sábado, 27 de março de 2021

BARRÔ: O (NOVO) “PITROLINO”



De quinze em quinze dias, impreterivelmente à quinta-feira, o som desgarrado, assim parecido como tampas de panelas e tachos, mais direccionado para o ruído do que para a melodia, invade a pacatez de modorra da aldeia de Barrô.

É uma camioneta de caixa-aberta adaptada com cobertura em lona para servir a sua extensa clientela. Dentro do espaço, tudo armazenado com rigor milimétrico, transporta-se todo o recheio de uma velha mercearia. Presumidamente, ali nada faltará aos vastos clientes que, por razões várias, por exemplo, factor idade, dificuldade de locomoção, porventura não poderão deslocar-se à superfície comercial na cidade próxima. É a velha máxima levada à prática: se não se pode manter aberto um estabelecimento na povoação, vem o estabelecimento móvel ao povoado. Onde houver necessidades haverá sempre um comerciante presente para as suprir e fazer a ponte entre o produto e o consumidor.

Certamente poucos se lembrarão do “Pitrolino”. Era um simpático vendedor que, por volta das décadas de 1920 e seguintes, com uma carroça puxada por um burro, percorria as aldeias em redor da cidade fazendo-se anunciar pelo som estridente de uma corneta. Vendia componentes de drogaria até carvão e sabão. Dos mais velhos, quem não se lembra "do sabão azul (macaco) e do amarelo (amêndoa), ambos em barras. O azul era para a roupa e o segundo era para o chão, geralmente em madeira. (…) O homem cortava as barras depois de medir as quantidades com uma fita ou um pau. Além dos sabões vendia outros detergentes e petróleo, benzovaque (para as nódoas da roupa), álcool para assar chouriços, cera ao peso em papel vegetal e caixas de fósforos muito grandes” – extracto retirado do blogue “Mercado de Bem-Fica”.

Nos anos seguintes, sobretudo a partir da década de 1950, melhorando a oferta, já com um veículo motorizado vendia de tudo, incluindo mercearia e vinhos.

Com o desenvolvimento social e a evolução do comércio estático, progressivamente, foram desaparecendo. Primeiro foram substituídos pela pequena mercearia e taberna, que se instalaram nas povoações, sobretudo, a partir de 1950 - em que com o surgimento da televisão em Portugal, com a primeira emissão em 1957, como grande fenómeno de massas, constituiu o grande empurrão. De salientar que a história ainda não foi feita sobre estes pequenos estabelecimentos. Muito para além da venda, eram centros de convívio comunitário e intergeracional.

Aos poucos o velhinho “Pitrolino” foi desaparecendo e dando lugar ao comércio fixo.

Foi então que, a partir de 1995, se assistiu a um assalto nunca visto do Fisco, com impostos sobre o pequeno e pequeníssimo comerciante estabelecido.

Progressivamente, como fuzilados por metralhadora, numa razia, foram caindo um-a-um. Em Barrô, por volta de 1990, existiam dois negócios similares, um era o café do Alberto, à entrada do lugar, e outro era a mercearia e taberna – que mais tarde evoluiu para misto, com máquina de tirar café – do “Toino da Loja”, na rua principal

Era nesta pequena catedral de confraternização, onde os jogos de cartas, de malha, ou fito, de damas e dominó imperavam, que se tecia o interstício da tranquilidade depois de uma semana intensa de trabalho. Era aqui que a paz fluía, estabelecendo-se laços de amizade, e, através do rebate de ideias, se desenrolavam os nós de mal-entendidos.

E mais: era aqui, neste local comercial, que, como cargo oficial dos CTT, era o posto de telefone público do povoado. Sempre que era preciso chamar alguém era obrigação do concessionário fazê-lo.

Para além disso, também aqui estava instalada a única caixa de recolha de correio. Com o encerramento do “Toino da Loja”, que foi o último a fechar portas há cerca de uma dezena de anos, tudo desapareceu.

Como já escrevi mais do que uma vez, os governantes nacionais, que pouco mais conhecem do que Lisboa e a sua zona metropolitana, e que, sobretudo, em tempo de eleições, andam sempre de boca-cheia a falar na desertificação do interior, deveriam ser julgados pelo extermínio deliberado destes pequenos negócios.

Até haver uma nova mudança, que um dia vai acontecer, viva o “Pitrolino” dos nossos dias.



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