segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

EDITORIAL: O COMÉRCIO DE RUA EM GUERRA (1)

(Foto de Márcio Ramos)




As recentes notícias sobre o empobrecimento do comércio na Baixa leva-nos a reflectir sobre o que concorreu fortemente para chegar ao que se chegou.
Em metáfora, hoje, o cenário do comércio de rua apresentasse-nos como uma barragem vazia. O que aparece aos nossos olhos são esqueletos, os restos de uma civilização desaparecida.
Que factos e medidas contribuíram para esta desolação? O que é preciso fazer para reerguer o comércio tradicional? Podem ser as perguntas que mais nos acorrem no imediato.
Comecemos pela primeira interrogação -a resposta à segunda, por se tornar demasiado longo, será feita noutro texto que não este. Falando especificamente de Coimbra, quando nasceram na cidade as duas primeiras grandes superfícies, o Continente e a seguir a Makro, em 1993 -era então Manuel Machado, o actual timoneiro dos destinos da cidade, o presidente da Câmara Municipal de Coimbra. O comércio estava muito concentrado na mesma zona, no coração da urbe, e com alguns comerciantes a deterem várias lojas do mesmo artigo e num raio de uma centena de metros. O bairro baixo e também o bairro alto, a Alta, como eram denominadas estas áreas em meados do século XIX, tinham muitos residentes, muitos consultórios médicos e muitas lojas comerciais a servirem de animadores sociais e a contribuírem para a segurança de todo o espaço envolvente.
Com a procura em alta, apesar da oferta ainda estar aquém e muito longe do excesso, o futuro já preocupava os profissionais da venda. E a provar isso é que no primeiro dia da abertura do Continente foi realizada uma grande manifestação de comerciantes da Baixa junto à grande área comercial, no Vale das Flores. Havia ainda outra ameaça: constava-se que os trespasses, a transmissão onerada entre o empresário que detinha o negócio por vínculo de arrendamento e o novo adquirente, iam acabar. O trespasse do ponto de venda, para o instalado, funcionava como o pé-de-meia, a sua reforma na velhice -já que o Estado não garantia (e continua hoje na mesma) medidas de sobrevivência justas em caso de insolvência ou aposentação. Salienta-se que este negócio jurídico era feito entre o inquilino e candidato a comerciante. Ou seja, numa iniquidade notória, o proprietário do prédio era arredado deste enriquecimento (com alguma causa) apenas para uma das partes. Chama-se a atenção que a responsabilidade e a obrigação de fazer obras no edificado continuava a pender sobre os ombros do proprietário -este facto anómalo, injusto, juntamente com o congelamento de rendas antigas favoreceu fortemente a degradação dos prédios nos centros históricos do país.
Nesta altura, na Baixa, qualquer entrada de porta para vender fechos e cintos poderia facilmente custar 25 mil euros -cinco mil contos à época.
Estava em marcha a purga, o princípio do extermínio, a caça ao “Portugal tradicional dos pequenitos”. Todos aqueles que ganhavam a sua vida, grão-a-grão, num pequeno espaço a trabalhar no comércio, na pequena indústria, ou pequenos serviços, tinham a sina marcada. O seu fim estava anunciado.

O PROCOM (OU A ARMADILHA INSTITUCIONAL)

Para colmatar e abafar os protestos dos comerciantes sobre licenciamento das grandes superfícies que começavam a emergir no país, no reinado de António Guterres, em 1996, veio o primeiro PROCOM, Programa de ajuda e modernização do comércio tradicional. Seguir-se-iam outros com o mesmo formato nos anos seguintes, como o URBCOM, por exemplo. Isto é, o governo de Guterres, tapando o sol com a peneira, tirava pelas traseiras e pela frente concedia subsídios a fundo perdido. De sublinhar que, na Baixa, muitos dos que aderiram a estes programas de revitalização caíram na insolvência.
Em 2006, na regência do governo de José Sócrates, foi publicado o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU). Este é mesmo o ano da revolução comercial, a entrada para o túnel do desaparecimento e empobrecimento de uma actividade outrora lucrativa e que muito contribuiu para o desenvolvimento das cidades, vilas e aldeias. O problema é que o NRAU foi feito em cima do joelho por políticos que apenas estavam interessados nos votos e pouco no futuro de Portugal. Sem acautelar interesses das partes em conflito, e sobretudo o futuro dos grandes centros habitacionais, nomeadamente a continuação de ramos de comércio antigos, foi-se dos oito para o oitenta. Num ápice, os comerciantes inquilinos, com reformas de miséria e sem direito a subsídio de desemprego, vendo ser aumentadas as suas rendas astronomicamente, viram-se sem chão, num estrado de miséria que se avizinhava. Sendo justo, não se pode condenar de todo os donos dos locados pelos seus exagerados aumentos já que durante décadas foram espoliados do que era seu.
Ao mesmo tempo que as despesas de funcionamento disparavam, desde luz, água e comunicações -incluindo os impostos e taxas-, aumentava também a concorrência desenfreada pela abertura de novas grandes superfícies e novos pontos de venda particulares em vilas -que, pela saída forçada de outras profissões em desaparecimento, vieram desembocar no comércio. Sem experiência, olharam sempre o comércio como a galinha dos ovos de ouro. Inversamente proporcional, os rendimentos do trabalho e das famílias ia baixando por força da tributação do fisco e, pela força da concorrência desenfreada, as margens de lucro na comercialização caía a pique. 
Os shopping's,  a aumentarem o seu número desmesuradamente nas vilas e cidades, estranhamente foram olhados por muitos comerciantes experimentados e estabelecidos há décadas como o novo eldorado. Apostando fortemente nestes mercados emergentes, a pagarem rendas altíssimas, viriam a perder tudo, incluindo a casa-mãe nos centros históricos -na Baixa houve vários exemplos. Com artigos importados ao quilo em contentores da China e Índia, por liberalização dos têxteis e outros, estes novos aglomerados faziam baixar os preços assustadoramente e, com este procedimento, foram empurrando o velho comércio para o charco. A lei dos saldos é revista e começa a abrir-se a porta para as promoções durante todo o ano e para a viciação do consumidor só comprar artigos com grandes descontos.
Sem uma necessária regulamentação, estavam escancaradas as portas para a lei da selva. O mais fraco terá o reino dos céus, mas passará muito mal para lá chegar. Só o mais forte sobreviverá na felicidade divina a tempo inteiro. Paulatinamente as lojas mais antigas que pagavam renda, com muitos empregados, abrem falência umas a seguir a outras. O comerciante que é dono do espaço, vendo que o precipício estava à frente dos seus olhos, abandona o balcão e, arrendado a sua loja por verba, nalguns casos, impraticável, passa a viver da renda abastadamente. De vítima, por força do NRAU, o proprietário, ressabiado, farto de ser maltratado em dezenas de anos a fio, passa a verdugo.

E VÊM AS CRISES DE 2008 E 2011

Em 2008, já com a nossa economia em queda, com a dívida pública na ordem dos 120 por cento do PIB, Produto Interno Bruto -em finais de 1990 estava à volta de 96 por cento-, por um lado, com o governo liderado por José Sócrates a, recorrendo à doutrina económica de Keynes, investir em estruturas públicas para criar emprego e com isso a sobrecarregar ainda mais o endividamento estatal, por outro, com o consumo interno a ser suportado por créditos bancários criados para o efeito, rebenta a crise do Lehman Brothers, com sede nos Estados Unidos, mas com repercussão em filiais de todo o mundo.
E, tal como outros países europeus, pela repercussão, Portugal abana e quase afunda. Em 6 de Abril de 2011, José Sócrates anunciava um pedido de ajuda externa à Troika, FMI, Comissão Europeia e BCE. Veio a seguir o governo de Passos Coelho e foram tomadas medidas drásticas, nomeadamente em subida de impostos e cortes nos rendimentos do trabalho. Veio a fome para um terço das famílias, e o comércio de rua, já nessa altura muito debilitado com as novas medidas austeritárias, levou mais uma razia no encerramento de lojas antigas e aumento desmesurado de falências.
Em Coimbra a ACIC, nessa altura já em coma existencial, atolada em dívidas, que a haveria de conduzir à insolvência, ainda conseguiu reunir seis dezenas de comerciantes para tentar sensibilizar o então presidente da autarquia, Carlos Encarnação. Debalde! Porque o homem era insensível e, como indicava, estava pouco preocupado com a tragédia que se avolumava. É bom lembrar que o desaparecimento de muitas associações empresariais neste período ou a seguir, para além de haver em muitas uma gestão pouco clara, foi também o resultado do empobrecimento dos seus associados, que deixaram de poder pagar quotas, e de um processo conduzido pelos últimos governos para enfraquecer as classes empresariais. No sindicalismo assistiu-se ao mesmo fenómeno. Valeu os poderes agregador e económico do PCP para financiar a CGTP-IN- e de certo modo o mesmo aconteceu com a UGT, com o PS em rectaguarda.

(Artigo em continuação)

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