Ninguém
pense que, quantos mais se forem e menos ficarem,
melhor
será para os restantes. Todos ficam mais empobrecidos.
Fica
quem cá fica, fica a minha rua mais vazia de gente viva.
Embora
fosse já do conhecimento de alguns, neste final de Janeiro a minha
rua ficou mais vazia, mais triste e sossegada. A minha rua, que
noutros tempos já foi avenida de cruzamentos, encontros e encontrões
entre transeuntes, já foi artéria principal que, com o seu fluxo
sanguíneo em turbilhão, alimentava o coração comercial, é hoje
uma metáfora de um leito seco onde crescem espécies florais sem
ordenamento. Noutros tempos, com o seu mister de actividade
profissional corporativo dedicado aos sapateiros, tinha dignidade,
identidade e história de um passado honroso entre promitentes
mercadores e vendedores de esperança. O borbulhar das gentes, os
pregões atirados à lufada agreste pelos negociantes populares, como
a peixeira, com as suas canastras de vime no chão, de marisco da
Figueira, da queijeira do Rabaçal, do cigano a tentar impingir um
corte de pano para fazer um fato, do vendedor de banha-da-cobra,
tornavam esta centena de metros de calcorrear numa terra popular de oportunidade
para todos e, pela procura que desencadeava, ganhava auras de
conceito místico e mistério adjacente. Com o passar do tempo, com a
harmonização e formatação importadas de outras terras longínquas,
obrigadas por leis e decretos, num modernismo que se impunha aos
velhos costumes, a minha rua perdeu todo o seu carisma, toda a sua
idiossincrasia, e, como ancião cansado de ser ultrapassado, desistiu
de lutar. Nos nossos dias, é somente um marco morto de um passado
que não se cuidou nem aprendeu pelas lições que os nossos
antepassados nos legaram, uma marca viva da falta de ordenamento
político de uma cidade que já foi primeira e depois terceira. Não
é preciso recuar muito no tempo, bastam poucos anos que passaram, para vermos que
a vida própria da minha rua tem vindo sempre a descer em declive
acentuado em qualidade natural, aquela naturalidade que brota da alma
dos poucos que ainda cá vivem e trabalham.
Era
o grupo que se juntava ao dono de um estabelecimento a disputar à
moeda no largo fronteiro, com os gritos dos jogadores, “três”,
“cinco”, “dez”, a ecoar no empedrado da calçada
e a abalar a paz dos pombos nos beirais. Encerrou a loja e o troar do
concurso desapareceu. Ficou o hino à cidade perdida.
Era
o riso esganiçado de uma empregada de um espaço comercial que logo
ao raiar da manhã tinha o efeito do despertar nos campos pela torre
sineira de um campanário. Fechou a venda e com o seu sumiço foi
também um riso que era único e original.
Era
o dono de uma sapataria a chamar o filho em altos berros, que estava
no café em frente: “ó fulano! Vem imediatamente!”.
Encerrou, e com ele foi o pai, o filho e o espírito que era detido
por aquela esquina.
Era
o dono de um outro bazar que, quando passava no cruzamento da Rua das
Padeiras, em câmara-de-eco, atirava um cumprimento a um colega: “Ó
Luuuuiiiiz!”. Claudicou o bazar, e com o lojista tudo se foi.
Era
uma morena de Angola, uma rapariga negra, que da janela do seu
terceiro-andar, talvez tentando imitar Tássia Reis, no crepúsculo e
tantas vezes ao amanhecer, fazendo a festa, deitando os foguetes e
apanhando as canas, dava música a rodos, aos vizinhos e a todos
quantos passavam por estas paragens.
Embora
o ambiente fosse já uma sombra de outros tempos e parecesse nos dias
que correm uma melancólica alameda emoldurada por ciprestes, neste
começo de Fevereiro a minha rua ficou ainda mais silenciosa. Numa
assentada partiram quatro mulheres que, à sua maneira e forma de
ser, com a sua beleza, contribuíam para o enriquecimento da
envolvente já de pasmaceira. Ninguém pense que, quantos mais se
forem e menos ficarem, melhor será para os restantes. Todos ficam
mais empobrecidos. Fica quem cá fica, fica a minha rua mais vazia de
gente viva.
Foi-se
a nossa morena de Angola -foi viver para uma casa que lhe foi
atribuída num bairro camarário-, e com ela as cantorias de todas as
estações do ano.
Por
força de circunstâncias adversas, de conjuntura económica, por
falta de políticas de rejuvenescimento da cidade, por falta de apoio
social, pelo empobrecimento da minha rua, partiram também mais três
senhoras ligadas ao comércio. Sem despedida para quem ainda se
mantêm por cá temporariamente, com que amargura, imagina-se, levaram consigo a
frustração de verem um legítimo sonho interrompido sem apelo nem
agravo. Duas delas, ainda na flor da idade, podem voltar a sonhar com
um projecto de sucesso que as alavanque para uma vida melhor. Outra,
já com os cabelos prateados a serem escondidos numa pintura
repetida, sem direito a desemprego, sem idade para competir com
outros corpos mais curvilíneos, a próxima etapa afigura-se bem mais
difícil. Mas, isto importa alguém? A Confederação do Comércio e
Serviços de Portugal, com assento na Concertação Social, quer
saber disto para alguma coisa?
Para todos os que partiram, forçados ou não forçados pelo insucesso dos ventos da infelicidade, pelo espírito de entrega que deram à minha rua, uma grande salva de palmas.
Para todos os que partiram, forçados ou não forçados pelo insucesso dos ventos da infelicidade, pelo espírito de entrega que deram à minha rua, uma grande salva de palmas.
Sem comentários:
Enviar um comentário