cidade. Como sou comerciante, porque sinto na pele o
sofrimento de uma nobre profissão ancestral que decai a olhos
vistos, falo muito sobre o comércio na cidade.
Gosto de intervir
na sociedade. Tenho uma necessidade premente de me fazer ouvir. Pode
muito bem ser para alimentar o ego. É provável! Mas pode também
ser pela minha história de vida. Afinal somos o resultado da adição
de várias parcelas; o meio em que nascemos e crescemos, os caminhos
que percorremos, os tombos que nos fizeram cair e a mão anónima e
desinteressada que nos ajudou a levantar. Como amplificador, tento
elevar os queixumes de quem trabalha e reside na zona velha e
endereçá-los às autoridades competentes. Sem falsa modéstia, sem
peneiras, sou um mero mensageiro que, pro bono, coloca ao serviço da
comunidade um talento que julga possuir.
Não sei se o que
faço, pela subjectividade impressa, é jornalismo na verdadeira
acepção da palavra. Mais que certo não será. O que sei é que no
que escrevo, para além do princípio da seriedade que me rege,
aplico quase tanto carinho como de um pai para filho. Qualquer
escrito passa a ser meu, muito meu, gerado nas minhas entranhas.
Por
outro lado, sempre me preocupei em dar voz aos mais humildes, aqueles
que, vestidos de anonimato, com a sua idiossincrasia, calcorreiam as
pedras milenares da Baixa de Coimbra e nunca são motivo de atenção
pública, nem mesmo no último suspiro. Por que todos temos uma
narrativa, falo com eles, ouço os seus lamentos, enalteço as suas
virtudes e, romanceando com carinho, conto as suas histórias de
vida. Como a justificar a sua existência silenciosa e errante entre
nós, talvez com a veleidade de servirem como documento de estudo
social comparativo para a posteridade, tento mostrar que são pilares
da comunidade –por que, embora pareça que não, de facto, são
mesmo nossos sustentáculos existenciais. Ainda que subtilmente, a
sociedade revê-se em figuras que quebram as normas societárias e
alteram as rotinas e, sem dar por isso, acaba a amar os diferentes
entre iguais.
A ideia
subjacente a esta iniciativa com o título “ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS” é retirar do silêncio da clandestinidade
citadina pessoas que conhecemos a fisionomia mas, para além disso,
nada sabemos delas. Amam, sofrem, têm laços familiares, vivem e
sobrevivem de quê? Dando-lhes visibilidade, poderemos fazer algo por
elas? Ou estamos simplesmente a retratar a sua passagem efémera
nesta vida?
Nestes dez anos, já
escrevi e retratei mais de uma centena de personagens que passam ou
passaram pelas ruelas e becos da zona histórica. Pode perguntar-se o
motivo de apenas figurarem 13 rostos - que, como um está duplicado,
são apenas 12- nestas “Jornadas Transdisciplinares”? A razão é
muito simples: obedeceu a um critério de escolha dos responsáveis
pelas jornadas. Mas, quanto a mim, serem estas pessoas ou outras, não
lhe retira importância. Valem pela simbologia. A humanidade evoluiu
muitíssimo na informatização tecnológica de meios que nos
permitem saber tudo o que se passa no outro lado do mundo e até
adivinhar o futuro. Facilmente poderemos saber que clima podemos
contar dentro de um mês. No oposto, continuamos a ter imensas
dificuldades em comunicar com o nosso confinante, falando
pessoalmente com o nosso vizinho do lado.
Se esta exposição
nos fizer pensar, nem que seja somente no tempo em que estou aqui a
palrar como um papagaio, tenho a certeza de que estamos a contribuir
para construir à nossa volta um mundo melhor.
Muito obrigado pelo
convite.
António Luís
Fernandes Quintans
2 comentários:
Como sempre...
De uma sensibilidade acima da média, uma clarividência exemplar e a brincar com as palavras como só (alguns) filólogos sabem :)
Abraço!!!
Que giro, Parabens pai! Como foi a conferencia, correu bem? Um beijinho!
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