Dalila mora na Rua do Almoxarife e está
indignada. Veio ter comigo e, num misto de ordem e pedido de ajuda, retorque: “senhor
Luís, o senhor tem de vir ver o que está no chão da minha rua! Você tem de
escrever sobre esta indecência! Você conhece-me, sabe que já comi o pão que o
diabo amassou e não posso presenciar uma coisa daquelas!” – e leva-me com ela
na direcção da ruela que liga as Ruas das Padeiras e Eduardo Coelho.
Na estreita e curta artéria está
um monte de artigos, mais que certo, provindos de alguém que partiu de uma casa
próxima e, talvez em fuga de si mesmo, largou tudo, como se todos aqueles
objectos abandonados há muito tivessem perdido a razão que despertava a alma da
sua dona. Pelo chão da calçada eram visíveis uma mala de viagem, uns livros, um
manequim estropiado, calçado em relativo bom estado e uns bonecos de olhar
triste como a mostrar sofrimento por terem sido largados na pedra fria. Mas o
que chamava mais a atenção –e foi isto mesmo que provocou a revolta da moradora
da Baixa de Coimbra- eram vários bens alimentares, em bom estado, por ali
espalhados: massa, arroz, óleo, atum, salsichas e até bolachas. Vamos ouvir os
queixumes de Dalila: “já viu isto? Não há
direito de se fazer uma coisa destas! Tanta gente a passar fome e colocarem
tanta comida fora? Quem fez isto foi uma vizinha que era ajudada por uma
instituição de solidariedade! As organizações de bem-fazer têm de saber o destino
que os bens doados seguem. Casos como este não se podem repetir. Para quem dá
valor às coisas isto é demasiado doloroso. Faz doer o coração!”
TESTOS RELACIONADOS
"A desvalorização das coisas"
"Não há fome que não dê em fartura"
"Não se importe que a sua vez chegará"
"Baixa: assalto ao contentor"
"Aproveita o que não presta"
"As assimetrias desta sociedade"
"Baixa: os novos miseráveis"
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"Neste Natal o que queres, Eduardo?"
"Eduardo olhos de mágoa"
"Eduardo olhos de esperança"
"Carta a uma funcionária pública"
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