sábado, 6 de janeiro de 2018

BAIXA: REGRESSOU O “CHICO PINTELHO”

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Com a cabeça enfiada num sobretudo que já viu melhores dias, meio encolhido, com um colarinho da camisa mais coçado que o baixo-ventre da Etelvina -uma rapariga que tem escritório montado na avenida e só trabalha à noite-, uma calça de ganga mais remendada que o bolso do Anacleto -um polidor de esquinas, morador no beco do desgraçadinho-, uns sapatos, sem brilho, estafados e alargados que metem água por todos os poros, a fazerem lembrar as alpercatas do meu falecido avô Crispim, estava hoje sentado na esplanada do Café Santa Cruz.
Quando fui comprar o jornal ao Quiosque Espírito Santo -que eu compro tudo na Baixa, seja ceguinho do olho traseiro-, passei ao seu lado e não o reconheci. Foi então que, numa pronúncia abrasileirada, envolvida em melaço e num timbre de voz desconhecido mas não totalmente, comecei a ouvir: “Louis... Louis! Cara, já não reconhece o seu amigo “Pintelho”?!?”. Foi então que virei a cabeça. Não, não podia ser! Aquela figura espantalhada não podia ser o meu amigo... Aquela materialização corpórea era um esboço mal amanhado, uma sombra do orgulhoso “Chico Pintelho”! Mas era! E vi isso mesmo imediatamente quando, abrindo os braços a fazer inveja ao Cristo-Rei, me abraçou, de tal modo que até a minha clavícula estalou nas minhas entranhas, e num sussurro exclamou: “meu chapa, grande Louis!”. Enquanto era absorvido por aqueles aparentes frágeis braços, pensei para mim o quanto aquele amplexo, enlace, vinha na altura certa. Nos últimos dias, por causa do que escrevo sobre a Baixa, tenho levado tanta pancada no Facebook que a minha alma está feita em frangalhos. Parece uma manta de retalhos. Até já pensei em pedir ajuda ao Marcelo, Presidente da República, especialista em abraços e elevador de auto-estima nacional, mas desisti porque o nosso homem está em convalescença por causa do estrangulamento da hérnia -nem me admira que aquilo fosse sabotagem de algum seu inimigo que não vai à bola com as suas curas milagrosas por este país fora.
Fui afastado dos meus pensamentos por uma dor fininha, certamente proveniente do cercado abraço. És mesmo tu, “Chico Pintelho”? -interroguei para colocar fim ao aperto. “Sim, sou eu mesmo, em carne e osso, Louis! Cheguei esta noite à cidade. Deixei de vez o Brasil! Já tinha saudades de Coimbra! Já não aguentava mais! Mas olha que eu li tudo o que escreveste no blogue sobre a cidade e sobre a Baixa... Eu estou a par da guerra que vai por aí entre alguns comerciantes e a Câmara Municipal, Rematou sem me deixar dizer mais nada.
Recordando que o “Pintelho” chegou a ser comerciante na Baixa durante a década de 1980, os anos dourados da compra e venda, fui pensando nas próximas perguntas. Embora se tivesse aguentado uns anos com estabelecimento aberto, no tempo das vacas gordas, por falta de cabeça, acabou por encerrar a loja e rumar a terras de Vera Cruz. Nas últimas viagens que fez a Portugal e esteve em Coimbra, quando nos encontrávamos, falava como um perito na nobre arte de negociar. Fazendo das fraquezas forças, invertendo o curso da sua história, apresentava-se como grande empresário de sucesso nas terras de Cabral. Para além de dar a parecer estar podre de rico, numa retórica bem ilustrada e sublinhada, tornara-se especialista em aconselhamento. Sempre que trocávamos impressões sobre o continuado declínio da Baixa as respostas em jeito de solução saíam em catadupa. Desde a edilidade até aos comerciantes em exercício, “que tinham a maior fatia de responsabilidade”, invocava, as culpas saiam divididas. Às vezes apetecia-me perguntar-lhe, sendo ele tão bom comerciante em ideias como apregoava, porque falhou fundamentalmente numa época em que ser-se comerciante era fácil, quando qualquer gato-pintado ganhava dinheiro? Mas eu, conhecendo o “Pintelho” como conhecia, tratáva-o como um cartão de pontos e desvalorizava a sua verborreia.
Interrompi as minhas lucubrações para lhe perguntar como é que lhe correra os negócios no Brasil. Nem me deixando terminar a frase, afirmou: “muito bem! Sabes aí de uns prédios para eu comprar? Tenho uns milhões para investir... No banco não dá nada!, como se os meus olhos falassem pelo contrário, percorri as suas roupas velhas e de maltrapilho. Mas ele não se apercebeu. Como bom cristão que sou, deixei-o afogar-se no seu oceano de ilusão.
Atirou-me de supetão: “Ó pá, até estou parvo com a Baixa... tantas lojas fechadas! Quem viu isto noutros tempos, com as pessoas a fazerem fila e a evitarem atropelarem-se umas às outras, e se depara agora com este cenário... Desculpa lá, Louis, mas vocês, comerciantes mais velhos é que têm a culpa. Se fizessem o mesmo horário dos centros comerciais, isto voltava a fluir. Até te digo mais: isto devia ser como Nova Iorque. Sempre aberto, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Sempre a abrir! Estás a ouvir o que eu digo, ou não?” -pareceu atirar-me a frase e abanar-me com violência.
-Hã... desculpa lá “Chico Pintelho”, mas estava a olhar ali para aquela turista de mini-saia e distraí-me. Podes repetir?

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