Outra
vez? Relaxado de uma figa! Estás lixado!
Desta
vez não vou mexer um dedo para escrever
seja o que for! Vais ter
de te desenrascar sozinho.
BAIXA:
O HOMEM DO CARTAZ AO PEITO
25/01/2018, 3 comentários |
13777 |
Foi
há uns quatro ou cinco dias que me apercebi que o Luís Cortês, um
músico que actua na rua e muito conhecido na Baixa, trazia um
cartaz pendurado ao pescoço que anunciava o seguinte: “Tenho
órgão avariado. Preciso dinheiro para comer”
Não
era a primeira vez que vira um apelo igual no Cortez. Nos últimos
cinco anos foram pelo menos quatro vezes. E, perante a mesma
situação, sem pensar muito, eu sempre agira em conformidade, isto
é, com a melhor entrega numa prosa rebuscada que tocasse o coração
dos leitores, escrevendo para o mundo, dei a conhecer a necessidade
do músico invisual. E já lá vão cinco órgãos desaparecidos ou destruídos e substituídos nos mesmos moldes: ou pelo desleixo de ter
permitido o seu roubo junto à Igreja de Santa Cruz, não cuidando
devidamente da guarda de uma peça instrumental que é essencial para
angariar o seu pão no dia-a-dia, ou por avaria deliberada, deixando
o instrumento muitas vezes à chuva de inverno e sol de verão.
Em
solilóquio, quando me apercebi do cartaz pendurado no pescoço o meu
primeiro pensamento foi: outra vez? Relaxado de uma figa! Estás
lixado! Desta vez não vou mexer um dedo para escrever seja o que
for! Vais ter de te desenrascar sozinho. E fiquei a remoer o
assunto.
Como
um Cristo a passear a cruz às costas, o homem continuava a
passear-se pelas ruas da Baixa. Para além de mais, tal como noutras
vezes a exasperar-me, o Cortez, como se soubesse antecipadamente que
alguém se vai condoer da sua situação e intervir a seu favor, numa
forma quase provocatória, nunca suplica. Isto irrita qualquer beato.
É da psicologia social, qualquer
um de nós, perante um pungente apelo faz tudo para ajudar. E quanto
maior for o choradinho
para justificar o pedido -e então se for humilhante para quem pede
ainda melhor-, mesmo que saibamos antecipadamente ser patranha,
dobrada é a possibilidade de realização. Dividido entre
sentimentos de sadismo e bondade, entre a superioridade e a
fragilidade, entre a caridade e a caridadezinha, há qualquer
coisa dentro de nós que nos impele a fazer o bem. Ajudar alguém
conforta a alma numa espiritualidade de purificação e remete-nos
para uma viagem transcendental entre remorso e acerto de contas com o
passado.
Ora,
como se fosse uma agressão deliberada aos costumes sociais, o Luís,
como é seu hábito, apesar de falar com sons arrastados de fadista,
não tartamudeia. Como se funcionasse em autodefesa, fazendo das
fraquezas forças, fazendo de conta que está na mó-de-cima, não se
queixa, nem diz nada. E é claro que isto deixa uma pessoa fora de
si, mesmo sendo candidato a santinho. E mentalmente, com toda
a minha razão imaculada, ponderação e justeza de anjo-serafim,
em sentença sumária, condenei-o ao ostracismo da indiferença.
A
CONSCIÊNCIA É TRAMADA
Como
se quisesse espicaçar-me, dava de caras com o raio do homem
diariamente. E iniciei um inventário mental de razões para intervir
a seu favor. Como se tivesse uma folha dividida a meio com defeitos e
virtudes, comecei a apontar. No negativo:
-É
desleixado, não cuidando dos seus bens;
-Nunca
pede o que precisa nem agradece o bem que lhe fazem;
-Quando
bebe uns copos maltrata quem não devia;
-Vê-lo
embriagado gera em nós um sentimento de arrependimento por lhe fazer
bem;
-É
um pródigo; gasta tudo sem poupar e sem lembrar o dia de amanhã;
-Faz-nos
sentir usados.
E
passei a elencar a virtudes positivas:
-É
um bom músico. Com a sua presença, a cantar e a encantar, alegra todo
o meio envolvente. A sua frequência de animação funciona como um
candeeiro que ilumina tudo em seu redor.
Reparei
então que, como atributo, só lhe reconhecia a qualidade de bom
músico e animador dos nossos dias taciturnos. Nem sempre o silêncio é boa companhia. A ser assim, estava de
ver que não devia, mais uma vez, ampliar o seu apelo, Não é assim?
Não, não é! Deixando cair as vulnerabilidades do homem e elevando
a sua função de artista social, acabei a escrever novamente uma
crónica. E mais uma vez os leitores, talvez por sentirem o seu
valor, sobretudo em prole do colectivo, responderam à chamada. Entre
mais de 13700 visionamentos nestes dois dias, há várias ofertas de
comparticipação monetária e de vários órgãos usados -neste
caso, pelo que ficou escrito, embora seja um acto de vontade
individual, pedimos o favor de lhe ser entregue apenas um, os outros
ficarão para outra próxima oportunidade, que, diga-se, não deve
tardar.
O CERTO E
O SEU CONTRÁRIO
Entre
os vários comentários recebidos, como se calcula, ressaltam
opiniões como esta, de um meu amigo: “Prosa
poética meu caro! E quanto ao órgão... Menos vinho e mais
“poipança”. Estamos conversados”
Pelo
que ficou plasmado, acabo por concordar com eles. Porém há razões
que a própria razão desconhece e o intelecto acaba por ser
transcendido. Num conflito individual entre o agir
ou não agir, fazer,
por razões humanitárias, desvalorizando os defeitos do outro,
separando o homem, enquanto pessoa singular de atributos e
imperfeições, e a sua função social, porquanto elemento agregado e
agregador de uma comunidade -embora se compreenda ser difícil de
desligar a sua relação de continuidade- e o não
fazer,
numa
questão existencial,
o que deve
prevalecer?
Tenho
para mim que a resposta é óbvia: devemos
fazer! Enquanto
donos de um raciocínio lógico e seres de bom-senso, devemos ser
proactivos e tentar ajudar quem não foi bafejado com este dom
natural. E porquê? Porque se entrarmos num sistema de exame
consideratório de remuneração em função da reciprocidade, mais
que certo, acabamos por fazer tudo por obrigação em função da
semelhança. Ou seja, como defendia Durkheim -1858-1917-, o pai da
sociologia moderna, regredindo para as sociedades primitivas ou em
sub-desenvolvimento, transformamo-nos em seres mecânicos, porque
diferimos pouco entre nós, com o mesmo pensamento. Comungando dos
mesmos interesses, numa cultura pouco dinâmica, passamos a defender
os mesmos valores, incluindo o sagrado e o profano. Sem pensamento
crítico, o contestatário é olhado pela maioria com desconfiança.
No
entanto, admito, haverá tantos defensores desta tese e o seu
contrário quantas cabeças pensantes.
Vale
a pena pensar?
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