(REPUBLICANDO UM
AMONTOADO DE
LETRAS
É
Sábado, 24 de Dezembro, são 9h30 na Rua Eduardo Coelho, em plena
Baixa da cidade. O facto de ser véspera de Natal não traz qualquer
movimento extraordinário à artéria outrora movimentadíssima nesta
época de lembranças e prendas natalícias.
Apesar
do Sol bafejar com os seus raios luminosos os largos, os telhados e
os beirais, está um vento cortante e frio. Os poucos transeuntes, de
sobretudo de lã e alguns com gorro na cabeça, passam, de ar
descansado, com as mãos nos bolsos.
Alguns
comerciantes estão à porta das suas lojas, como se em cada pessoa
que passe esperem ver ali o Natal personificado. Nenhum deles precisa
de falar para se adivinhar o que lhes vai na alma. Numa loja da mesma
rua, quando interrogo uma funcionária acerca do movimento as
lágrimas vem-lhe imediatamente aos olhos. Pelo canto dos lábios,
num sussurro de silêncio e envolvido em temor, balbucia: “muito
mau! Muito Mau! Não sei o que vai acontecer para o mês que vem.”
Junto
à antiga sapataria Reis –encerrada repentinamente há meia dúzia
de meses e depois de oito décadas de história comercial- uma cigana
romena, com uma criança ao colo com pouco mais de um ano, como
grafonola com disco riscado, repete incessantemente: “Bon”
Nátál”! “Bon” Nátál”!
As
pessoas que calcorreiam as pedras, maioritariamente já com mais de
meio século, de aspecto empobrecido, e de rostos fechados, fazem de
conta que não ouvem o apelo.
Roda um homem, bem
vestido, bombardeado pela lengalenga da cigana, manda-lhe um olhar de
soslaio, comprime os lábios -como se dissesse “gostava de te
ajudar, mas não posso”- e continua em passo descompassado.
Passa uma
prostituta, com a cara meia desfeita, como se na noite anterior o
chulo estivesse a treinar boxe e fizesse dela um saco de frustrações,
olha, com um olhar sem cor e sem sabor, e continua em direcção à
sua vida, provavelmente, sem futuro previsível.
Passa um sem-abrigo
–meu conhecido, mas que, pela aparência de bem vestido, poucos
adivinharão ser-, olha para a mulher com desdém e profere: “vai
trabalhar! Vai-te fornicar!”
Durante cerca de um
quarto de hora ninguém responde materialmente ao apelo pungente da
mendiga. Neste meio tempo ainda passa um homem e, correspondendo à
saudação, mas sem dar uma moeda, diz por entre dentes: “bom
Natal!”
Um rapaz, de cerca
de vinte e poucos anos, de aspecto “rap”, com boné de
pala a atirar para o infinito e calças ao fundo do rabo, pára e dá
a primeira esmola.
Na
rua, quase silenciosa, o titubear da cigana é o único som que
atravessa um raio de largos metros. Mais uma vez está a dar mama à
criança, quem sabe, para a manter sossegada, pois saberá que, a
seguir ao aleitamento, irá dormir no seu colo durante meia-hora.
Continua a ladainha: “Bon” “Nátál!”
Um
homem meu conhecido, a atravessar a idade perigosa dos cinquenta,
completamente embriagado, de olhar esgazeado e a babar-se para a
camisa, e que em tempos, a escrever, foi uma “pena de ouro”, mas
que, por certo, a solidão, esse terrível flagelo dos tempos
modernos, empurraram para a depressão e para o álcool e levando a
que perdesse o emprego num grande jornal nacional, encosta-se a mim
e, borrifando-me com um hálito de alto teor etílico, em tom de
ordenança, sentencia: “dá-me uma moeda!”. Como nego a
solicitação, passa ao ataque: “tu… tens a mania que…
escreves bem, mas não… escreves nada! Estás a… ouvir? Que sabes
tu de mim? Para… me…enviares o… e-mail? Tu não… me conheces.
Estás a… ouvir?” –Há tempos enviei-lhe um e-mail a
oferecer-lhe ajuda para uma desintoxicação ao álcool. Foi-se
afastando, a remoer as palavras, como se eu fosse o causador da dor
profunda que lhe feria a carne e atormentava a alma. Parou ao pé da
cigana a praguejar. Retirou do bolso uma moeda e colocou-a na sua
mão. Continuando a atirar palavras ao vento, foi-se afastando em
direcção ao seu vazio existencial.
Um
caniche preto, aparentemente sem dono e sem beira, pára junto à
cigana e, sem pedir licença, alça a pata. A mulher, entretida com o
filho, pareceu não reparar naquele acto, como que a dar fundamento
ao aforismo de que “quando uma pessoa está no chão até os
cães nos vem mijar na perna”.
Passa outra romena,
que habitualmente vende pensos e, por força persuasiva, é uma
“cola”, em jeito de melga desgraçada, olha de soslaio
para o quadro de miséria, e continua na passada, sem lhe dirigir
palavra.
Uma mulher já
entradota nos “entas”, certamente reformada, de aspecto
doméstico e pobre, de cabelos prateados e atados num carrapito,
estaca, calmamente retira o porta-moedas do interior do casaco e, em
ralenti, dá uma moeda em forma de óbolo à mendicante.
São
onze horas da manhã desta véspera de Natal, que já foi um dia, a
cigana, quem sabe dorida de estar com as pernas cruzadas no chão
frio da calçada, levanta-se e vai para outra vida. Se calhar, para
um outro posto, para uma outra esquina, porque esta rua já foi, ou
já deu o que tinha a dar.
Duas
mulheres, mais que certo serem mãe e filha, vestidas de preto,
passam ainda com a pedinte no chão e viram para o Largo da Freiria,
encaminhando-se para a montra de uma loja. A mais velha volta atrás
para ir entregar um níquel à mendiga, mas esta já ia a passadas
dali. Volta para junto da mais nova e diz: “olha, já foi
embora! Queria dar-lhe um euro!”. A provavelmente filha, a rir
do acto, diz à mãe: “que mania a tua, a de sempre que vês um
pobre teres de lhe dar dinheiro!”
Sem comentários:
Enviar um comentário