sábado, 6 de setembro de 2014

A INVASORA E A CONVERSA SOLTA





Chegou durante a madrugada à Baixa da cidade. Em boa verdade já se falava que viria. A maioria não gosta muita dela. Acham-na aborrecida, melosa. Mal nos apanha a jeito, sem pedir licença, cola-se, gruda-se de forma sentida. É certo que é um amplexo, um abraço, e hoje, que apesar de tanto de falar dele, poucos o praticam com a profundidade exigida na união de dois corpos enquanto símbolo da fraternidade e do amor. Um abraço para ter efeito espiritual terá de ser retido, corpo contra corpo, durante pelo menos um minuto. Vivemos na era da informação supersónica. Não podemos perder muito tempo, seja lá com o que for. Quando nos debruçamos sobre algo importante e pensamos saber um pouco sobre a matéria em análise já não interessa porque já foi ultrapassada. Estamos na época dos ventos ciclónicos da informação, em que, num cruzamento de contrários, um traz a boa nova e outro a sua negação. Sentimo-nos moléculas perdidas num oceano de detritos de conhecimento. Por estranho que pareça, sabemos apenas que é cada vez mais ínfimo o nosso saber. Sabemos cada vez mais que nada sabemos. Estamos no meio de uma guerra em que a todo o momento rebentam morteiros ao nosso lado com imagens mortíferas, com decapitações e fuzilamentos colectivos. Numa manipulação intencional, em que tudo indica que temos de apanhar nas bentas a culpa, como se, por um lado, fôssemos responsáveis directos pela consequência dos actos que alguém praticou, por outro, em apelo surdo mas imperativo, em injunção, ordem, a querer dizer-nos que temos de intervir. Num cinismo compreensível ou talvez não, o emissor não quer saber se estas mensagens estão a fazer mais vítimas e que, aparentemente, transforma o nosso mundo num imenso hospital psiquiátrico. O que parece é haver um complot para nos enviar para o charco da tristeza, da depressão e do sofrimento. Excepto quando dormimos, se bem que até este período necessário de descanso está a ser cada vez mais invadido e metralhado o que será de supor que estaremos cada vez mais a caminho do tresloucamento colectivo, e do autómato individual conduzido sem pensamento próprio, como tolo, e por flashes apanhados pela mnemónica que, incapaz de selecionar e distinguir o bem do mal, levará a um fim anunciado.
Voltando à invasora que chegou esta noite –porque foi por ela que comecei a escrever esta crónica solta-, chegou pé-ante-pé, ou melhor, gota-a-gota. Sabe-se que os vendedores, os comerciantes, detestam-na. Consideram-na persona non grata. Gostam tanto dela como se gosta de um fiscal das finanças. Apesar disso, deste relacionamento tenso, sabem que a resignação é o único caminho possível.
Mal nos apanha na rua, sem inibição de espécie alguma, esta invasora prega-nos com um ósculo nos lábios. Mas, nestes beijos entediados de cola-cola e húmidos, não se fica por aqui. Toca os cabelos, os olhos, as maçãs do rosto, o corpo todo. Pelo toque, parece borrifar-nos de afecto esta filha da natureza. É boa amante, está de ver, assim se possa aguentar o seu ímpeto libidinoso, obsessivo a raiar a luxúria. Para nos livrarmos dela, a fazer lembrar certos velhos, como eu, que quando engatam numa história é como o traçado da ferrovia, sempre cheia de desvios para novas estações e apeadeiros, pedimos a todos os santinhos milagreiros com provas dadas que façam qualquer coisa para fazer o corte e desligue a corrente, ou nos mande para uma praia paradisíaca com um mar azul em fundo onde só o ruído das ondas quebra o silêncio.
É certo que os poetas e as mulheres solitárias adoram esta invasora. Sempre que ela vem, os primeiros, os versejadores, correm para a folha em branco em busca da primeira frase que os conduzirá a uma longa viagem pela memória passada, pela constatação do presente e presciência do futuro. As segundas, as mulheres sozinhas, colarão a face na vidraça e, olhando a rua, esperam ansiosamente ver aparecer o seu príncipe montado num cavalo branco.
Esta chuva de verão é muito chata! Apesar disso, de nos invadir este tempo quente, precisamos dela e, como alma colada em nós, não a poderemos dispensar. Obrigatoriamente, teremos mesmo de gostar dela. Se assim é, seja!

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