(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Com
a cabeça enfiada num sobretudo que já viu melhores dias, meio
encolhido, com um colarinho da camisa mais coçado que o baixo-ventre
da Etelvina -uma rapariga que tem escritório montado na avenida e só
trabalha à noite-, uma calça de ganga mais remendada que o bolso do
Anacleto -um polidor de esquinas, morador no beco do
desgraçadinho-, uns sapatos, sem brilho, estafados e alargados
que metem água por todos os poros, a fazerem lembrar as alpercatas
do meu falecido avô Crispim, estava hoje sentado na esplanada do
Café Santa Cruz.
Quando
fui comprar o jornal ao Quiosque Espírito Santo -que eu compro tudo na
Baixa, seja ceguinho do olho traseiro-, passei ao seu lado e não
o reconheci. Foi então que, numa pronúncia abrasileirada, envolvida
em melaço e num timbre de voz desconhecido mas não totalmente,
comecei a ouvir: “Louis... Louis! Cara, já não reconhece o
seu amigo “Pintelho”?!?”. Foi então que virei a
cabeça. Não, não podia ser! Aquela figura espantalhada não podia
ser o meu amigo... Aquela materialização corpórea era um esboço
mal amanhado, uma sombra do orgulhoso “Chico Pintelho”!
Mas era! E vi isso mesmo imediatamente quando, abrindo os braços a
fazer inveja ao Cristo-Rei, me abraçou, de tal modo que até a minha
clavícula estalou nas minhas entranhas, e num sussurro exclamou:
“meu chapa, grande Louis!”. Enquanto era absorvido por
aqueles aparentes frágeis braços, pensei para mim o quanto aquele
amplexo, enlace, vinha na altura certa. Nos últimos dias, por causa
do que escrevo sobre a Baixa, tenho levado tanta pancada no Facebook
que a minha alma está feita em frangalhos. Parece uma manta de
retalhos. Até já pensei em pedir ajuda ao Marcelo, Presidente da
República, especialista em abraços e elevador de auto-estima
nacional, mas desisti porque o nosso homem está em convalescença
por causa do estrangulamento da hérnia -nem me admira que aquilo
fosse sabotagem de algum seu inimigo que não vai à bola com as suas
curas milagrosas por este país fora.
Fui
afastado dos meus pensamentos por uma dor fininha, certamente
proveniente do cercado abraço. És mesmo tu, “Chico Pintelho”?
-interroguei para colocar fim ao aperto. “Sim, sou eu mesmo,
em carne e osso, Louis! Cheguei esta noite à
cidade. Deixei de vez o Brasil! Já tinha saudades de Coimbra! Já
não aguentava mais! Mas olha que eu li tudo o que escreveste no
blogue sobre a cidade e sobre a Baixa... Eu estou a par da guerra que
vai por aí entre alguns comerciantes e a Câmara Municipal”,
Rematou sem me deixar dizer mais nada.
Recordando
que o “Pintelho”
chegou a ser comerciante na Baixa durante a década de 1980, os anos
dourados da compra e venda, fui pensando nas próximas perguntas.
Embora se tivesse aguentado uns anos com estabelecimento aberto, no tempo
das vacas gordas, por falta de cabeça, acabou por encerrar a loja e
rumar a terras de Vera Cruz. Nas últimas viagens que fez a Portugal
e esteve em Coimbra, quando nos encontrávamos, falava como um perito
na nobre arte de negociar. Fazendo das fraquezas forças, invertendo
o curso da sua história, apresentava-se como grande empresário de
sucesso nas terras de Cabral. Para além de dar a parecer estar podre
de rico, numa retórica bem ilustrada e sublinhada, tornara-se
especialista em aconselhamento. Sempre que trocávamos impressões
sobre o continuado declínio da Baixa as respostas em jeito de
solução saíam em catadupa. Desde a edilidade até aos comerciantes
em exercício, “que tinham a maior fatia de responsabilidade”,
invocava, as culpas saiam divididas. Às vezes apetecia-me
perguntar-lhe, sendo ele tão bom comerciante em ideias como
apregoava, porque falhou fundamentalmente numa época em que ser-se
comerciante era fácil, quando qualquer gato-pintado ganhava dinheiro? Mas eu,
conhecendo o “Pintelho”
como conhecia, tratáva-o como um cartão de pontos e desvalorizava a
sua verborreia.
Interrompi
as minhas lucubrações para lhe perguntar como é que lhe correra os
negócios no Brasil. Nem me deixando terminar a frase, afirmou:
“muito bem! Sabes aí de uns prédios para eu comprar? Tenho uns milhões para investir... No banco não dá nada!, como
se os meus olhos falassem pelo contrário, percorri as suas roupas
velhas e de maltrapilho. Mas ele não se apercebeu. Como bom cristão que sou, deixei-o afogar-se no seu oceano de ilusão.
Atirou-me
de supetão: “Ó pá, até estou parvo com a Baixa...
tantas lojas fechadas! Quem viu isto noutros tempos, com as pessoas a
fazerem fila e a evitarem atropelarem-se umas às outras, e se depara
agora com este cenário... Desculpa lá, Louis, mas vocês,
comerciantes mais velhos é que têm a culpa. Se fizessem o mesmo
horário dos centros comerciais, isto voltava a fluir. Até te digo
mais: isto devia ser como Nova Iorque. Sempre aberto, vinte e quatro
sobre vinte e quatro horas. Sempre a abrir! Estás a ouvir o que eu
digo, ou não?” -pareceu
atirar-me a frase e abanar-me com violência.
-Hã...
desculpa lá “Chico Pintelho”,
mas estava a olhar ali para aquela turista de mini-saia e distraí-me.
Podes repetir?
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