segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

BAIXA: O “CHICO PINTELHO” QUER ESCREVER UM LIVRO

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De costas para a porta, estabelecendo meças entre o passado e o presente, eu estava embrenhado a arrumar os pensamentos. Na gaveta das recordações, revendo toda a minha existência desde o berço, lembrava as pessoas que passaram na minha vida e que, sem os esquecer nunca, continuarão presentes até ao meu último suspiro. Na divisão referente aos nossos dias, inventariando a amizade, cogitava na sua extrema fragilidade. Nunca se falou tanto de afectos, quer seja pelas redes sociais, quer pelo desempenho teatral do actual Presidente da República. No entanto, se pararmos para raciocinar, facilmente se chega à conclusão que a amizade, contrariando o seu étimo de proteger e ser protegido, está transformada num sentimento egoísta e unidireccional, ou seja, cada pessoa, individualmente, apenas está interessado em receber e nada dar em troca. E mais: quanto maior for a importância social do outro, num pedantismo descarado, mais depressa a conveniência é desenvolvida. A obrigação de dar é sempre do outro. Enquanto emoção imaculada, focada em alguém em particular, a amizade só pode ser desenvolvida se sair da alma, com pureza, e tiver acoplado um princípio humanista de justiça, equidade e amor, isto é, ser justo e gostar dos humanos em geral.
Seriam para aí umas onze horas de hoje, ouvi uns passos rápidos a ecoar na soleira da minha porta levemente conhecidos. O meu nome, em pronúncia abrasileirada, soou forte: “Louis... Louis... Vamos beber um café... Pago eu!”. 
Pronto! Vi logo que, vindo de quem vinha, só podia ser mordidela ou canelada. Em toda a sua pujança e cagança, mais que certo para me cravar qualquer coisa, cá estava o “Chico Pintelho”. Sem dar nas vistas que tinha armado o meu canhão imunitário de defesa pessoal, numa voz entaremelada, respondi: Bom dia, “Pintelho”! Tão cedo por aqui? Sub-repticiamente, fazendo uma análise geral ao seu aspecto, verifiquei que a roupa que tinha vestida era a mesma de Sábado, quando o encontrei na Praça 8 de Maio, e, aparentemente, dera entrada na cidade nessa noite vindo do outro lado do Atlântico, do Brasil. E prossegui, Então já estás alojado? Interroguei. “Claro! Estou hospedado no Hotel Quinta das Lágrimas”, retorquiu. Só em cinco estrelas, remoí com ironia mordaz, mas ele pareceu não notar. Mas, antes que venha a hora da refeição e tenhas de me pagar o almoço, vamos lá ao cafezinho, repliquei. E acertámos os passos em direcção à Praça 8 de Maio.

TOMANDO BANHOS SECOS

Com um frio incomodativo nas ruas estreitas, que se entranhava nos ossos, acomodámo-nos na esplanada do café Conquistador, recentemente aberto na praça do Panteão Nacional. Com um Sol revigorante como testemunha, parecendo sublinhar que quando nasce não é mesmo para todos, a grande estrela calórica mostrava ali que quem quisesse o seu afago teria de o procurar, pedimos dois cafés.
Fui o primeiro a abrir. Então conta lá, o que precisas de mim? Interroguei. Parecendo ficar ofendido, atirou: “Eu?!? De ti só quero mesmo a tua amizade. Nada mais! Conheces-me, porra!”. Com um mudismo acentuado de conluio, fiz de conta que acreditei. Continuou o “Chico Pintelho”:
  • Preciso de um conselho teu para um grande empreendimento que, proximamente, vou tomar em mãos. Estou a pensar em escrever um livro sobre o comércio de rua. Um tratado, um estudo sobre o sector. Para começar, o que achas disso?
  • Depois de alguma surpresa impossível de dissimular deixei escapar: Mas tu nem estás habituado a escrever?!?...
  • Isso não interessa nada. Socorro-me do que tu escreves. E tens centenas de textos sobre o comércio tradicional. Para além disso sabes que, no Brasil, fui adjunto do Lula da Silva e Dina Rousseff para as questões de comércio interno.
  • Sem dar crédito à minha cara de abananado, prosseguiu:E sabes que estou a pensar em fazer o lançamento do livro no Convento de São Francisco? E com a presença do Primeiro-ministro, de ministros, de  deputados e do Presidente da República?
  • Como?!? Interroguei sem conseguir dissimular.
  • Então, se no Sábado foi assim, porque não há-de acontecer o mesmo comigo?
  • Sem saber muito bem o que dizer, lá fui adiantando: Não te esqueças que estava em causa um livro sobre o “Salvar o SNS -uma nova Lei de Bases da Saúde para Defender a Democracia”. E para além disso os mentores do livro são notáveis...
  • Ai é?!? Queres dizer que eu não sou notável? É isso?...
    Por não saber o que dizer, deixando-o sem resposta, adiantei: Desculpa ó “Pintelho”, mas tenho de ir trabalhar. E levantei-me da cadeira.
    Foi então que ele fez o que eu não previra:
  • Ó pá, esqueci a carteira no hotel. Paga aí os cafés. E já agora, empresta aí cinco euros...

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