(REPUBLICANDO UM
AMONTOADO DE
LETRAS
ESCRITAS EM
2018)
Apesar
de ser Domingo, a dois dias do Natal seria de supor, por um lado, que
todas as lojas comerciais estivessem abertas, por outro, que toda a
cidade, em massa e em nome dos velhos tempos, acorresse a fazer
compras no coração da tradição. Ora, nem em um nem noutro casos
aconteceu assim. Ou seja, nem os estabelecimentos abriram em bloco -
só cerca de dez por cento compareceu à chamada laboral –, nem a
esperada clientela pôs os pés na zona histórica.
Quer por uns quer
por outros, é de admirar este procedimento? Ou não? A ver vamos!
Pelos primeiros, os comerciantes, por alguma lamúria avulsa que
graça por entre becos e ruelas, seria de supor que abririam portas
nesta véspera que já foi tão importante nas vendas anuais. Pelos
segundos, os citadinos, sempre tão críticos com a classe política,
afoitos e generosos com discursos pungentes sobre o estado da Baixa,
também custa a entender. A menos que, nos dois estratos, ocorresse
qualquer acaso que forçasse a não comparência. Por conseguinte, se
todos temos curiosidade em saber, nada melhor do que perguntar, é ou
não é verdade?
A
passear calmamente numa das ruas largas como se aferisse o movimento
de passantes, de sobretudo comprido com golas coçadas, que já viu
melhores dias e mãos nos bolsos, encontrámos um nosso amigo e
colega estabelecido -que não identifico por questões de reserva.
Depois do cumprimento da praxe, atirei-lhe de supetão: Então não
abriste hoje? Anda pouca gente a circular, não é? Tentei
contemporizar.
- Não é por
isso, pá! – respondeu-me irritado, como se tivesse entendido a
minha observação à laia de provocação.
Eu não abri a
minha loja em solidariedade com os nossos Coletes Amarelos, que se
manifestaram há três dias no nosso país. Por culpa do Governo, do
Presidente da República, dos partidos políticos e do nosso
presidente da Câmara a nossa cidade está de rastos! Eu nunca vi
isto assim! No negócio, o pior Natal dos últimos vinte anos! O mal
de tudo é a apatia das pessoas! Ninguém quer saber! Fossem todos
como eu e Portugal estaria virado do avesso!
E
OS CITADINOS? POR QUE NÃO VIERAM À BAIXA?
Sempre
que preciso de escrever sobre questões de cidade, acima de tudo com
grande imparcialidade, socorro-me da menina Pulquéria, solteira, boa
rapariga e virgem prendada, uma munícipe muito interventiva
mormemente nas redes sociais. No Facebook fazem história para a
posteridade os seus lamentos memoriáveis: “Quem viu esta Baixa
e quem a vê! Meu Deus, os culpados são os políticos da autarquia!
Atenção, todos, incluindo a oposição! Ao que chegou a cidade!
Ainda sou do tempo em que não se podia romper nas ruas estreitas!
São só lojas e mais lojas fechadas! Abandonaram esta parte da
cidade à sua sorte, é o que é!”
Cerca
das 14h30 cliquei nos números para contactar e ouvir a menina
Pulquéria. Como pescador a lançar a rede, atirei: Então a
menina nem hoje veio à Baixa? Sigo os seus escritos com atenção no
Facebook. Desculpe a franqueza mas a gota não bate com a perdigota!
Nem a véspera de Natal mereceu uma visita sua?
- Ai senhor
Luís, não me fale nesse tom, por favor! - retorquiu muito irritada.
Tenho muita consideração por si, mas primeiro escute as minhas
razões e só depois tira conclusões!
- Sou
todo ouvidos, menina -enfatizei como a tentar colocar água
na fervura extemporânea.
- Já não vou à
Baixa desde Quinta-feira, dia da manifestação dos Coletes Amarelos.
Em solidariedade com os protestantes, estou de greve. Este país,
esta cidade, ambos estão um caos e ninguém quer saber. Haviam de
ser todos como eu. Ai se deviam! Então é que isto mudava!
- Mas, então,
presumo que esteve na Casa do Sal com os (poucos)
manifestadores. Esteve lá, não esteve? Interroguei.
- Infelizmente
não pude estar. Deus não quis! Estive de cama todo o dia com uma
pancreatite aguda. Valha-me Deus! Nem quero recordar! Quem havia de
dizer que seria forçada a faltar?!?
UMA
BAIXA SILENCIOSA
Por
coincidência com esta quadra natalícia, ou não, a Baixa está
muito mais silenciosa. Até parece que o remanso dos cemitérios se
instalou nesta parte da cidade. Já não se houve uma cantoria como
no tempo da minha ex-vizinha Imaculada,
que migrou para norte da cidade, quando, com as suas cantorias,
invadia tudo em redor e até os pombos se punham em sentido para a
escutar. Nem uma discussão na viela, nem uma desavença no beco, que
resultava em trolitada de nariz partido. A minha esperança residia
na “Rádio
Baixa”, um recente projecto de emissões de música durante o
dia. Foi prometido que, pelo menos nos primeiros tempos, a alegria
musical seria difundida ao fim-de-semana na Rua Eduardo Coelho e área
envolvente e através de meios digitais em streaming -“tecnologia
que envia informações multimédia, através da transferência de
dados, utilizando redes de computadores, especialmente a Internet.”
Subitamente a
“Rádio Baixa” deixou de emitir sons que contribuíam para
quebrar a rotina de uma urbe envelhecida. O que aconteceu?
À questão
formulada, respondeu uma das fundadoras: “Fomos silenciados por
um vizinho. Um destes domingos passados, estava eu a emitir música
acompanhada com uma colega quando, de repente, vimos entrar
intempestivamente um homem de mão em riste para me bater. Quando viu
que eu estava acompanhada com uma testemunha refreou o ímpeto, mas,
mesmo assim, ainda me retirou os auscultadores dos ouvidos com
violência. Chamámos a PSP para identificar o agressor. Depois da
tramitação processual o agente aconselhou-nos a não colocar a
coluna difusora de som à nossa porta. É por isto que estamos nesta
quietude!”
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