Chegou durante a madrugada à Baixa da cidade. Em boa
verdade já se falava que viria. A maioria não gosta muita dela. Acham-na
aborrecida, melosa. Mal nos apanha a jeito, sem pedir licença, cola-se, gruda-se
de forma sentida. É certo que é um amplexo,
um abraço, e hoje, que apesar de tanto de falar dele, poucos o praticam com a
profundidade exigida na união de dois corpos enquanto símbolo da
fraternidade e do amor. Um abraço para ter efeito espiritual terá de ser
retido, corpo contra corpo, durante pelo menos um minuto. Vivemos na era da
informação supersónica. Não podemos perder muito tempo, seja lá com o que for.
Quando nos debruçamos sobre algo importante e pensamos saber um pouco sobre a
matéria em análise já não interessa porque já foi ultrapassada. Estamos na
época dos ventos ciclónicos da informação, em que, num cruzamento de contrários,
um traz a boa nova e outro a sua
negação. Sentimo-nos moléculas
perdidas num oceano de detritos de conhecimento. Por estranho que pareça,
sabemos apenas que é cada vez mais ínfimo o nosso saber. Sabemos cada vez mais
que nada sabemos. Estamos no meio de uma guerra em que a todo o momento
rebentam morteiros ao nosso lado com imagens mortíferas, com decapitações e
fuzilamentos colectivos. Numa manipulação intencional, em que tudo indica que
temos de apanhar nas bentas a culpa,
como se, por um lado, fôssemos responsáveis directos pela consequência dos
actos que alguém praticou, por outro, em apelo surdo mas imperativo, em
injunção, ordem, a querer dizer-nos que temos de intervir. Num cinismo
compreensível ou talvez não, o emissor não quer saber se estas mensagens estão
a fazer mais vítimas e que, aparentemente, transforma o nosso mundo num imenso
hospital psiquiátrico. O que parece é haver um complot para nos enviar para o charco da tristeza, da depressão e
do sofrimento. Excepto quando dormimos, se bem que até este período necessário de
descanso está a ser cada vez mais invadido e metralhado o que será de supor que
estaremos cada vez mais a caminho do tresloucamento
colectivo, e do autómato individual conduzido sem pensamento próprio, como
tolo, e por flashes apanhados pela mnemónica que, incapaz de selecionar e
distinguir o bem do mal, levará a um fim anunciado.
Voltando à invasora
que chegou esta noite –porque foi por ela que comecei a escrever esta crónica
solta-, chegou pé-ante-pé, ou melhor, gota-a-gota. Sabe-se que os vendedores,
os comerciantes, detestam-na. Consideram-na persona
non grata. Gostam tanto dela como se gosta de um fiscal das finanças. Apesar
disso, deste relacionamento tenso, sabem que a resignação é o único caminho
possível.
Mal nos apanha na rua, sem
inibição de espécie alguma, esta invasora
prega-nos com um ósculo nos lábios. Mas, nestes beijos entediados de cola-cola e húmidos, não se fica por
aqui. Toca os cabelos, os olhos, as maçãs do rosto, o corpo todo. Pelo toque, parece
borrifar-nos de afecto esta filha da natureza. É boa amante, está de ver, assim
se possa aguentar o seu ímpeto libidinoso, obsessivo a raiar a luxúria. Para
nos livrarmos dela, a fazer lembrar certos velhos, como eu, que quando engatam
numa história é como o traçado da ferrovia, sempre cheia de desvios para novas
estações e apeadeiros, pedimos a todos os santinhos milagreiros com provas
dadas que façam qualquer coisa para fazer o corte e desligue a corrente, ou nos
mande para uma praia paradisíaca com um mar azul em fundo onde só o ruído das
ondas quebra o silêncio.
É certo que os poetas e as
mulheres solitárias adoram esta invasora.
Sempre que ela vem, os primeiros, os versejadores, correm para a folha em branco
em busca da primeira frase que os conduzirá a uma longa viagem pela memória
passada, pela constatação do presente e presciência do futuro. As segundas, as
mulheres sozinhas, colarão a face na vidraça e, olhando a rua, esperam
ansiosamente ver aparecer o seu príncipe montado num cavalo branco.
Esta chuva de verão é muito chata! Apesar
disso, de nos invadir este tempo quente, precisamos dela e, como alma colada em
nós, não a poderemos dispensar. Obrigatoriamente, teremos mesmo de gostar dela. Se assim é, seja!
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