quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

EDITORIAL: DETALHES QUE VÃO DESAPARECENDO DA BAIXA

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




A mostrar que a Baixa está cada vez mais desertificada e é pouco apetecível para quem comercializa, contrariamente a anos anteriores, os vendedores de bonecos artesanais de presépio fabricados em Barcelos -já que Coimbra, na última década, perdeu a última fábrica de barros tão característicos da cidade- não estiveram presentes com bancas na Praça do Comércio neste último Dezembro.
Pode ser um pormenor entre outros, mas é nestes detalhes, ínfimos, que se vê o estado evolutivo da zona histórica. Aos poucos, sem que demos por isso, vão desaparecendo pequenos serviços que, pela companhia diária ou temporal, fazem parte de nós. Quando encerram, por parte do público, vem a conhecida exclamação geral: “encerrou? Ai, não pode ser! Faz tanta falta!
A questão que se coloca é sempre a mesma: porquê?
Muito “porquê” ou “por quê” se levanta. A principal razão é a “prestação social” que estando dentro de nós deixou de funcionar. Esta denominada prestação social é a forma como nos importamos e relacionamos com os outros -sobretudo e nomeadamente com os mais pequenos, aqueles que fazendo algumas moedas vão conseguindo equilibrar o seu dia-a-dia e à custa deste magro pecúlio financeiro nos vão fazendo companhia. Os exemplos são enormes: é o cauteleiro -ainda há três na Baixa- é a vendedeira de tremoços e pistáchios -só a Adelaide resiste na Praça 8 de Maio- são os vendedores de castanhas -salvo erro são três os que vão teimando- é a vendedeira de bolos de Ançã -a dona Mercês já arrumou o pitoresco cesto, mas passou o negócio para outra senhora-, é o popular ardina -há um único na Lusa Atenas.
Como o nosso rendimento é cada vez mais depauperado -apesar do Governo jurar o contrário- e, por isso mesmo, o dinheiro ser cada vez mais contado no nosso bolso, vemos estas pessoas quase com olhar intrusivo, depreciativo e pouco valorativo da função comunitária que exercem para tornar a cidade menos silenciosa, apagada e rotineira. Desaparecendo estes pequenos transmissores do pitoresco, com eles vão o cheiro, o ruído, a animação que quebra o bucolismo das urbes. Sem nos apercebermos, pela interacção das redes sociais, estamos a criar um sociedade profundamente egoísta, reaccionária e individualista. Tudo é feito na penumbra. Na Internet, compra-se, vende-se, comunicamos em jeito de desabafo (sem pessoalidade), postamos textos e imagens sobre a nossa vida à espera da aprovação geral -embora saibamos que este “geral” é uma massa abstracta que se está a marimbar para o que plasmamos.
Sem começar agora, e este (de)mérito cabe por inteiro à ASAE, com a nossa passiva complacência e ordenação de grandes empresas e entidades políticas, está em marcha um movimento de extermínio do pequeníssimo mercador. Tudo em nome do povo e das boas práticas, diz-se. É de supor que dentro de uma década ou talvez menos já não se encontrem vendedores hortícolas e outros produtos do campo nos mercados tradicionais. Se duvidarem, vão ao Mercado Municipal Dom Pedro V, aqui em Coimbra, e tentem adquirir ovos caseiros, saídos das capoeiras e alimentados tradicionalmente.
Por o Governo ter criado a Unidade de Missão para a Valorização do Interior, a cargo da professora universitária e conimbricense Helena Freitas, dá impressão que é agora que, de facto, se vai olhar para a desertificação dos lugares mais longínquos do litoral do país. Não é por não confiar em Helena Freitas, que conheço e acredito que estará a fazer o melhor que sabe e pode, que afirmo que não acredito que sejam implementadas medidas estruturantes de salvação das zonas afectadas. Em vez de uma visão holística, do todo, falta uma preciosa atenção para tudo o que é pequenino. As aldeias, sem o pequeno café, sem mercearia, estão convertidas em dormitórios silenciosos, em cemitérios de vivos.
A televisão privada SIC, através de reportagens como, por exemplo, “Eu é que sou o presidente da Junta” e outras sobre a região transmontana, tem feito mais para tornar pública esta calamidade do que todos os governos nacionais dos últimos quinze anos.
E comecei a escrever esta crónica por que hoje fui a um pequeno quiosque da Baixa e, em conversa, fiquei a saber que a EDP, dentro em breve, vai suspender os recebimentos de energia eléctrica de consumidores particulares nestes pequeníssimos estabelecimentos. Apesar de não parecer, a situação é de tal modo grave que vai levar ao encerramento de mais algumas destas casas típicas -falei com dois operadores e a manifestação de preocupação pelo futuro foi o mesmo: encerrar. Um deles ainda me disse mais: “como uma das casas de venda de jogo da Baixa está em situação económica difícil -há quem fale já em fecho proximamente- também não temos raspadinhas para vender, estamos a fazer o quê, aqui? Jornais poucos se vendem. O tabaco continua a cair...
Se neste caso das raspadinhas, aparentemente, não se poderá fazer muito -por que este grande estabelecimento de jogo com abrangência nacional está dependente de uma boa relação comercial com a Santa Casa da Misericórdia e, ao que parece, não há-, já com a EDP é diferente. Esta grande empresa de capital maioritário chinês, que já foi nossa, detém (ou deveria deter) uma enormíssima responsabilidade social. Ao coarctar aos pequeníssimos lojistas este serviço, a administração saberá muito bem que está a mandar para o charco umas dezenas, senão centenas, de pessoas que, trabalhando muitas horas para servir os seus clientes, dão movimento aos centros urbanos.
Pelo menos até se dar com as bentas na porta encerrada, quem é que perde dois minutos a pensar nisto?

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