Eu gosto
muito da minha cidade. É uma urbe média, encastrada entre o Porto e
Lisboa, com cerca de 100 mil habitantes. Como todas as cidades de
dimensão média ou pequena, na sua idiossincrasia, é peculiar.
Quase diria que o que se passa na lusa Atenas é transversal às suas
congéneres.
Até ao
virar do milénio, pela atracção humana que desencadeava sobretudo
no consumo interno, era o centro do centro de Portugal. Nesta altura,
pelo troar dos passantes em movimento contínuo, a Baixa, nas suas
ruas, estreitas ou largas, detinha um barulho muito próprio que lhe
conferia uma segunda identidade. Nas vielas mais manhosas onde um
odor putrificado a pobreza invadia tudo em redor havia roupa
estendida nas janelas a mostrar que mesmo nos antípodas mais
esclerosados há sempre vida. Entre os moradores das largas avenidas
e ruelas estreitas existia um respeito mútuo não escrito mas
declarado num convívio tácito. A Baixa, entre doutores, estudantes
e trabalhadores, fervilhava de gente de todos os extratos sociais.
Nesta época, qualquer entrada de porta para instalar um pequeno
negócio, pela transmissão, valia milhares de contos. O imobiliário,
com um preço fora do bolso comum, era sagrado e quase só alcançável
aos mais ricos. Pelas dificuldades monetárias de acesso, ser
comerciante não era para qualquer um. Para o ser, maioritariamente,
tinha de passar muitos anos a atender público atrás de um balcão
como marçano e, calcorreando noites e noites em claro, estar
disposto a abdicar do amor da sua família e a dedicar-se por
inteiro ao seu cliente.
A partir de
2000, com promessas de uma nova felicidade inscrita numa nova moeda,
tudo o que eram coisas simples e vulgares deixaram de ser atractivas
e foram perdendo interesse. Era o tempo da substituição do pequeno
pelo grande. Era a época das grandes obras faraónicas.
No Comércio a alegada (r)evolução estava em marcha. Ao mesmo tempo
que com a mão direita se assinava o licenciamento de muitas grandes
superfícies comerciais, com a esquerda, para mostrar equidade e que
os deuses, materializados no governo central e local não dormiam,
distribuía-se dinheiro a rodos pelos pequenos comerciantes através
do PROCOM, URBECOM E MODCOM, programas de ajuda ao comércio com o
beneplácito da União Europeia. Com esta medida de política
económica, os comerciantes endividaram-se e, para além das muitas
remodelações, abriram ainda mais lojas no centro histórico -se não
todos, a maioria destes mercadores que contratualizaram estes
projectos faliram ou encerraram portas ao longo destes cerca de vinte
anos. Foi um definhamento contínuo.
Com muitos
e maiores centros de venda, o consumidor da cidade, outrora coesa e equilibrada na
oferta e na procura, foi-se espartilhando e dividiu-se pelas várias
ilhas comerciais do burgo. Este consumidor, sem ética, egoísta e
abutre -que somos todos um pouco-, nada se importa com o que possa acontecer
com o futuro da cidade. Por diversão, por comodidade, dará tudo na
forma de voto no candidato que esteja disposto a mais proporcionar.
Para comprar mais barato, passará por cima de amizades ou laços
familiares.
Como um rio
a quem alteraram o curso de água, progressivamente a Baixa foi
perdendo tudo -e nem a recente classificação de Património Mundial
alterou a sua degradação contínua. Desde a beleza natural que o
tempo, pelo desgaste natural, pelo abandono, na dinâmica e mudança dos costumes, faz apagar, desde o
esvaziamento contínuo de habitantes fixados, que vão morrendo e não são
substituídos por mais novos, até políticas de urbanismo
catastróficas onde impera o gastar de milhões de euros em obras que
para nada servem a não ser encherem o olho, a zona comercial
continua a cair aos olhos de todos. Aos poucos, como corpo que se
habitua a migalhas, o pequeno/pequeníssimo comerciante foi-se
adaptando a este conta-gotas de apenas se alimentar para sobreviver.
Por outro lado, o medo de amanhã acordar sem tecto foi fazendo dele
um animal acossado e amestrado que, para além de não reclamar do
castigo imposto, elogia e ama o seu verdugo. E dá origem a novos falcões.
Hoje, com
muitos estabelecimentos encerrados e casas ocupadas por velhinhos ou
vazias, um silêncio envolvente tomou conta das ruas estreitas e só
é quebrado pelas muitas festas barulhentas que, em muitas iniciativas e cobertas com muitos milhares de euros, são realizadas
para desviar as atenções. E a verdade é que os comerciantes batem
palmas. Sem esta ovação geral de pantomina a mentira não avança.
A Baixa está mesmo a mexer, dizem com ênfase. Ninguém se
lembra -talvez por que não lesse- que a mesma técnica de lentamente
morrer alegremente foi usada pelos regimes autoritários e fascistas
nas décadas de 1930/40 e, passando o exagero comparativo, nomeadamente pelo terceiro Reich, na
Alemanha. Seguindo a mesma ilusão de cartilha universal, todos
caminham em direcção ao abismo, mas muito felizes e contentes.
Embora em
circunstâncias diferentes, como a história se repete, aí estão
novos apoios ao empreendedorismo muito parecidos com os distribuídos
em finais da década de 1990, PROCOM e outros. A mensagem do embrulho
é sempre a mesma: ajudar os pequenos investidores, desenvolver
a cidade e criar emprego. Ninguém fala que, o que se
pretende verdadeiramente é só retirar a inscrição de
desempregados do IEFP, Instituto de Emprego e Formação
Profissional. Ninguém está preocupado com a vida económica e
financeira dos pequenos e pequeníssimos operadores. Nenhum destes
vendilhões do templo quer saber se os que aceitarem estes novos
pacotes de roupagem velha vão durar ainda menos e, com o seu
desaparecimento, vão tornar a Baixa, e a cidade, ainda mais pobre do
que já está. Subsidiar o empreendedorismo está (outra vez) na
moda. É uma nova vaga, uma nova onda, que, pelas suas boas e
generosas intenções, arrasta tudo e todos com objectivos pouco
claros. O que se pretende está lá, é preciso é pensar.
Na última
última segunda-feira, 15 de Maio, com muita pompa e maior
circunstância, em sessão solene camarária, foi apresentado no
Salão Nobre Municipal o Coimbra Invest -Regulamento
Municipal de Apoio a iniciativas Económicas de Interesse Municipal.
Trata-se de um Sistema de Incentivos ao Empreendedorismo e ao Emprego
(SI2E) que, articulado através da CIM Região de Coimbra e no âmbito
do Quadro Comunitário Portugal 2020, disponibiliza cerca de oito
milhões de euros pelas pequenas e micro-empresas, para obras e
equipamentos, desde que que os contemplados qualifiquem ou empreguem
um ou mais inscritos no centro de emprego. O SI2E apoia investimentos
até 100 mil euros desde que que se verifique a contratação de
recursos humanos.
A animada marcha continua. Vale a pena pensar nisto? Hum... se calhar não!
A animada marcha continua. Vale a pena pensar nisto? Hum... se calhar não!
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