Quando falamos com alguém que não vem à Baixa
há muito tempo, inevitavelmente, o seu lamento será assim: “Quem viu esta zona histórica e quem a vê
agora! Tantos prédios degradados e tantas lojas fechadas!”
O que aconteceu à vida que esta
parte histórica tinha? Ainda que naturalmente de forma subjectiva, recorrendo a
factos, talvez valha a pena tentar interpretar o presente com recurso ao
passado. Admito que possa ser um mero exercício de retórica e que até possa
merecer pouca credibilidade, no entanto, o que vou escrever a seguir, atrasando
o relógio para vinte anos atrás, é com base em acontecimentos e relatos.
1995 – 2005
Estamos em 1995. A Câmara Municipal é liderada
por Manuel Machado e em representação do Partido Socialista (PS). O movimento
comercial na Baixa segue o seu curso praticamente igual aos últimos vinte anos,
desde 1975. As ruas estreitas e largas continuam apinhadas de transeuntes. Em 1990,
Machado retira o trânsito automóvel e transforma as Ruas Ferreira Borges e
Visconde da Luz em vias pedonais. Com esta proibição de trânsito automóvel
começou o esvaziamento nestas artérias de muitos consultórios médicos e, talvez
na subsequência, o encerramento de dois antigos cafés, o Arcádia e a Central.
No Verão de 1995, sobre
orientação de Fernando Távora, que fora também o responsável pelo projecto de
pedonalização das ruas largas, iniciam-se as obras de rebaixamento do piso da Praça
8 de Maio.
Se bem que por estas mudanças
houvesse alguma preocupação no rosto de alguns comerciantes, que desde sempre
fizeram a sua vida na zona, as novas alterações de tráfego foram abençoadas pela
associação de comerciantes destas duas artérias centrais.
A abertura, dois anos antes, em
1993, das grandes superfícies Makro e Continente, no Vale das Flores, gerara também
alguma apreensão e, para além de constituir um previsível rombo na clientela,
era uma outra forma de concorrência difícil de acompanhar. Lideradas por César
Branquinho, um comerciante com loja na Rua das Padeiras, próximo do PS e muito
activo nas lides associativas –e que chegou a ser presidente da ACIC,
Associação Comercial e Industrial de Coimbra-, realizaram-se umas marchas públicas
contra a abertura das grandes superfícies. Estas manifestações não tiveram
grande impacto nos conimbricenses, sobretudo nos consumidores que, como é
hábito, buscam a novidade e, por outro lado, sempre olharam os comerciantes como
bem instalados e avessos à mudança. Havia um pressentimento em alguns (poucos) lojistas
de que as coisas iriam mudar a médio prazo. Sobretudo assente no pressuposto de
que os clientes que vinham de fora, do concelho e do distrito, e até aqui
faziam da Baixa o centro do centro, agora, com estas inaugurações das catedrais
de consumo em pontos estratégicos da periferia, fariam lá as suas compras e nem
chegariam a entrar na cidade. A maioria dos comerciantes continuou a assobiar
para o lado e não ligou. A procura de espaços comerciais nesta zona velha continuava
muito alta. Assente numa lei de arrendamento iníquo, injusta para os
proprietários que não podiam alterar as rendas, os trespasses –cedência de
negócio para outro- facilmente atingiam valores acima de vinte mil contos (cem
mil euros) para uma pequena loja. O trespasse constituía assim uma espécie de
seguro de velhice para os mercadores.
O DESGASTE DO MACHADISMO
Estamos em
1998. Manuel Machado -o “Manel das
rotundas”, como chegou a ser rotulado-que fora eleito em 1990 para gerir os
destinos da cidade, estava agora no terceiro mandato e começava a acusar o natural
cansaço nos eleitores depois ter tomado algumas medidas conflituantes –como,
por exemplo, ter colocado em concurso público e alienado o espaço do
Bota-Abaixo. Faltava apenas alguém que lhe fizesse sombra, retirando-lhe o
tapete do poder, e, com o beneplácito da imprensa, fosse capaz de lhe causar o
desgaste necessário para o empurrar para fora de cena. Coimbra, tal como o
país, sempre esteve à espera do seu Dom Sebastião para a levar para o olimpo celestial
e idealizado –que se pensa ser somente no primeiro ano do resto de três
mandatos. Passando o prazo de graça, e esgotada a esperança do novo salvador,
até já se paga para substituir o “empecilho”.
O refrão utilizado para justificar a substituição é sempre o mesmo: “a cidade está estagnada; não é ouvida em
Lisboa e não consegue captar a indústria.”
Neste ano de 1998, há eleições na
ACIC e, apeando uma linha socialista na direcção, quem ganha o sufrágio é um
executivo conotado com os social-democratas e que tinha por líder Horácio Pina
Prata, até aí presidente da ANJE, Associação Nacional de Jovens Empresários.
Pina Prata, com cerca de quarenta
anos, primo de Joaquim Pina Moura, na altura, então Ministro da Economia do
Governo de António Guterres, ambicioso, inteligente, sufista da dialética
urbana, era o modelo do “desejado” e
pronto para destituir Machado. Por outro lado, o PSD, Partido Social Democrata,
que há quase uma década que não via passar o padeiro na urbe, abriu os braços
e deu todo o apoio à nova estrela cintilante. E Prata, senhor de um ego maior e
ávido de poder, não se fez rogado. Servindo-se da ACIC como trampolim e apoiado
por elementos da sua direcção que viam nele um general de campanha –na qual me
incluo-, durante três anos, raro era o dia em que os jornais locais não falavam
das indirectas vindas da centenária agremiação contra o chefe do executivo na Praça 8 de Maio. Entre
as duas instituições, autarquia e associação comercial, havia um latente ódio
surdo entre os seus chefes de bancada que não era sequer disfarçado. Ambos
sabiam que era uma luta de vida ou morte política. A cada decisão de Machado,
como a construção do Elevador do Mercado, a requalificação do Mercado Municipal
D. Pedro V, ou o licenciamento de novas grandes áreas comerciais, correspondia
uma minuciosa e bem estudada resposta inserida numa estratégia bem urdida por parte da ACIC.
CAI MACHADO E SOBE
ENCARNAÇÃO
Estamos em Dezembro de 2001 e o PSD acabou de
ganhar a Câmara Municipal de Coimbra com Carlos Encarnação como presidente e
Pina Prata como vice -este mantém a presidência da ACIC ex aequo com o segundo lugar na edilidade até 2005 quando se
desentende com Encarnação. Ficaram célebres as contradições de Prata. Por exemplo,
ao inaugurar o Retail Parque de Eiras, enquanto vice da edilidade proclamou que
era uma grande vitória para o desenvolvimento de Coimbra, já como presidente da
ACIC apelidou este acto de destruidor para o comércio tradicional.
Contrariamente ao esperado,
gorando os anseios de muitos comerciantes, como eu, que esperavam uma
obrigatória e necessária lucidez na contenção de novos licenciamentos, e
alinhando nas mesmas políticas do PS, o executivo laranja, para além de nada
fazer para revitalizar o tecido comercial da Baixa, continuou a licenciar mais
grandes superfícies em torno da cidade e, provavelmente, transformou Coimbra na
urbe nacional com mais shoppings per
capita. O resultado destas desbragadas medidas políticas neoliberais foi o
encerramento contínuo de grandes casas comerciais que fizeram a história da
Lusa Atenas no último meio-século. A consequência deste abandono, mostrado
pelas facilidades concedidas às novas centralidades e desamparo dos
estabelecimentos antigos –que foram sendo substituídos por lojas chinesas-, foi
a zona histórica perder paulatinamente o interesse.
A ideia utópica e megalómana do Metro Ligeiro
de Superfície –subscrita por um primeiro-ministro Sócrates, desonesto, e por um
presidente da Câmara local, Encarnação, aproveitador, que utilizou o projecto da
Empresa Metro Mondego para ser reeleito em Outubro de 2005-, “expulsando”
serviços, comércios e moradores, com a desconstrução do edificado para a futura
avenida central fez o que faltava para transformar a zona numa terra de ninguém,
entregue a velhos e a toxico-dependentes –como se encontra hoje. Até agora ninguém se entende.
VIRA O DISCO E TOCA O
MESMO
Quer os governos, PSD-CDS e PS, quer os
executivos camarários -salvo uma ou outra excepção destes últimos-,
maioritariamente sempre estiveram prontos a servir e a entregar numa bandeja o
comércio de rua ao grande capital. Facilitar em tudo o que se pode aos grandes
investidores e criando dificuldades aos pequenos foi sempre a doutrina sagrada destes
três partidos políticos. Daí não ser admiração que os centros históricos das
cidades, na generalidade, se encontrem no estado decrépito em que estão. Uns e
outros, social-democratas e socialistas, sabendo que agradavam aos consumidores
–a maior massa abstracta de votantes- seduzidos pela ideia de progresso e com o
apriorismo de que o que é tradicional cheira a bafio e a anacronismo, sempre
perpassaram a fantasia de que o desenvolvimento de uma cidade era medido pelo
número de centros comerciais. Por isso mesmo, apesar de declarações em
contrário, continua-se, ainda hoje, a licenciar grandes superfícies. Não deixa
de ser curioso e atentar no paradoxo ao citar o depoimento de Maria Manuela
Leitão Marques, presidente do Observatório do Comércio na altura e com ligações
ao PS, em Maio de 2002, à revista do “Comércio Alimentar”: “A questão do licenciamento de hipermercados
está praticamente resolvida, já não há muito mais espaço para o seu
crescimento. Com a lei actual, o excesso cometeu-se –há cidades em que se
instalaram três grandes superfícies. O que não prejudica o consumidor, pode
prejudicar é a rentabilidade dessas empresas. Quando existe um hipermercado, a
instalação próxima de um segundo vem roubar quota de mercado ao existente; o
primeiro hipermercado, obviamente, ao comércio tradicional independente. São os
supermercados que mais concorrem com o comércio de proximidade e afectam as
mercearias, com preços até relativamente caros, mas com grande variedade e
muito bem arranjados”.
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