quarta-feira, 5 de outubro de 2016

NO 5 DE OUTUBRO, QUEM SÃO OS "OCUPAS"? O QUE DIZEM ELES?





Neste 5 de Outubro, dia da comemoração da Implantação da República e este ano já com o feriado reposto depois de ser abolido pelo anterior governo de Passos Coelho, a Baixa, com cerca de uma vintena de estabelecimentos de comércio tradicional abertos -sem incluir as lojas de “recuerdos” na Rua Ferreira Borges, que estiveram todas de portas abertas- parecia a minha aldeia. Dá para pensar que, por força de lei, se no ano passado foi um dia normal de trabalho e os comerciantes laboraram, este ano não trabalhando, pela força da reposição histórica, quer dizer que o que move os mercadores não é a necessidade mas antes a obrigação. No limite, também pode querer significar que os negociantes são fervorosos republicanos e, neste caso, as manifestações na cidade a favor do movimento implantado em 1910 estiveram a abarrotar. Uma coisa é certa, pelo vazio de incerteza criado nos consumidores, salvo rara excepção, quem esteve aberto também não ganhou para o consumo da energia eléctrica. Anda-se nisto há vários anos: os poucos que querem trabalhar, sendo prejudicados pela desmotivação da maioria que não quer, acabam por desistir.
Entre a Praça do Comércio, atravessando as ruas estreitas, e a Praça 8 de Maio só nove lojas abriram portas, incluindo quatro espaços de vendedores chineses -que, pela entrega ao trabalho, continuam a dar lições aos ocidentais.
Excluindo as cerca de vinte, só trabalharam as actividades viradas para o turismo, como, por exemplo, a hotelaria, as lojas de artesanato -e aqui, por momentos, paremos para pensar que esta abertura massiva se deve unicamente à concentração de sete lojas da mesma gerência. Os outros, seguem-lhe os passos para não ficar atrás. Um caso de estudo, ou para reflexão, se quisermos. Também “trabalharam” nas ruas largas várias tunas de estudantes no apelo à moedinha e, como não poderia deixar de ser, os incansáveis e esforçados “ocupas” com poiso certo na Rua da Sofia. Na minha volta pela Baixa, dei de caras com o grupo. De repente pensei para comigo que, tendo já escrito sobre a posição dos operadores da rua da sabedoria, no contraditório, seria de justiça ouvir o que têm eles a dizer. São maltratados pelos comerciantes? Acaso saberão que, aparentemente, há um movimento generalizado para iniciar um despejo sumário?
Como no grupo há um elemento que conheço há muitos anos, o João, mais conhecido pela alcunha de “Johnny Be Good, por que não falar com eles e ouvir a sua versão?

QUEM SÃO OS “OCUPAS

Sentado à minha frente está um grupo de quatro pessoas, homens. Como o conheço, começo pelo João António Nascimento Gonçalves, mais conhecido na Baixa como “Johnny Be Good”. O João tem cerca de quarenta anos de idade, olhos vivos, ágil de força em corpo magro e caminhar esconjuntado, fala pausadamente como quem sabe o que diz. Desde o boné à “Mao” até à camisola vestida com as cores da bandeira do Reino Unido -em analogia ao “Brexit”, saída da União Europeia- tudo nele indica rebelião pacífica contra o sistema. Quem o conhece por aqui, como eu, sabe que não se consta que fizesse mal a alguém.
Vamos então a perguntas:

Quem és tu, “Johnny”?
-Sou um tipo pacífico, natural de Lisboa, de São Sebastião da Pedreira. Estou em Coimbra há muitos anos, tantos que já nem recordo quantos. Trabalhei cá numa fábrica de candeeiros. O nome não me lembro. Recebo o RSI, Rendimento Social de Inserção, e durmo em casa de amigos.
Certamente já ouviste que vocês não são bem-vindos aqui na rua. Apercebeste-te de alguma agressividade?
-Não, nunca ouvi dizer nada. As pessoas são agradáveis connosco. Não todos, é claro. Alguns, pela indiferença, ignoram-nos. Mas a maioria parece gostar de nós. Até nos trazem comida para os cães. Também é certo que não fazemos mal a ninguém. A vizinhança nunca veio falar connosco e dizer que estamos a prejudicar. A ideia que tenho é que gostam de nós. Às vezes uma senhora de um restaurante, aqui para a frente -e aponta em direcção da Câmara Municipal-, dá-nos comer e dá também aos cães. Nunca notámos qualquer animosidade por parte dos vizinhos, graças a Deus, não! Houve há tempos um pequeno problema com um agente da PSP. Ele disse que não podíamos estar aqui. Mas também não fundamentou a sua afirmação e a coisa ficou assim. Nunca mais ninguém disse nada. Estamos aqui no passeio porque a loja está fechada e pensamos que não incomodamos. Se estivesse aberta -até era bom para a cidade, porque era um meio de dar emprego-,iríamos ali para a frente -e aponta o passeio do outo lado da rua, defronte da Igreja da Graça.
Estamos aqui numa de paz, não fazemos mal a quem quer que seja -desde que não nos façam mal a nós. Há muita gente simpática. Deixam dinheiro. Estão sempre a perguntar se os cães têm sede ou fome.
A nossa filosofia é de que “quem está está, quem vai vai”! Os cães não fazem mal a ninguém.

OUTRO COMPANHEIRO DE ASSENTO

Sentado ao lado de “Johnny” está o Fernando Coelho. Barrete negro enterrado na cabeça, bigode farfalhudo em rosto redondo, cuja cor rosada e olheiras engelhadas nos dizem que o álcool fez dele um velho precoce, parece mostrar-nos o modelo de um guerrilheiro urbano.
Quem é o Fernando Coelho, interrogo.
-Actualmente sou um sem-abrigo, mas já fui operário como outro qualquer. Trabalhei muitos anos na desaparecida oficina do Margalho, na Rua Brigadeiro Correia Cardoso, em Coimbra. Durmo numa casa abandonada. Recebo o RSI. A minha família já quis saber da minha situação, mas agora não. Sou solteiro mas tenho uma companheira. Às vezes está aqui comigo. Já estou com ela há vários anos. Conhecia-a em Espanha.
Nunca me apercebi que, aqui, não gostassem de nós. Como nos tratam indica o contrário.

MAIS UM CAMARADA

Um pouco ao lado, sempre com a mão a afagar um cão -junto estão mais dois animais também sua pertença- está o alemão Peter Nietzschres. Cara infantilizada, que mesmo os odores etílicos não afastam o seu ar de menino, deve ter pouco mais de trinta anos. Barba espalhada pelo rosto como semente espalhada em dia de suão, boné de pala a ocupar os fartos cabelos acobreados, e tatuagens nos braços, não fora estar ali num quadro de indigência e dir-se-ia mais um turista em trânsito por Coimbra.
Quem é o Peter? Interrogo.
-Estou em Portugal há cerca de 8 anos -expressa-se num português arranhado mas compreensível. Desde que a Merkel -a chanceler alemã- chegou ao poder que deixei de gostar de viver na Alemanha. Em Portugal sinto-me muito bem. Durmo na rua, onde vejo um lugar. Numa entrada de prédio, numa casa abandonada. Onde der. Componho música -roubaram-me a viola há dias. Faço malabarismo. As pessoas são simpáticas. Não me apercebo aqui de qualquer hostilidade pelo facto de estarmos aqui sentados. Não fazemos mal a ninguém.

E ENTRETANTO OUTRO CHEGA

Enquanto converso com o grupo chega o Luís Miguel da Silva Marques Oliveira. Ao soletrar o nome avisa logo que é comprido. Baixo, de pouco mais de metro e meio, parece um homem novo em corpo de velho. Ombros arqueados, como suportasse o peso do mundo, rosto avermelhado com barba ao sabor do tempo, olhos encovados por consequência do vinho -conserva na mão um pacote-, parece enterrar-se pelo chão adentro.
Quem é o Luís Miguel? Interrogo.
-Sou um sem-abrigo. Tenho 42 anos. Sou natural da Figueira da Foz. Por lá trabalhei no que calhou, numa serração, nas obras, no campo. Depois começou a não haver trabalho e caí nesta vida. Durmo numa casa velha. Não recebo nenhum rendimento social. Não me concedem subsídio porque estou agregado ao rendimento fiscal da minha mãe. Nem tenho ordem para comer na Cozinha Económica. A assistente social manda-me para a Segurança Social e lá só me passam autorização para três dias. Uns dias como, outros não. É conforme calha. Mas não há problema.
Nunca senti aqui qualquer má-vontade de quem aqui trabalhe e vive. Ando por cá há mais de três semanas. Também não me meto com quem passa. Se quiserem dar uma moeda dão, se não quiserem, igualmente, tudo bem na mesma. Já deixei de discutir. Qualquer coisa me serve.

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