quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A AMARGA DESCIDA DO PEDESTAL

 



Cruzámo-nos numa rua da cidade. De máscara descartável a proteger o nariz e a boca, olhos colados no chão, ou não me viu, ou fazendo de conta que não me conhecia, nada disse. Cada um de nós, em sentido oposto seguiu para o seu destino. Por momentos, entre o sim e o não, hesitei em cumprimentar: bom dia, Dr…

Fiquei-me pela negação da saudação. Afinal nem tenho assim tanta confiança para a insistência e poderia interpretar-me mal na minha sinceridade. Ainda ensaiei um virar à retaguarda. Algo nele me impressionou e chamou a atenção, levando-me a um segundo olhar. Talvez fosse a carga de tristeza que parecia carregar num corpo cansado e rosto enrugado, de quase septuagenário. Pelas costas, enquanto se afastava paulatinamente, apreciei os seus ombros descaídos, um casaco comprido de mais para a altura daquele corpo, aparentemente flácido pela fadiga do tempo. As calças vincadas clássicas de sarja pareciam enterrar-se pelo chão adentro. Se eu fosse psicólogo apostaria que aquele homem anda profundamente deprimido. Mas porquê? Podemos interrogar? Sim, podemos, mas eu não tenho resposta. É certo que posso especular.

Afinal, digo eu, não será fácil deixar de ser o centro de atenções de uma cidade pequena, com o telefone sempre a retinir, desde o raiar da manhã até ao cair da tarde, e se calhar também de noite, e de repente, numa reviravolta imprevisível, o silêncio, como manto que tudo cobre, envolve tudo em redor.

Os que pareciam tão amigos até aí, que zumbiam em redor como moscardo em volta de uma tigela de marmelada, de repente, como se fossem varridos por forças metafísicas, desaparecem na multidão de novos desconhecidos. De um momento para o outro, o sentimento de imprestabilidade e o desânimo dá vontade de desistir de tudo. Até aí era tudo lisonja e agradecimentos, agora parecem destilar ódio. As pessoas, num calculismo feroz, só ligam quando detetam poder de decisão.

Se é certo que o hábito não faz o monge, também é correcto afirmar que sem hábito não há monge. Um e outro, numa metamorfose perfeita, como máscara social, colam-se à pele como transplante. E quando se tem de despir a ilusória vestimenta, por acaso, sentimo-nos nus. É como se voltássemos a ter de aprender a andar.

Depois, para piorar, esta queda do Governo socialista, veio complicar tudo. No fundo da alma, lá bem no fundo, no âmago, ainda teria esperança de ser nomeado presidente para aquele tal lugar importante. Agora, com o executivo governamental em vias de ser demitido pelo Presidente da República, lá se foi a expectativa.

Vamos com calma, sim, Dr.?


Sem comentários: