(Imagem de Leonardo braga Pinheiro)
Há
cerca de cinco anos fui entrevistado
por
um estudante de jornalismo: João Valadão.
Correndo
o risco de parecer ridículo,
volto
a inserir a entrevista, sobretudo para
recordar
que o que era afirmado nessa altura
sobre
a Baixa, hoje, tudo continua igual.
Ou
seja, mudam-se os tempos, mudam-se
os
comerciantes, mudam-se os políticos
-nessa
altura geria a cidade a Coligação por
Coimbra,
constituída pelo CDS/PSD-, mas
tudo
continua igual, para pior, obviamente.
Quem
faz o favor de me ler sabe que, habitualmente, só escrevo
disparates. Mas como a natureza é boa e equitativa, todos os asnos
têm seu momento de resplandecência. Foi o que me aconteceu em
Janeiro de 2013 quando o João Valadão, certamente por não ter
ninguém mais qualificado, me entrevistou para um trabalho académico.
Se quiser fazer o favor de saber o que disse ao João, continue a
ler:
GRANDE
ENTREVISTA, POR JOÃO VALADÃO
Licenciatura
em Jornalismo - Géneros Jornalísticos
Aluno:
João Pedro Trigueiros Valadão
“As
pessoas não estão preparadas para defender o bem comum”
Luís
Quintans, proprietário de um antiquário na Baixa de Coimbra, tem-se
assumido como um dos cidadãos mais proactivos na defesa desta zona
da cidade. É no seu blogue, ‘Questões Nacionais’, que fomenta a
sua crítica ao poder autárquico e à inépcia dos cidadãos. Para o
comerciante e ‘blogger’, uma cidadania ativa é fundamental para
o desenvolvimento sustentável da cidade e a elevação da cidade a
património mundial depende da formação dos seus munícipes. Por
outro lado, considera que uma maior abertura e cooperação por parte
do executivo municipal são urgentes e indispensáveis.
O
blogue tem sido fundamental na sua atividade cívica. Quando surgiu?
O
blogue surgiu em 2007, da necessidade de eu gostar de escrever. No
fundo, foi o preenchimento de uma lacuna. Sempre escrevi, normalmente
para os jornais, mas nós para os jornais estávamos sempre
condicionados porque umas vezes publicavam e outras vezes não. Quem
escreve sabe que, quando tem alguma coisa a dizer, quer ver as coisas
publicadas. Foi sempre uma luta que tive com os dois jornais, com o
Diário As Beiras e o Diário de Coimbra, porque às vezes não
publicavam. Às vezes considerava que era mal tratado, porque para
além de escrever eu gosto de intervir. Ou seja, normalmente há dois
tipos de escritores (mas eu não sou escritor, digo isto apenas no
sentido que escrevo): há aquele que escreve e utiliza a sua escrita
para intervir no social, para modificar as coisas, é nessa que me
insiro e há outro, dos amores platónicos, que tem uma intervenção
através do pensamento, não direta. Sou o primeiro caso, gosto de
escrever e intervir socialmente. É um vício que eu tenho.
Tem
mantido uma regularidade desde então?
Escrevo
todos os dias.
Continua
a colaborar com jornais?
Com
o Diário de Coimbra e com o Diário As Beiras praticamente cortei,
porque acho que me senti mal tratado. Estar sujeito à arbitrariedade
deles, umas vezes publicarem e outras não… Entretanto comecei a
escrever com outros, com o Jornal da Mealhada durante uns anos e,
atualmente, com o Jornal O Despertar. É o único em que colaboro, no
sentido de escrever. É o semanário mais antigo de Coimbra, tem 95
anos. Tenho uma página semanal sobre a Baixa, tenho a liberdade para
escrever sobre o que quiser, no que incidir sobre esta zona. É o que
o blogue procura incidir também, que é a sua área geográfica, se
bem que o seu nome Questões Nacionais possa dar a parecer um âmbito
muito mais alargado. Procura incidir na minudência, na pequena
coisinha, na senhora que caiu e partiu uma perna ou se há um buraco
em que a câmara não intervém. Escrevi, há pouco, sobre um
candeeiro que tinha os vidros soltos e em que era muito fácil por lá
uma escada, retirar os vidros e estava solucionado. Mas os
funcionários da câmara colocaram lá umas fitas à volta, quando
aquilo era uma coisa fácil de resolver. No fundo, escrevo sobre a
inépcia dos outros, se bem que as minhas também são enormes.
Acha
que uma cidadania ativa contribui para um desenvolvimento
sustentável?
Eu
escrevo sobre isso todos os dias e é uma luta completamente perdida.
Vou-lhe dar outra vez o mesmo exemplo: o candeeiro, junto às escadas
de Santiago, foi abalado por um temporal. Eu escrevi no meu blogue o
que se tinha passado, os estragos mais relevantes que notei. Os
serviços da câmara foram lá e puseram fitas à volta do candeeiro,
a abarcar grande área das escadas e aquilo lá ficou. Note-se que
estamos a falar de uma área geográfica que é candidata a
património mundial da UNESCO, não estamos a falar da nossa aldeia,
em que ninguém lá vai! Estamos a falar de uma zona fulcral que é a
Praça do Comércio, zona monumental, e a Baixa tem pelo menos seis
instituições que se debruçam sobre os seus problemas.
Na
altura fui ao Gabinete do Centro Histórico, no Arco da Almedina e as
pessoas olharam-me com uma cara de “o que é que este parvo vem
para aqui fazer?”. Mas como eu tenho alguma convicção, passei
isso à frente e consegui que me ligassem a outro gabinete.
Tem
algum feedback junto da câmara?
Não
tenho grande feedback. Eu escrevo muito sobre o que se passa aqui na
Baixa e envio quase sempre tudo para o correio electrónico da
câmara. Aqueles [correios eletrónicos] que tenho acesso, mando
sempre. Normalmente, poucas vezes me dão resposta. Noto que eles me
conhecem, isso noto. Vou muitas vezes à câmara, sempre que tenho
possibilidade de intervir. Intervenho algumas vezes na assembleia
municipal, quando acho que devo ir. Quando estes meios não funcionam
vou lá pessoalmente. Não sei como a câmara reconhece a minha
intervenção, como uma pessoa que se interessa ou como “aquele que
vem chatear”.
Sente
desconforto?
Não
sinto desconforto, porque rio-me de mim próprio. Rio-me, quase,
destas coisas. Considero que é uma parvoíce como outra qualquer,
podia ocupar-me de outra coisa, ocupo-me disto.
Considera
que há uma falta de abertura por parte da Câmara Municipal de
Coimbra para os cidadãos?
Completamente.
Não somos maltratados, tenho de ser honesto, nunca fui incomodado
por ser assim. Tenho escrito muitas coisas a denunciar situações
limite, que quase poderiam ser, hipoteticamente, passíveis de uma
ação de difamação. Andei em direito e sei alguns dos princípios,
tenho algum cuidado com o que escrevo. Quando escrevo a denunciar
situações são sempre passiveis de difamação da outra parte. Até
agora nunca tive isso por parte da câmara. Nunca senti nenhuma
espécie de perseguição pela outra parte, pelo contrário. Não
senti amizade da parte deles, mas sempre senti respeito pelo meu
trabalho. Agora, a câmara devia intervir, devia apoiar outras
pessoas como eu. Há mais pessoas assim, sobretudo quem escreve e tem
blogues. O mínimo que a câmara poderia fazer era responder, às
vezes fazem-no, mas muito raramente. A senhora vereadora da cultura
nunca me responde. Uma vez estive num debate e disse-lhe que nunca me
respondia. Ao que ela respondeu: “o senhor mandou [uma mensagem]?”.
Disse-lhe que também tinha publicado n’ O Despertar e veja a
resposta: “nunca ligo ao que os jornais dizem”. Isto é o cúmulo.
O
facto de não responderem poderá estar relacionado com falta de
argumentos de defesa?
Não
acho que seja uma falta de argumentos de defesa, acho que este poder
está assente em falsos valores. Era preciso uma nova filosofia,
entender que o poder em si tem que servir para servir. O poder
conquistado nos votos, ou de outra forma qualquer, tem que servir
para servir o próximo, quem nos rodeia. O poder local deveria servir
para resolver os problemas dos seus cidadãos, dos seus munícipes.
Na minha perspetiva acontece o contrário, ao conquistarem o poder
fecham-se, tomam-se de uma importância que não têm. Depois saem de
lá e no mundo da rua já são comuns, como se descessem de um
pedestal. Aí já nos cumprimentam, mas quando estão na câmara isso
pode já não acontecer.
Participa
em alguma organização de defesa da Baixa?
Não.
Sou associado da Agência de Promoção da Baixa de Coimbra, uma
agência de humanização da Baixa. Sou associado, como qualquer
comerciante, não tenho algum cargo para além disso. Isto de
intervir faço-o apenas por gosto. Muitas vezes pergunto-me porque
faço isto. Primeiro, é porque gosto de escrever e faço-o muito
facilmente. Penso que os talentos devem ser postos ao serviço da
comunidade. Raramente escrevo sobre mim ou sobre o meu negócio no
meu blogue. Sobre mim, as coisas estão lá, mas tento de por de lado
a vaidade.
Como
acha que a Câmara Municipal de Coimbra tem gerido a Baixa?
Não
sou partidário político, faço política no sentido da polis.
Faço-a no sentido de a defender, não estou ligado a nenhuma
organização partidária e estou convencido que nunca estarei. Sou
um independente, não há ninguém independente digamos. Às vezes
defendo umas coisas de direita, às vezes de esquerda, é o que
calha. Depende da minha linha de pensamento, tento reger-me por isso
e não pelo que os outros pensam. Portanto, acho que seja este
executivo, como os anteriores, nunca se interessaram minimamente pela
Baixa. Não tenhamos ilusões. Temos que ser honestos, as câmaras
não podem fazer muita coisa, pelo menos mexer muito nos centros
históricos. Nomeadamente porque um dos maiores cancros dos centros
históricos são os regimes de arrendamento urbano. Até aqui têm
estado limitados devido a isso. Fez-se agora uma alteração do
regime de arrendamento urbano, mas se calhar é pior a emenda que o
soneto. Têm feito isto de forma abandalhada, sem ter em conta as
necessidades das pessoas, que estão num momento muito frágil da sua
vida. Isto vai levar mais à miséria, porque as pessoas não têm
meios, estou a falar do arrendamento urbano e comercial. As pessoas
não podem pagar rendas excessivas quando o rendimento do comércio e
dos particulares está em decréscimo. Por outro lado, a
insensibilidade de quem está à frente dos executivos municipais tem
levado a que se licencie tudo o que são grandes superfícies.
O
regime de arrendamento urbano tem sido uma lástima desde o início
da Primeira República, desde 1910 que isto foi um problema. Os
partidos políticos sempre usaram os regimes de arrendamento urbano
para se beneficiarem eles próprios através do voto. Por outro lado,
a partir de 1990 a câmara tem feito licenciamentos desbragados.
A
câmara tem tido políticas negativas em pequenas coisas. À noite,
na Baixa, muitas vezes não há luz. Isto porque desapareceram os
reclames publicitários, porque as taxas que incidem sobre eles tem
sido qualquer coisa de imensurável. As lojas há trinta anos tinham
néones, mas estas ‘cabeças pensantes’ acharam que estes não
podiam estar nos centros históricos. É inconcebível. Porque é que
um néon, que dá cor ao meio e o projeta, não é compatível com um
centro histórico? As lojas, como também têm que poupar na luz,
fecham as montras. As ruas são um deserto sem luz. As câmaras não
têm tido nenhuma intervenção nos centros históricos.
Isto
deve-se a uma constante falta de organização ou prende-se com a
conjuntura atual?
Não,
a conjuntura atual é apenas mais um precipício no meio de tantos
outros. O problema da decrepitude da Baixa começou em 1993, quando
abriu o Continente e a Makro. Começou aí, porque quando as grandes
superfícies começaram a surgir, as pessoas começaram a
deslocalizar-se da Baixa para esses centros. Na compra e, também, na
habitação. A habitação na Baixa sempre foi muito decrépita,
insalubre quase, com poucas condições de bem-estar. Então, onde as
grandes superfícies montaram as suas estruturas, criaram-se novas
zonas de habitação e novas centralidades. Houve uma
descentralização daquele habitante com mais poder económico. Para
os habitantes com menos poder económico a câmara criou bairros de
habitação social fora da cidade. Com essas medidas esvaziaram o
centro histórico, está vazio de pessoas que cá moravam e de
compradores. Eles deslocaram-se para as grandes áreas. Como isto é
um processo contínuo, desaparecendo pessoas, a Baixa torna-se mais
insegura e desaparecendo compradores, o comércio torna-se fraco. As
pessoas não vêm porque não há oferta, não há aqui uma loja de
marca. Livraria e lojas de artigos para computador são poucas, há
ramos que estão a desaparecer sistematicamente daqui. Tudo isso
conflui numa nova oferta e maior empobrecimento e esvaziamento desta
zona da cidade.
Qual
será a tendência para as lojas como a sua?
A
tendência é para fechar, porque neste momento a procura está
completamente em queda e em contração. Como não há procura,
vende-se pouco. É muito difícil aguentar porque os custos são
muito grandes, nomeadamente com rendas. A oferta destas lojas vai ser
cada vez menor e as alterações fiscais vão também mexer muito com
as feiras, onde as pessoas querem vender as suas coisas. Se as
obrigações fiscais forem muito grandes, as pessoas nem tentam. Ao
não tentarem está-se a limitar a liberdade de nascimentos. A lei
tem que ser flexível, não pode ser uma tábua onde as pessoas a
seguem à letra. Tem de haver uma interpretação, na medida em que
cada caso é um caso.
A
situação está a tornar-se irreversível?
Não
acho que nada seja irreversível. Tudo é reversível, é preciso é
vontade humana para fazer essa reversão. O que acontece aqui com
este poder autárquico, e com outros que virão, é que isso não é
possível. Era preciso de boa vontade, nas assembleias municipais
deviam estar pessoas que representassem os seus lugares, mas sem
ganhar nada. Os presidentes das Juntas de Freguesia, antes do 25 de
Abril, não ganhavam nada. Eram eleitos pelo prazer de servir o
próximo. Deviam-se eleger pessoas capazes de defender a sua rua, o
seu bairro. Enquanto se elegerem pessoas por interesses próprios, no
sentido de lucro, não há hipóteses nenhumas. As pessoas não estão
preparadas para defender o bem-comum.
A
Baixa está preparada para a candidatura para Património Mundial da
UNESCO?
Pessoalmente
não acho. Antes de se investir numa classificação, devia se
investir na formação. Podemos ter muitos títulos, podemos ser
doutorados, mas o que interessa sem não houver a consciência das
fragilidades para o qual se está vocacionado? Dentro dessa vocação
há que fazer cada vez mais. As classificações são importantes,
não há dúvida, mas é preciso apostar na formação das pessoas.
Diariamente as pessoas põem o lixo fora de casa a qualquer hora,
escrevo muitas vezes sobre isso. A educação dá-se quando se é
criança, é possível uma formação de aperfeiçoamento, mas
ninguém se importa. Acontece que vamos ter uma classificação, mas
os procedimentos continuam a ser os mesmos. Os proprietários não
têm dinheiro para restaurar os prédios, os particulares que moram
por aí têm um vidro partido da janela, não o mudam, por exemplo.
Isto tem que mudar, classificar uma zona de património com interesse
mundial é importante, mas estão a fazer tudo ao contrário.
Isto
remete de novo para a questão da cidadania.
A
cidadania não nasce connosco. A sensibilidade nasce connosco e está
ligada à cidadania, mas esta desperta-se. É preciso despertar as
pessoas, ajudar o próximo. É uma questão lógica, se eu ajudar o
vizinho, ele amanhã ajuda-me. É preciso incutir nas pessoas que é
preciso intervir no nosso bairro, onde moramos. Se fosse possível
formar um bloco de defesa de uma rua ou de um bairro, nós certamente
seremos mais felizes. Por outro lado, era preciso que quem está no
poder nos olhasse com outros olhos. Com olhos de camarada, no sentido
de estarmos do mesmo lado. Sinto muitas vezes o contrário. Uma vez
estava a tirar uma fotografia a uma obra e um fiscal da câmara
perguntou-me ao que se devia. Perguntei-lhe porque estava a embirrar
comigo, expliquei-lhe quem era e disse-lhe que estava a tirar uma
fotografia a um ato público. No fundo, estava a noticiar um ato
público e ele era um interveniente. Apertei-lhe a mão e disse-lhe
que estávamos do mesmo lado, ele pediu-me desculpa por ter sido mal
interpretado. Deu-se uma reversão [do comportamento]. A denúncia,
para mim, é sinónimo de dar a cara. Sou completamente contra
denúncias anónimas, o Estado nem devia aceita-las, num Estado
democrático não devia ser assim. Quem exerce o poder devia olhar
para as denúncias identificadas como uma pessoa que quer ajudar, mas
isso não tem sido feito.
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