quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

BAIXA: NA MINHA RUA HAVIA UMA MORENA DE ANGOLA





Ninguém pense que, quantos mais se forem e menos ficarem,
melhor será para os restantes. Todos ficam mais empobrecidos.
Fica quem cá fica, fica a minha rua mais vazia de gente viva.

Embora fosse já do conhecimento de alguns, neste final de Janeiro a minha rua ficou mais vazia, mais triste e sossegada. A minha rua, que noutros tempos já foi avenida de cruzamentos, encontros e encontrões entre transeuntes, já foi artéria principal que, com o seu fluxo sanguíneo em turbilhão, alimentava o coração comercial, é hoje uma metáfora de um leito seco onde crescem espécies florais sem ordenamento. Noutros tempos, com o seu mister de actividade profissional corporativo dedicado aos sapateiros, tinha dignidade, identidade e história de um passado honroso entre promitentes mercadores e vendedores de esperança. O borbulhar das gentes, os pregões atirados à lufada agreste pelos negociantes populares, como a peixeira, com as suas canastras de vime no chão, de marisco da Figueira, da queijeira do Rabaçal, do cigano a tentar impingir um corte de pano para fazer um fato, do vendedor de banha-da-cobra, tornavam esta centena de metros de calcorrear numa terra popular de oportunidade para todos e, pela procura que desencadeava, ganhava auras de conceito místico e mistério adjacente. Com o passar do tempo, com a harmonização e formatação importadas de outras terras longínquas, obrigadas por leis e decretos, num modernismo que se impunha aos velhos costumes, a minha rua perdeu todo o seu carisma, toda a sua idiossincrasia, e, como ancião cansado de ser ultrapassado, desistiu de lutar. Nos nossos dias, é somente um marco morto de um passado que não se cuidou nem aprendeu pelas lições que os nossos antepassados nos legaram, uma marca viva da falta de ordenamento político de uma cidade que já foi primeira e depois terceira. Não é preciso recuar muito no tempo, bastam poucos anos que passaram, para vermos que a vida própria da minha rua tem vindo sempre a descer em declive acentuado em qualidade natural, aquela naturalidade que brota da alma dos poucos que ainda cá vivem e trabalham.
Era o grupo que se juntava ao dono de um estabelecimento a disputar à moeda no largo fronteiro, com os gritos dos jogadores, “três”, “cinco”, “dez”, a ecoar no empedrado da calçada e a abalar a paz dos pombos nos beirais. Encerrou a loja e o troar do concurso desapareceu. Ficou o hino à cidade perdida.
Era o riso esganiçado de uma empregada de um espaço comercial que logo ao raiar da manhã tinha o efeito do despertar nos campos pela torre sineira de um campanário. Fechou a venda e com o seu sumiço foi também um riso que era único e original.
Era o dono de uma sapataria a chamar o filho em altos berros, que estava no café em frente: “ó fulano! Vem imediatamente!”. Encerrou, e com ele foi o pai, o filho e o espírito que era detido por aquela esquina.
Era o dono de um outro bazar que, quando passava no cruzamento da Rua das Padeiras, em câmara-de-eco, atirava um cumprimento a um colega: “Ó Luuuuiiiiz!”. Claudicou o bazar, e com o lojista tudo se foi.
Era uma morena de Angola, uma rapariga negra, que da janela do seu terceiro-andar, talvez tentando imitar Tássia Reis, no crepúsculo e tantas vezes ao amanhecer, fazendo a festa, deitando os foguetes e apanhando as canas, dava música a rodos, aos vizinhos e a todos quantos passavam por estas paragens.
Embora o ambiente fosse já uma sombra de outros tempos e parecesse nos dias que correm uma melancólica alameda emoldurada por ciprestes, neste começo de Fevereiro a minha rua ficou ainda mais silenciosa. Numa assentada partiram quatro mulheres que, à sua maneira e forma de ser, com a sua beleza, contribuíam para o enriquecimento da envolvente já de pasmaceira. Ninguém pense que, quantos mais se forem e menos ficarem, melhor será para os restantes. Todos ficam mais empobrecidos. Fica quem cá fica, fica a minha rua mais vazia de gente viva.
Foi-se a nossa morena de Angola -foi viver para uma casa que lhe foi atribuída num bairro camarário-, e com ela as cantorias de todas as estações do ano.
Por força de circunstâncias adversas, de conjuntura económica, por falta de políticas de rejuvenescimento da cidade, por falta de apoio social, pelo empobrecimento da minha rua, partiram também mais três senhoras ligadas ao comércio. Sem despedida para quem ainda se mantêm por cá temporariamente, com que amargura, imagina-se, levaram consigo a frustração de verem um legítimo sonho interrompido sem apelo nem agravo. Duas delas, ainda na flor da idade, podem voltar a sonhar com um projecto de sucesso que as alavanque para uma vida melhor. Outra, já com os cabelos prateados a serem escondidos numa pintura repetida, sem direito a desemprego, sem idade para competir com outros corpos mais curvilíneos, a próxima etapa afigura-se bem mais difícil. Mas, isto importa alguém? A Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, com assento na Concertação Social, quer saber disto para alguma coisa?
Para todos os que partiram, forçados ou não forçados pelo insucesso dos ventos da infelicidade, pelo espírito de entrega que deram à minha rua, uma grande salva de palmas.

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