segunda-feira, 8 de maio de 2017

EDITORIAL: ESTADO LAICO (OU LOUCO)?





Na última quinta-feira, nos campos do Bolão, com muita pompa e circunstância, foi inaugurado o Centro Municipal de Apoio aos Caminhantes. Segundo o Diário de Coimbra (DC), “O espaço dispõe de vários lava-pés, lavatórios, casas de banho e arrumos e vai, até 11 de Maio, ter a presença diária de voluntários que assegurarão a quem passar, além do apoio ao nível de saúde, água e comida, tudo gratuito. Findo este período de maior afluência provocado pelas celebrações em Fátima do 13 de Maio e o centenário das Aparições com a presença do Papa, o centro vai manter-se aberto no resto do ano, até porque se trata de um espaço que pretende servir tanto os peregrinos de Fátima como os caminhantes de Santigo. “Que os peregrinos levem daqui uma imagem marcante, que sejam acolhidos com conforto, desejou ontem Manuel Machado, presidente da Câmara Municipal de Coimbra (...)”, noticia o DC de hoje.
Citando o Notícias de Coimbra, jornal online, “Mas o cuidado da CMC na realização deste espaço não se limitou ao interior do imóvel. Na sua envolvente, foi instalada uma pérgula, uma fonte, bancos, árvores e arbustos, que por certo proporcionarão aos caminhantes agradáveis momentos de repouso. Dada a proximidade deste espaço com a ciclovia, colocou-se ainda uma estrutura para estacionamento de bicicletas. (…) O edifício que agora acolhe o Centro Municipal de Apoio aos Caminhantes é um protótipo “Quickbuild”, desenvolvido pelo ITeCons, em colaboração com três empresas, e que teve apoio de fundos comunitários do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN)”. transcrição de parte da notícia do site Notícias de Coimbra.
Nem um nem outro meio de informação noticia quanto vai custar anualmente aos cofres do município esta iniciativa.

Em virtude da vinda do Papa Francisco a Fátima, o Governo (de esquerda, socialista e laico) decretou tolerância de ponto para os funcionários públicos no próximo dia 12, véspera da visita do sumo pontífice.

Assumindo-se devoto de Fátima, Marcelo Rebelo de Sousa disse que “enquanto Presidente da República Portuguesa a dimensão é complementar, a ideia de Fátima como forma de projeção de Portugal no mundo”.
Sou católico, sou cristão, só depois é que digo que sou português”.
Claro que tenho necessidade de rezar para decidir sobre grandes opções.”
Sou Mariano. Nossa Senhora é mediadora entre nós, os deste tempo e daquele, e Deus”.
Eu, por acaso, acredito em Fátima. Não há incompatibilidade entre ser Presidente da República e ser cristão.”, apanhados das declarações do actual Chefe de Estado no programa da Rádio Renascença “Conversas com Deus” (antes de ser eleito).


A RELIGIÃO E A FILOSOFIA

A religião é o ópio do povo”, frase atribuída a Karl Marx mas, segundo a história, o seu criador foi Hegel, na sua Crítica da Filosofia do Direito, em 1844. Marx contextualizou assim:

"É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de facto a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu “point d'honneur” espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.
A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.
A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola.
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em tomo de si mesmo.
Consequentemente, a tarefa da história, depois que o outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.", retirado da Wikipédia.


POR CÁ, UM APOIO DESINTERESSADO QUE JÁ VEM DE LONGE

A Carta Constitucional da “Monarchia Portugueza”, de 1826 e que vigorou até à Implantação da República, em 1910, no seu artigo 6.º prescrevia o seguinte: “A religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Reino. Todas as outras Religiões serão permitidas aos estrangeiros com o seu culto domestico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de templo.

E VEIO A PRIMEIRA REPÚBLICA

A instauração da República em 5 de Outubro de 1910 reacendeu a questão religiosa aberta no século XVIII pelo Marquês de Pombal e retomada ao longo de Oitocentos pelos liberais que levaram a efeito uma política secularizadora concretizada numa diminuição da influência social da Igreja católica. A partir de 1880 assistiu-se, no País, a uma intensa propaganda republicana, socialista e anarquista que visava a laicidade do Estado, da cultura e das consciências. Desta forma, se o movimento republicano empolava a questão do Regime no sentido da substituição da Monarquia pela República não deixava também de ter como objectivo a realização de uma transformação cultural através da substituição da mundividência católica pela paradigma positivista e cientista. A elite livre-pensadora desenvolveu toda uma actividade de militância laica e, através dos comícios políticos, das conferências e de outras actividades culturais popularizou a cultura republicana especialmente em Lisboa. Com a abertura do ciclo republicano assistiu-se à publicação de um vasto conjunto de leis em matéria religiosa que eram a concretização das ideias republicanas sustentadas nos últimos três decénios da Monarquia Constitucional. Como vértice desta actividade legisladora do Governo Provisório surge a lei da Separação do Estado das Igrejas de Afonso Costa que encontrou fortes resistências no episcopado ultramontano, em Roma e na maioria do clero. Por outro lado, não podemos esquecer a lei do registo civil obrigatório que laicizava os principais actos da vida (o nascimento, o casamento e a morte). Estas transformações, que levaram a uma refundação do Estado (passou a ser laico), traduzia o projecto elitista dos livres-pensadores que não deixava de colidir com o sentimento religioso das comunidades muito marcadas pelo ruralismo e analfabetismo e bem enquadradas por um clero numeroso e reaccionário. Daí o surgimento de uma guerra religiosa em todo o território nacional, mas especialmente no norte e no centro, que se manteve acesa até ao Sidonismo (1918).
(…) Logo após a implantação da República iniciou-se a política laicizadora do Governo Provisório. A 8 de Outubro foi publicado o decreto que punha em vigor as leis pombalinas contra os Jesuítas e a lei de Joaquim António de Aguiar que extinguira as ordens religiosas em Portugal, a 12 de Outubro foram laicizados os feriados religiosos, a 18 do mesmo mês seria abolido o juramento religioso, a 21 o bispo de Beja foi suspenso das suas funções depois de ter fugido para Espanha com receio do anticlericalismo popular assanhado pelos republicanos desta cidade, a 22 foi publicado o decreto que suprimiu o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias e nas escolas normais, a 23 foi extinta, de facto, a Faculdade de Teologia e abolido o juramento dos lentes, alunos e restante pessoal da Universidade de Coimbra, assim como o juramento da Imaculada Conceição, a 26 todos os dias santificados pela Igreja, com excepção do domingo foram considerados úteis e de trabalho, a 28 os governadores civis eram autorizados a substituir as mesas, ou corpos administrativos das irmandades e confrarias por novas comissões da confiança dos governantes, a 3 de Novembro surgiu a lei do divórcio desde há muito reclamada pelos republicanos (e republicanas) e a 25 de Dezembro foram publicadas as leis de família, que definiam o casamento como um contrato celebrado por duas pessoas de sexo diferente.5 Deu-se, assim uma ruptura política, pois o Estado dispensava qualquer legitimação de índole religiosa.
Neste quadro reformador seria publicada, em 20 de Abril de 1911, a lei de Separação do Estado das Igrejas, texto radical de Afonso Costa, ministro da Justiça e Cultos do Governo Provisório. Este diploma punha fim ao catolicismo como religião de Estado, afirmava a plena liberdade de consciência para todos os cidadãos portugueses e para os estrangeiros residentes em Portugal, autorizava as confissões minoritárias, deixava de subsidiar o catolicismo, abolia as côngruas paroquiais, autorizava a prática religiosa nos edifícios com aspecto exterior de templo, previa uma punição para os que injuriassem ou ofendessem os padres, mantinha o beneplácito e remetia a religião para a esfera da vida privada.
(…) A Constituição de 1911 veio legitimar a Separação rompendo com os textos constitucionais anteriores. Assim, punha-se termo às "ligações perigosas" entre a religião e a política. Limitado à vida privada, o catolicismo perdia a sua influência política, cultural e simbólica. Desta forma, a Lei da Separação originou uma verdadeira guerra religiosa, pelo menos até 1918”. Extractos retirados da revista Seara Nova.

E SURGE A SEGUNDA REPÚBLICA

Com o golpe militar de 1926, que deu origem à Ditadura Militar e mais tarde, em 1933, ao Estado Novo seria reposto o catolicismo como a religião do regime.
Fernando Rosas, historiador, em Agosto de 1982 aquando da visita do Papa João Paulo a Portugal, numa crónica com o título “A Igreja em Portugal nos anos 40” na revista História escrevia o seguinte (era interessante ouvir de novo, hoje, à luz do novo cenário político, este historiador):

A visita do Papa João Paulo II a Portugal proporcionou o desenvolvimento de uma larga campanha dos meios governamentais, eclesiásticos e mesmo de outros que desses se não reivindicam tendente, no lastro das mobilizações pias, a trazer à ordem do dia os velhos princípios da “nação cristã” e do carácter pretensamente nacional da Igreja Católica portuguesa, uma vez que essa seria “a religião professada pela maioria dos portugueses.
(…) Sintomático é que essa ideia, constitucionalmente consagrada em 1933, seja agora reactivada (e alguma vez foi desactivada?) com a colaboração dos diversos sectores políticos-parlamentares a propósito da vinda do Papa; que à sombra dela se preparem concessões privilegiadas à Igreja Católica e que, por exemplo, a doutrina e acção dos seus órgãos tem sido publicamente invocados como inspiradores da intervenção presidencial e de outros órgãos do Estado.
(…) É aliás extremamente curioso constatar como o acentuar do recurso ao chamado milagre de Fátima e a sua creditação pelas próprias autoridades religiosas acompanha a par e passo a evolução da situação política portuguesa desde o 28 de Maio, passando por todo o período de consolidação do Estado Novo.
(…) Nesse mesmo mês e ano (1930), o Papa Pio XI, tão próximo da Alemanha hitleriana e da Itália de Mussolini quanto protector das “visões” de Fátima, concede indulgências aos peregrinos.
(…) Cerejeira, a troco de garantias firmes de intervenção da igreja na “reforma” do ensino então projectada, é entronizado cardeal-patriarca em 1929. Desde aí, a Igreja Católica assume-se pública e activamente como a principal força da legitimação ideológica do regime, como “esteio moral da Nação e do Império.
(…) A classe dominante, explorando (e mantendo) a fundo o atraso e o obscurantismo, justificava com o catolicismo esta “nova ordem”. Considerava o Estado Novo, como no passado o Portugal dos “heróis do mar”, o depositário da mesma missão de “defender a dilater a fé”: ontem contra a mourama, hoje contra os operários e os comunistas.
(…) Tal como em Portugal a Igreja Católica se constituíra no instrumento ideológico fundamental de defesa da ordem interna, também em África, e contrariando em proveito do Estado português a concorrência de que a Propaganda Fide era instrumento a soldo de outros apetites, a Igreja Católica portuguesa seria -e duradouramente- um instrumento decisivo da preservação do domínio colonial. Uma Igreja de Estado e uma religião de Estado que irão ser usadas pelo regime como arma essencial nas grandes lutas políticas de massa que vão pontuar, durante os anos 40, a primeira grande crise do fascismo.
(…) E a cruz parte à frente da espada.
(…) Em 1942 Fátima volta à ordem do dia. Na altura em que o exército nazi está às portas de Moscovo e a vitória do Reich na guerra parece iminente nas diversas frentes, o cardeal Shusten, arcebispo de Milão na Itália mussoliniana, “revela” em primeira mão as duas primeiras partes do “segredo de Fátima”, em que muito oportunamente se anuncia que “a Rússia se converterá e terão a paz; se não, espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja... O Santo Padre consagrar-me-á à Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz”. (…) E é precisamente a 31 de Outubro, “a pedido da vidente Lúcia”, que Pio XII dirige uma rádio-mensagem em língua portuguesa desde o Vaticano em que “consagra o mundo ao Coração Imaculado de Maria...”
(…) Aliás, vivia-se a fobia de um “milagre” que desse público testemunho da protecção divina do salazarismo e fosse coadjuvante do outro “milagre” que seria a salvação do regime. (…) É então que nos jornais e na oratória de Cerejeira surge o “milagre das pombas” (…) na mensagem de Natal de 1946: “Caso estranho para o nosso olhar míope de criaturas carnais foi o das pombinhas que recentemente estabeleceram morada aos pés quase escondidos, sob a túnica da branca imagem de Nossa Senhora de Fátima, entre flores."
(…) O grande actor da nova festa (imitação de rebotalho das comemorações de 1940, expressão serôdia de um regime decrépito e em crise, em que o folclore, a marchinha, o manjerico e o populismo mais reaccionário cedem o passo à “imponência” do “ano áureo”) é de novo a Igreja Católica nesta nova versão da luta contra os infiéis.
(…) E novamente com Fátima: a 13 de Maio de 1951 o Ministério dos Negócios Estrangeiros português (!) anuncia que o Papa Pio XII se dignara permitir que as solenidades de encerramento do Ano Santo para o estrangeiro se fizesse, a 13 de Outubro, em Fátima. E manda para cá para o efeito um “cardeal legado”, pomposa e solenemente recebido pelos mais altos dignatários do regime -o cardeal Tedeschini- que na homilia em Fátima revela que Pio XII vira nos jardins do Vaticano, em 30 e 31 de Outubro e em 1 de Novembro de 1950, o mesmo “milagre do sol” que se “dera” em Fátima em 1917! Era de facto o milagre que faltava para saldar a reposição da ordem”...

E DESPONTA A TERCEIRA REPÚBLICA

A primeira versão da Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 era bem clara na relação entre liberdade de consciência, religião e culto. Na altura tinha 5 artigos, posteriormente foi revista e, para além de alterações em alguns deles, foi acrescentado mais um.
Na CRP que se encontra em vigor, com última revisão em 2005, o texto constitucional que refere a laicidade do Estado português perante a separação e liberdade de culto, tal como a primeira versão, é bem explícita. Atentemos no artigo 41º, “Liberdade de consciência, de religião e de culto”, no ponto 4, que prescreve o seguinte: “ As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.”
Como se disse em cima, citando Fernando Rosas, do ponto de vista de enquadramento histórico, sobretudo para os mais velhos, podemos recuar até ao tempo da discriminação de outras confissões, nomeadamente a Evangélica e a Jeová, que sofreram na pele essa segregação.
Entre 1933 e 1974 foi um regabofe em torno da instrumentalização social, sobretudo na divulgação das aparições em Fátima, e no entretenimento de desviar atenções para o futebol e o fado, daí o aforismo “Fado, Futebol e Fátima”. Será que hoje será diferente? A ser, mais que certo, a discrepância reside no aumento de possibilidades de distracção social que conduzem à indiferença e alienação.
Por tudo o que se diga, o povo, enquanto massa abstracta e representativo de uma comunidade, será sempre o resultado entre duas parcelas interligadas: o que o sistema lhe dá a conhecer e o juízo critico que é feito a esse conhecimento. Isto é, se aceitamos passivamente a informação oriunda do poder e não a questionamos, pensando o assunto e decompondo as premissas, estamos a contribuir para a formatação de uma sociedade arregimentada, cada vez mais inculta, e desonerada de obrigações.
Sobretudo quando é preciso ler um testamento destes, valerá a pena pensar nisto? Se tenho noção que esta crónica é imensa, demasiadamente grande, talvez intragável, porque teimo em apresentar uma coisa assim? Tenho de confessar que, de forma egoísta, faço isto por mim. Para escrever tenho de ler, investigar e raciocinar. Se chegou até aqui, tenha paciência comigo.

Sem comentários: