Ontem
o Diário de Coimbra (DC), em título de primeira página, noticiava
que a “Videovigilância
da Baixa continua sem funcionar”
há pelo menos 8 meses. O “processo
administrativo de renovação da licença arrasta-se desde 2015.
Neste momento aguarda parecer da Comissão Nacional de Protecção de
Dados.”
Por
ser tão escandaloso, mas por já ter sido anteriormente noticiado
pelo DC, nesta altura deixa de ser notícia. Por isso mesmo vou
deixar esta informação principal para me debruçar sobre outra,
acessória e sobre o mesmo tema, que vem hoje publicada no mesmo
jornal diário: “Videovigilância
faz falta para “limpar” as Ameias”.
Vou
então transcrever partes da reportagem do DC:
“O
facto de as câmaras de videovigilância estarem desligadas na Baixa
desde, pelo menos 2016, desperta sensações diferentes. Para quem
está de passagem é quase indiferente funcionarem ou não, como no
caso de Maria Alves, da Figueira da Foz, numa visita rápida a
Coimbra. Mas quem tem de trabalhar, por exemplo, na zona do Largo das
Ameias/Rua da Sota, poderiam “fazer toda a diferença”.
Prosseguindo,
citando o DC,
“(...) das pessoas ouvidas, quase todas de responsáveis por casas
comerciais, só uma permitiu facilmente a identificação.
Precisamente a que tem dúvidas de que as câmaras estejam desligadas
desde 2016, ou mesmo desde 2015. “Uma funcionária daqui ficou com
o carro todo riscado, foi muito antes de 2015 e já nessa altura a
PSP não conseguiu resolver nada com as câmaras...”. Se
funcionassem, ponderou, podiam ajudar muito, “por exemplo quando
foi aquele caso de homicídio em Miranda” (Janeiro deste ano), em
que o autor se suicidou em Coimbra, nas Ameias, teriam “percebido
logo o que se tinha passado aqui”. (Saliento
que este declarante, apesar de ter sido anunciada a sua identidade,
não é identificado pelo jornal)
Continuando
a ler o DC,
“Pelas declarações seguintes, optámos por não identificar o
nosso interlocutor, pelo risco “real”, como diria outra pessoa,
de represálias. Naquela zona, considerando um raio de 100 metros, há
pelo menos cinco câmaras de vigilância. “O que se passa aqui é
uma vergonha” diz, referindo-se a prostituição, tráfico de
droga... “é inconcebível numa cidade turística, quem chega de
comboio (Estação de Coimbra A) depara-se logo com este cenário”.
Isto de dia, observa, porque à noite também é “uma vergonha”,
assegura, identificando o alpendre de uma instituição bancária
como local de tráfico. (…) Logo ao lado, à ombreira de uma casa
comercial, duas pessoas reforçaram a imagem negativa do local: “isto
é cacetada todos os dias, mulheres com mulheres, homens com homens”,
“a prostituição é o prato do dia”, “vem para aqui toda a
escumalha” , “claro que há tráfico e não é pouco.”
PARAR
PARA RESPIRAR
Das
declarações que se fizeram para o jornal, por parte dos interessados locais, nem uma única pessoa deu
a cara para sustentar o que disse. Mais e pior, muito pior, quando
o/a jornalista faz a seguinte ressalva: ““Pelas
declarações seguintes, optámos por não identificar o nosso
interlocutor, pelo risco “real”, como diria outra pessoa, de
represálias”,
isto é o quê? Desde quando é que um profissional de informação,
substituindo-se às autoridades policiais, faz juízo de valor e
tenta proteger a identidade de alguém quando não é solicitada pela
fonte? Qualquer profissional amador sabe que pelo menos um declarante
com rosto deve ser mostrado sempre numa peça escrita para que o
leitor a tome como verdadeira, analise, interprete e extraia sua
conclusão. Para exemplificar, Como é que eu sei que estas
declarações anónimas são mesmo verdadeiras? Por outro lado, pelo
princípio da cidadania, qualquer jornalista tem por obrigação instigar a fonte a identificar-se. É este facto que transforma a
crónica em algo credível e admite a crítica positivada,
almejar o lado positivo, afirmando, esclarecendo, sendo preciso.
Mas,
partindo do princípio de que é tudo verdade, a ser assim, como se
pode aceitar que quase uma dezena de pessoas, entre eles empresários,
nenhum deles seja capaz de se identificar? É caso para pensar o que
se está a passar com a nossa sociedade, e, sobretudo, em Coimbra.
O QUE
VALE A LIBERDADE?
Podemos
interrogar: o que vale ter liberdade de expressão se os cidadãos
não se sentem livres para a usar? De que vale ser livre se a
liberdade de expressão está limitada e coartada pelo medo real e
imaginário?
Uma
rua, um bairro, uma aldeia, uma vila uma cidade, vale pela coragem,
pela frontalidade dos seus residentes. Se eles têm medo, quer de
energúmenos quer das autoridades públicas pela retaliação, vivem
atrofiados e, como é óbvio, pelos seus fantasmas, levando-os a
temer a própria sombra, normalmente optam pela denúncia anónima.
Intencionalmente, é isto que se procura? Cidadãos sem rosto,
sombras esvoaçantes no tecido urbano e social?
Caminhamos
para onde? Que lugar procuramos para os nossos filhos e netos? Um
hipotético estado de sobrevivência mínimo onde a cobardia é
rainha e senhora?
A
talhe de foice, ando a ler o “Diário
Político”, de
Raul Rego, de 1969. Fico aparvalhado com as semelhanças entre a
vivência do Estado Novo, dessa altura, e o que se passa nos nossos
dias. O que se alterou? Interrogo. Quase nada. E porquê? Porque se
trocou o sistema político mas não se mudou o povo. Continuamos a
viver com o mesmo atavismo e no mesmo desenrascanço. Este é mesmo o
problema.
Na
página 65, citando Aquilino Ribeiro, o autor de Malhadinhas, Raul Rego escreve o
seguinte:
“O
homem que vive em sociedade tem praticado muitas e belas coisas, como
cultivar as rosas, fazer versos, reduzir a tratado as trinta maneiras
de cozinhar o bacalhau; mas o que tem praticado em mais larga escala
e com proficiência é a guerra ao seu semelhante. A história dos
povos, no fundo, não abrange outro tema. Em nome de Deus, por causa
do pão para a boca ou pelos olhos bonitos de uma mulher, como em
Troia, é sempre a mesma encrenca que vai dar ao mesmo resultado
carnificina. Os homens que mais se salientam na organização destas
matanças sistemáticas são elevados à categoria de heróis e tidos
como génios: Alexandre, César, Napoleão, Hindenburgo... As
próprias religiões em tais emergências descem dos seus princípios
morais.”
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