quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A SOCIEDADE RELAPSA

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)


Há cerca de um ano, um meu conhecido presidente de uma emérita associação de beneficência e apoio aos desabrigados da sorte, em Coimbra, apresentou-se no meu estabelecimento para levar uns artigos, alegadamente, para a entidade que representava. A importância era cerca de 150,00 euros. Na hora do pagamento, apalpando o bolso interior, atirou: “ora bolas, senhor Luís! Não trago a carteira!”. Como o conhecia há vários anos, na minha melhor simpatia, remeti que não havia problema nenhum e que mais tarde, quando passasse, pagaria.
O tempo foi passando. O Inverno deu lugar à Primavera, veio o Verão, chegou o Outono e do meu “amigo” –pensava eu- nem dinheiro, nem recado, nem presença física. Perante o seu “esquecimento” notório, comecei por lhe ligar para o telemóvel. Nunca me atendeu apesar de repetir a operação. A seguir enviei mensagens de cobrador que apenas quer receber e absolutamente mais nada: senhor presidente, tenho a certeza de que se esqueceu da sua dívida. Peço-lhe que, quando puder, passe na minha loja. Depois de enviar várias mensagens nunca me respondeu. 
Para quem já passou por estes problemas sabe que o credor, sobretudo quando se trata de uma relação de conhecimento próximo, sente-se inibido na acção legítima de receber e, numa esperança bacoca, vai adiando a cobrança compulsiva. No meu caso, não tinha dúvida, estava perante um reiterado abuso de confiança e falta de respeito. Como nunca me deu uma explicação, a seguir comecei a telefonar para a associação que representava e para ver se o apanhava. Como não consegui, comecei por deixar recados: por favor, transmita ao presidente que o Luís, da Baixa, ligou e pede para ele entrar em contacto com urgência.
As folhas secas continuaram a cair das árvores neste Outono de clima de veraneio e nem sombra do meu devedor. Comecei a “passar-me dos carretos” –e quando isto acontece não se esperem beijinhos nem abraços. Comecei a pensar no meu habitual plano de contingência e nos dois passos subsequentes: contacto e resistência pronta para o que der e vier. Primeiro, tentar a aproximação ao relapso e obrigá-lo marcar a data de pagamento. Segundo, no caso de incumprimento, apresentar-se na morada ou no seu trabalho e passar lá o dia a perguntar aos vizinhos e colegas se conhecem o devedor e, em conversa assim sem quê nem porquê, vai-se falando do motivo de estar ali. Posso garantir que é uma medida pacífica e que, normalmente, gera bons resultados.
Nesta última segunda-feira apresentei-me na sede da associação e pedi para falar com o presidente. Não estava, foi-me dito. Então precisava de comunicar com alguém responsável e pertencente à direcção. Estava o tesoureiro. Veio e, perante algumas pessoas, interrogou acerca da minha presença. Pedi para conversar em privado. Contei o que se estava a verificar e expliquei a minha estada ali. O presidente, ao apresentar-se na minha loja, invocou a sua qualidade institucional o que, por direito e em princípio, dividia a obrigação entre a sua instituição e o seu acto privado. Embora tentando disfarçar o transtorno, o tesoureiro sentiu algum incómodo e, titubeando, lá foi argumentando que “não era possível acontecer uma coisa destas. A instituição não tinha necessidade de estar a dever fosse o que fosse a alguém”. No entanto, disse, iria apresentar o assunto em reunião de direcção no dia seguinte.
Menos de uma hora depois deste diálogo ocorrido na última segunda-feira, recebi uma mensagem do presidente e devedor: “Senhor Luís, bom dia. Eu peço desculpa pelo incómodo que lhe tenho causado. Eu, entre o esquecimento, o trabalho e saúde, deixei passar o tempo. Quinta-feira ou vou aí ou se me mandar o seu NIB faço a transferência. Para mim era mais cómodo. Ando com gripe e quanto menos andar na rua melhor. Abraço amigo”.
Enviei-lhe os caracteres do NIB, Número de Identificação Bancária. Passados minutos replicou: “Obrigado. Está no seu nome? E o Banco? É só para não errar. Obrigado”.
Como fiquei na ideia de que me iria transferir o dinheiro até hoje e não aconteceu, durante esta manhã, liguei-lhe várias vezes. Não atendeu. Enviei-lhe uma mensagem: Bom dia, presidente. Como não me atende e como ainda não fez a prometida transferência bancária, amanhã vou receber à associação. Obrigado.
Passados minutos enviou uma mensagem: “Eu disse ao Senhor Luís que faria hoje. Estou a ir ao Multibanco fazer.”
Como uma transferência bancária, segundo sei, demora 24 horas, ainda não sei se, de facto, a realizou ou não. Amanhã saberei.
O que é que estará a acontecer com estas pessoas, como este dirigente que ocupa um cargo de grande responsabilidade, que deveriam dar o exemplo à colectividade? A culpada deste procedimento é a crise? Mas que crise?

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