Cerca
das 10h30, na capela funerária da torre da igreja de São José,
começaram as cerimónias fúnebres de Carlos Alberto dos Santos
Duarte, mais conhecido por “Carlitos
popó” ou
“Carlitos pipi”
consoante os dois destinos a que esteve ligado na Baixa de Coimbra e último figurante carismático.
Inicialmente
anunciadas para a igreja central, “devido
ao pouco público presente”,
como disse o pároco celebrante, as cerimónias religiosas foram
realizadas na pequena capela onde estava o corpo presente. Cerca de
três dezenas de pessoas ouviram o presbítero na oração de
encomenda da alma do finado.
Apesar
do diminuto número de acompanhantes, os vários sectores de
actividades profissionais a exercerem na Baixa estiveram muito bem
representados. Desde a Cozinha Económica, com três irmãs vestidas
de hábito de trabalho; ao comércio, com cerca de meia-dúzia de comerciantes a prestarem homenagem ao finado; à hotelaria, com
patrões e empregados a deixarem marcado vinco de saudade; aos
serviços, às trabalhadoras
de vida difícil, com
a lágrima no cantinho do olho
no acto de despedida; até aos polidores
de esquina, também
em bom número de presenças. De salientar também a comparência espiritual de várias dezenas, centenas, ou senão milhares de
lacrimosos do Facebook. Muito sério, sem sorrir, o rosto do
“Carlitos”
parecia agradecer a todos, aos materializados presentes e àqueles
que em pensamento estiveram na sua partida para a última morada. De
luvas brancas, o extinto parecia também agradecer à Câmara
Municipal, à APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra e
à Confraria da Rainha Santa a invisível sentida consagração. De salientar que, aquando do transporte entre a igreja e o cemitério, a urna foi envolvida com uma cobertura onde era visível as armas da cidade.
No
fim da missa, em homenagem póstuma ao “Carlitos”,
foram lidos um bonito texto de António Castelo Branco, ex-animador
social do Inatel, e duas poesias de um comerciante, que, dando pelo
nome de Luís Fernandes, por acaso, até me pareceu chegado. No fim
das leituras foram deixadas muitas palmas em despedida ao “Carlitos”,
o “faz-tudo”,
o “sete-ofícios”
da Baixa de Coimbra, que agora partiu para não mais voltar.
Eis
então o elogio de António Castelo Branco:
“Carlitos:
Não
sei quantos somos os que aqui estão para te dizert adeus. Mas somos
seguramente muitos que contigo conviveram ao longo da tua vida nesta
terra, se não no dia-a-dia, de certeza no decurso das tuas
“estórias”. Coimbra parou ontem quando soube que nos tinhas
deixado, as redes sociais fizeram eco da tua perda do nosso convívio,
na cidade não se falava noutra coisa, a Baixa sentia-se de luto e a
própria academia se rendeu à triste verdade que foi a tua partida.
Em
antítese ao poder e à riqueza, às mordomias e às senhorias, às
honrarias, às condecorações e aos demais títulos que por aqui
proliferam, tu eras, e sempre foste o Carlos PIPI, o rei do Papelão.
E nessa condição viveste, pobre como Jó, sem nunca e mesmo sem
forças, deixares de contribuir para o teu pão de cada dia. E é
nessa vertente da simplicidade, e num reconhecimento pelo exempo que
nos deixas, de sem nada teres e tanto nos legares que aqui estamos.
Que saudades não sentiremos de ti, quando amanhã olharmos para a
Procissão da Rainha Santa e tu não vieres abri-la. E outro tanto
acontecerá aquando das latadas, do Cortejo da Queima, dos desfiles
dos bombeiros e de tantas outras manifestações onde sempre
comparecias compenetradamente responsável e garboso. Era a tua forma
mais ingénua de participar na vida desta cidade que agora te vê
partir com mágoa, mas onde fica a tua memória.”
E
a seguir os dois poemas do tal Luís Fernandes. O primeiro, “Uma
folha caída no Natal”,
para que tomemos atenção aos diferentes
entre iguais que
pululam no nosso meio, e o segundo, “O
Carlitos Popó”,
em homenagem póstuma:
UMA
FOLHA CAÍDA NO NATAL
É
Dezembro…
Uma
folha cai… lentamente…
Ziguezagueia
por entre a amálgama de gente,
gente
apressada, escrava do tempo,
insatisfeita,
faces duras sem contento,
pisam
a folha, alinhados em parada, com tacões,
ecoam
na calçada… como centuriões,
as
pedras vibram, com tanta precisão,
uma
pedrinha solta-se na multidão,
alguém
a pontapeia, ao acaso, em estopada,
e
ela rolando, por cá e lá, vai sendo chutada;
O
vento sopra, cortante, e a folha voa,
e
de cima, olha para baixo, vê à toa,
este
exército mal ordenado,
como
se estivesse condenado,
a
andar, a andar, sem se render,
mesmo
sabendo que vai desaparecer,
continua
a querer mais, a ambicionar
mesmo que por um metro de
terra tenha de matar
e o menino de olhos
tristes, cara meiga, faça chorar,
o que importa nesta
guerra é o feito, o vencer,
a infelicidade não
conta, mesmo sabendo que se vai morrer;
E
de novo a folha cai… lentamente…
Um
louco ri sozinho… desalmadamente,
pega
na folha, com carinho, o anormal,
afaga-a
com a mão, como se fosse um pardal,
faz
caretas, gesticula, dança ao vento com nobreza,
embala
a folha, dá-lhe beijos, filha da natureza,
nem
o frio, a refrear o ímpeto, lhe faz mal,
ele
sabe que é festa, não sabe que é Natal,
não
sente a solidão, não conhece abraços,
não
compreende a razão de tantos laços,
E de tantos rostos
fechados com ar formal;
Alguns presentes e
sacos enfeitados,
tantas
almas embrulhadas,
tanto
amor materializado,
tanto
calor humano… desperdiçado
entre
o dever e o ser,
só
é gente com… o ter,
e
a folha… lentamente,
nos
braços de um demente,
sorri…
para a turba disforme,
e
pensa a folha, se eu falasse… uma frase conforme,
mesmo
com a voz do tonto rouco, gritaria em altos berros:
AFINAL
QUEM É O LOUCO??!
O
“CARLITOS POPÓ”
(Poema
póstumo)
Sou
o Carlos Alberto Duarte,
todos
me conhecem na Baixa,
uns
tomam-me como baluarte,
outros
como louco que encaixa
na
senilidade do seu encarte;
Sou
quase um vivo monumento,
na
paisagem envolvente,
tenho
um pressentimento
que
para muitos não sou gente,
sou
coisa sem sentimento;
Mas
eu sou pessoa que ama,
dentro
de mim bate um coração,
olho
para quem passa, para a dama,
para
a viúva triste sem consolação,
que
olhando para mim, exclama:
“Olha,
é um maluco que aqui vai,
caminhando
nas ruas sozinho,
pouco
fala, parece que nunca sai
do
Largo das Ameias, do cantinho,
pobrezinho,
valha-o Deus, ajudai!”;
Mas
contrariamente ao pensar,
sou
feliz com pouco ter,
basta-me
apenas não chorar,
que
me importa não saber ler,
ou
não ter telemóvel para falar?;
Apesar
de não ser religioso,
mas
até sou um bom cristão,
tantas
vezes sou caridoso,
dou
um braço, dou a mão,
por
alguém mais andrajoso;
Desconheço
o ódio, pois então!
gosto
de qualquer humano,
quando
vou na procissão,
em
passo solene franciscano,
julgam-me
um igual na razão.
UMA LINDA HOMENAGEM DA
ACADEMIA
Chegado
o féretro ao Cemitério da Conchada cerca de uma vintena de pessoas
aguardava os restos mortais do “Carlitos”. Entre eles estava o "Pirilau", um dos figurões de outros tempos, felizmente ainda vivo, certamente por ser muito mais novo, tem agora 58 anos. No agrupamento
perfilavam-se vários estudantes trajados a preceito. Depois da urna
descer à terra o grupo de fado “Capas ao luar” tocou e cantou
dois temas imortais, exactamente, no espírito da mesma imortalidade
do “Popó”. Pela tristeza do fado, pela saudade implícita
da canção coimbrã muitos acompanhantes faziam um grande esforço
para suster as lágrimas. No fim de tudo uma enorme salva de palmas
para o “Carlitos”.
Uma
espectacular, uma bonita homenagem realizada pela academia coimbrã.
Muitos parabéns pelo reconhecimento ao “Rei do Papelão”.
Uma cerimónia singela, mas a mostrar que nem sempre, na última
partida dos simples, o esquecimento prevalece.
1 comentário:
sim e verdade foi com muito esforço que muitos tentaram não chorar .Carlitos pequeno em tamanho mas grande Homem
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