(Foto de Márcio Ramos)
As
recentes notícias sobre o empobrecimento do comércio na Baixa
leva-nos a reflectir sobre o que concorreu fortemente para chegar ao
que se chegou.
Em
metáfora, hoje, o cenário do comércio de rua apresentasse-nos como
uma barragem vazia. O que aparece aos nossos olhos são esqueletos,
os restos de uma civilização desaparecida.
Que
factos e medidas contribuíram para esta desolação? O que é
preciso fazer para reerguer o comércio tradicional? Podem ser as
perguntas que mais nos acorrem no imediato.
Comecemos
pela primeira interrogação -a resposta à segunda, por se tornar
demasiado longo, será feita noutro texto que não este. Falando
especificamente de Coimbra, quando nasceram na cidade as duas
primeiras grandes superfícies, o Continente e a seguir a Makro, em
1993 -era então Manuel Machado, o actual timoneiro dos destinos da cidade, o presidente da Câmara Municipal de Coimbra. O comércio estava muito concentrado na mesma zona, no coração
da urbe, e com alguns comerciantes a deterem várias lojas do mesmo
artigo e num raio de uma centena de metros. O bairro baixo e também
o bairro alto, a Alta, como eram denominadas estas áreas em meados
do século XIX, tinham muitos residentes, muitos consultórios
médicos e muitas lojas comerciais a servirem de animadores sociais e
a contribuírem para a segurança de todo o espaço envolvente.
Com
a procura em alta, apesar da oferta ainda estar aquém e muito longe
do excesso, o futuro já preocupava os profissionais da venda. E
a provar isso é que no primeiro dia da abertura do Continente foi
realizada uma grande manifestação de comerciantes da Baixa junto à
grande área comercial, no Vale das Flores. Havia ainda outra
ameaça: constava-se que os trespasses, a transmissão onerada entre
o empresário que detinha o negócio por vínculo de arrendamento e o
novo adquirente, iam acabar. O trespasse do ponto de venda, para o
instalado, funcionava como o pé-de-meia, a sua reforma na velhice
-já que o Estado não garantia (e continua hoje na mesma) medidas de
sobrevivência justas em caso de insolvência ou aposentação.
Salienta-se que este negócio jurídico era feito entre o inquilino e
candidato a comerciante. Ou seja, numa iniquidade notória, o
proprietário do prédio era arredado deste enriquecimento (com
alguma causa) apenas para uma das partes. Chama-se a atenção que a responsabilidade e a obrigação de fazer obras no edificado
continuava a pender sobre os ombros do proprietário -este facto
anómalo, injusto, juntamente com o congelamento de rendas antigas
favoreceu fortemente a degradação dos prédios nos centros
históricos do país.
Nesta
altura, na Baixa, qualquer entrada de porta para vender fechos e
cintos poderia facilmente custar 25 mil euros -cinco mil contos à
época.
Estava
em marcha a purga, o princípio do extermínio, a caça ao “Portugal
tradicional dos pequenitos”. Todos aqueles que ganhavam a sua
vida, grão-a-grão, num pequeno espaço a trabalhar no comércio, na
pequena indústria, ou pequenos serviços, tinham a sina marcada. O
seu fim estava anunciado.
O PROCOM
(OU A ARMADILHA INSTITUCIONAL)
Para
colmatar e abafar os protestos dos comerciantes sobre licenciamento
das grandes superfícies que começavam a emergir no país, no
reinado de António Guterres, em 1996, veio
o primeiro PROCOM, Programa de ajuda e modernização do comércio
tradicional. Seguir-se-iam outros com o mesmo formato nos anos
seguintes, como o URBCOM, por exemplo. Isto é, o governo de
Guterres, tapando o sol com a peneira, tirava pelas traseiras e pela
frente concedia subsídios a fundo perdido. De sublinhar que, na
Baixa, muitos dos que aderiram a estes programas de revitalização
caíram na insolvência.
Em
2006, na regência do governo de José Sócrates, foi publicado o
Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU). Este é
mesmo o ano da revolução comercial, a entrada para o túnel do
desaparecimento e empobrecimento de uma actividade outrora lucrativa
e que muito contribuiu para o desenvolvimento das cidades, vilas e
aldeias. O problema é que o NRAU foi feito em cima do
joelho por políticos que apenas estavam interessados nos votos e
pouco no futuro de Portugal. Sem acautelar interesses das partes em
conflito, e sobretudo o futuro dos grandes centros habitacionais,
nomeadamente a continuação de ramos de comércio antigos, foi-se dos oito para o oitenta. Num ápice, os comerciantes inquilinos, com
reformas de miséria e sem direito a subsídio de desemprego, vendo
ser aumentadas as suas rendas astronomicamente, viram-se sem chão,
num estrado de miséria que se avizinhava. Sendo justo, não se pode
condenar de todo os donos dos locados pelos seus exagerados aumentos já que durante décadas foram espoliados do que era seu.
Ao
mesmo tempo que as despesas de funcionamento disparavam, desde luz,
água e comunicações -incluindo os impostos e taxas-, aumentava
também a concorrência desenfreada pela abertura de novas grandes
superfícies e novos pontos de venda particulares em vilas -que, pela
saída forçada de outras profissões em desaparecimento, vieram
desembocar no comércio. Sem experiência, olharam sempre o comércio
como a galinha dos ovos de ouro. Inversamente proporcional, os
rendimentos do trabalho e das famílias ia baixando por força da
tributação do fisco e, pela força da concorrência desenfreada, as
margens de lucro na comercialização caía a pique.
Os shopping's, a aumentarem o seu número desmesuradamente nas vilas e cidades, estranhamente foram olhados por muitos comerciantes experimentados e estabelecidos há décadas como o novo eldorado. Apostando fortemente nestes mercados emergentes, a pagarem rendas altíssimas, viriam a perder tudo, incluindo a casa-mãe nos centros históricos -na Baixa houve vários exemplos. Com artigos importados ao quilo em contentores da China e Índia, por liberalização dos têxteis e outros, estes novos aglomerados faziam baixar os preços assustadoramente e, com este procedimento, foram empurrando o velho comércio para o charco. A lei dos saldos é revista e começa a abrir-se a porta para as promoções durante todo o ano e para a viciação do consumidor só comprar artigos com grandes descontos.
Os shopping's, a aumentarem o seu número desmesuradamente nas vilas e cidades, estranhamente foram olhados por muitos comerciantes experimentados e estabelecidos há décadas como o novo eldorado. Apostando fortemente nestes mercados emergentes, a pagarem rendas altíssimas, viriam a perder tudo, incluindo a casa-mãe nos centros históricos -na Baixa houve vários exemplos. Com artigos importados ao quilo em contentores da China e Índia, por liberalização dos têxteis e outros, estes novos aglomerados faziam baixar os preços assustadoramente e, com este procedimento, foram empurrando o velho comércio para o charco. A lei dos saldos é revista e começa a abrir-se a porta para as promoções durante todo o ano e para a viciação do consumidor só comprar artigos com grandes descontos.
Sem
uma necessária regulamentação, estavam escancaradas as portas para
a lei da selva. O mais fraco terá o reino dos céus, mas passará
muito mal para lá chegar. Só o mais forte sobreviverá na felicidade divina a tempo inteiro.
Paulatinamente as lojas mais antigas que pagavam renda, com muitos
empregados, abrem falência umas a seguir a outras. O comerciante que
é dono do espaço, vendo que o precipício estava à frente dos seus olhos,
abandona o balcão e, arrendado a sua loja por verba, nalguns casos,
impraticável, passa a viver da renda abastadamente. De vítima, por força do
NRAU, o proprietário, ressabiado, farto de ser maltratado em dezenas de anos a
fio, passa a verdugo.
E VÊM AS
CRISES DE 2008 E 2011
Em
2008, já com a nossa economia em queda, com a dívida pública na
ordem dos 120 por cento do PIB, Produto Interno Bruto -em finais de 1990 estava à volta de
96 por cento-, por um lado, com o governo liderado por José Sócrates
a, recorrendo à doutrina económica de Keynes, investir em
estruturas públicas para criar emprego e com isso a sobrecarregar
ainda mais o endividamento estatal, por outro, com o consumo interno
a ser suportado por créditos bancários criados para o efeito,
rebenta a crise do Lehman Brothers, com sede nos Estados Unidos, mas
com repercussão em filiais de todo o mundo.
E,
tal como outros países europeus, pela repercussão, Portugal abana e
quase afunda. Em 6 de Abril de 2011, José Sócrates anunciava um
pedido de ajuda externa à Troika, FMI, Comissão Europeia e BCE.
Veio a seguir o governo de Passos Coelho e foram tomadas medidas
drásticas, nomeadamente em subida de impostos e cortes nos
rendimentos do trabalho. Veio a fome para um terço das famílias, e
o comércio de rua, já nessa altura muito debilitado com as novas
medidas austeritárias, levou mais uma razia no encerramento de lojas
antigas e aumento desmesurado de falências.
Em
Coimbra a ACIC, nessa altura já em coma existencial, atolada em
dívidas, que a haveria de conduzir à insolvência, ainda conseguiu
reunir seis dezenas de comerciantes para tentar sensibilizar o então
presidente da autarquia, Carlos Encarnação. Debalde! Porque o homem
era insensível e, como indicava, estava pouco preocupado com a
tragédia que se avolumava. É bom lembrar que o desaparecimento de
muitas associações empresariais neste período ou a seguir, para
além de haver em muitas uma gestão pouco clara, foi também o
resultado do empobrecimento dos seus associados, que deixaram de
poder pagar quotas, e de um processo conduzido pelos últimos
governos para enfraquecer as classes empresariais. No sindicalismo
assistiu-se ao mesmo fenómeno. Valeu os poderes agregador e
económico do PCP para financiar a CGTP-IN- e de certo modo o mesmo
aconteceu com a UGT, com o PS em rectaguarda.
(Artigo
em continuação)
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