Neste
5 de Outubro, dia da comemoração da Implantação da República e
este ano já com o feriado reposto depois de ser abolido pelo
anterior governo de Passos Coelho, a Baixa, com cerca de uma vintena
de estabelecimentos de comércio tradicional abertos -sem incluir as
lojas de “recuerdos” na Rua Ferreira Borges, que estiveram
todas de portas abertas- parecia a minha aldeia. Dá para pensar que,
por força de lei, se no ano passado foi um dia normal de trabalho e
os comerciantes laboraram, este ano não trabalhando, pela força
da reposição histórica, quer dizer que o que move os mercadores
não é a necessidade mas antes a obrigação. No limite, também
pode querer significar que os negociantes são fervorosos
republicanos e, neste caso, as manifestações na cidade a favor do
movimento implantado em 1910 estiveram
a abarrotar. Uma coisa é certa, pelo vazio de incerteza
criado nos consumidores, salvo rara excepção, quem esteve aberto
também não ganhou para o consumo da energia eléctrica. Anda-se
nisto há vários anos: os poucos que querem trabalhar, sendo
prejudicados pela desmotivação da maioria que não quer, acabam por desistir.
Entre
a Praça do Comércio, atravessando as ruas estreitas, e a Praça 8
de Maio só nove lojas abriram portas, incluindo quatro espaços de
vendedores chineses -que, pela entrega ao trabalho, continuam a dar
lições aos ocidentais.
Excluindo as cerca de
vinte, só trabalharam as actividades viradas para o turismo,
como, por exemplo, a hotelaria, as lojas de artesanato -e aqui, por
momentos, paremos para pensar que esta abertura massiva se deve
unicamente à concentração de sete lojas da mesma gerência. Os
outros, seguem-lhe os passos para não ficar atrás. Um caso de
estudo, ou para reflexão, se quisermos. Também “trabalharam”
nas ruas largas várias tunas de estudantes no apelo à moedinha e,
como não poderia deixar de ser, os incansáveis e esforçados
“ocupas” com poiso certo na Rua da Sofia. Na minha volta
pela Baixa, dei de caras com o grupo. De repente pensei para comigo
que, tendo já escrito sobre a posição dos operadores da rua da
sabedoria, no contraditório, seria de justiça ouvir o que têm
eles a dizer. São maltratados pelos comerciantes? Acaso saberão
que, aparentemente, há um movimento generalizado para iniciar um
despejo sumário?
Como no grupo há um
elemento que conheço há muitos anos, o João, mais conhecido pela
alcunha de “Johnny Be Good, por que não falar com eles e
ouvir a sua versão?
QUEM
SÃO OS “OCUPAS”
Sentado
à minha frente está um grupo de quatro pessoas, homens. Como o
conheço, começo pelo João António Nascimento Gonçalves, mais
conhecido na Baixa como “Johnny Be Good”. O João tem
cerca de quarenta anos de idade, olhos vivos, ágil de força em
corpo magro e caminhar esconjuntado, fala pausadamente como quem sabe
o que diz. Desde o boné à “Mao” até à camisola vestida
com as cores da bandeira do Reino Unido -em analogia ao “Brexit”,
saída da União Europeia- tudo nele indica rebelião pacífica
contra o sistema. Quem o conhece por aqui, como eu, sabe que não se
consta que fizesse mal a alguém.
Vamos então a perguntas:
Quem
és tu, “Johnny”?
-Sou
um tipo pacífico, natural de Lisboa, de São Sebastião da Pedreira.
Estou em Coimbra há muitos anos, tantos que já nem recordo quantos.
Trabalhei cá numa fábrica de candeeiros. O nome não me lembro.
Recebo o RSI, Rendimento Social de Inserção, e durmo em casa de
amigos.
Certamente
já ouviste que vocês não são bem-vindos aqui na rua.
Apercebeste-te de alguma agressividade?
-Não,
nunca ouvi dizer nada. As pessoas são agradáveis connosco. Não
todos, é claro. Alguns, pela indiferença, ignoram-nos. Mas a
maioria parece gostar de nós. Até nos trazem comida para os cães.
Também é certo que não fazemos mal a ninguém. A vizinhança nunca
veio falar connosco e dizer que estamos a prejudicar. A ideia que
tenho é que gostam de nós. Às vezes uma senhora de um restaurante,
aqui para a frente -e aponta em
direcção da Câmara Municipal-, dá-nos comer e dá
também aos cães. Nunca notámos qualquer animosidade por parte dos
vizinhos, graças a Deus, não! Houve há tempos um pequeno problema
com um agente da PSP. Ele disse que não podíamos estar aqui. Mas
também não fundamentou a sua afirmação e a coisa ficou assim.
Nunca mais ninguém disse nada. Estamos aqui no passeio porque a loja
está fechada e pensamos que não incomodamos. Se estivesse aberta
-até era bom para a cidade, porque era um meio de dar
emprego-,iríamos ali para a
frente -e aponta o passeio do outo lado da rua, defronte da Igreja da
Graça.
Estamos
aqui numa de paz, não fazemos mal a quem quer que seja -desde que
não nos façam mal a nós. Há muita gente simpática. Deixam
dinheiro. Estão sempre a perguntar se os cães têm sede ou fome.
A
nossa filosofia é de que “quem está está, quem vai vai”! Os
cães não fazem mal a ninguém.
OUTRO
COMPANHEIRO DE ASSENTO
Sentado
ao lado de “Johnny” está o Fernando Coelho. Barrete negro
enterrado na cabeça, bigode farfalhudo em rosto redondo, cuja cor
rosada e olheiras engelhadas nos dizem que o álcool fez dele um
velho precoce, parece mostrar-nos o modelo de um guerrilheiro urbano.
Quem é o
Fernando Coelho, interrogo.
-Actualmente
sou um sem-abrigo, mas já fui operário como outro qualquer.
Trabalhei muitos anos na desaparecida oficina do Margalho, na Rua
Brigadeiro Correia Cardoso, em Coimbra. Durmo numa casa abandonada.
Recebo o RSI. A minha família já quis saber da minha situação,
mas agora não. Sou solteiro mas tenho uma companheira. Às vezes
está aqui comigo. Já estou com ela há vários anos. Conhecia-a em
Espanha.
Nunca
me apercebi que, aqui, não gostassem de nós. Como nos tratam indica
o contrário.
MAIS
UM CAMARADA
Um
pouco ao lado, sempre com a mão a afagar um cão -junto estão
mais dois animais também sua pertença- está o alemão Peter Nietzschres.
Cara infantilizada, que mesmo os odores etílicos não afastam o seu
ar de menino, deve ter pouco mais de trinta anos. Barba espalhada
pelo rosto como semente espalhada em dia de suão, boné de pala a
ocupar os fartos cabelos acobreados, e tatuagens nos braços, não
fora estar ali num quadro de indigência e dir-se-ia mais um turista
em trânsito por Coimbra.
Quem é o Peter?
Interrogo.
-Estou
em Portugal há cerca de 8 anos -expressa-se num português
arranhado mas compreensível. Desde que a Merkel -a chanceler
alemã- chegou ao poder que deixei de gostar de viver na Alemanha. Em
Portugal sinto-me muito bem. Durmo na rua, onde vejo um lugar. Numa
entrada de prédio, numa casa abandonada. Onde der. Componho música
-roubaram-me a viola há dias. Faço malabarismo. As pessoas são
simpáticas. Não me apercebo aqui de qualquer hostilidade pelo facto
de estarmos aqui sentados. Não fazemos mal a ninguém.
E
ENTRETANTO OUTRO CHEGA
Enquanto
converso com o grupo chega o Luís Miguel da Silva Marques Oliveira.
Ao soletrar o nome avisa logo que é comprido. Baixo, de pouco mais
de metro e meio, parece um homem novo em corpo de velho. Ombros
arqueados, como suportasse o peso do mundo, rosto avermelhado com
barba ao sabor do tempo, olhos encovados por consequência do vinho
-conserva na mão um pacote-, parece enterrar-se pelo chão adentro.
Quem
é o Luís Miguel?
Interrogo.
-Sou
um sem-abrigo. Tenho 42 anos. Sou natural da Figueira da Foz. Por lá
trabalhei no que calhou, numa serração, nas obras, no campo. Depois
começou a não haver trabalho e caí nesta vida. Durmo numa casa
velha. Não recebo nenhum rendimento social. Não me concedem
subsídio porque estou agregado ao rendimento fiscal da minha mãe.
Nem tenho ordem para comer na Cozinha Económica. A assistente social
manda-me para a Segurança Social e lá só me passam autorização
para três dias. Uns dias como, outros não. É conforme calha. Mas
não há problema.
Nunca
senti aqui qualquer má-vontade de quem aqui trabalhe e vive. Ando
por cá há mais de três semanas. Também não me meto com quem
passa. Se quiserem dar uma moeda dão, se não quiserem, igualmente,
tudo bem na mesma. Já deixei de discutir. Qualquer coisa me serve.
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