No
Sábado de manhã, enquanto decorria a mostra de “Estátuas Vivas”
na Baixa, um funcionário administrativo com cargo superior na Câmara
Municipal, em vistoria à humana performance estática nas ruas
estreitas, desviando-se do seu trajecto programado, um pouco ufano
pelo sucesso da iniciativa que se comprovava por grupos de
transeuntes parados a apreciar o desempenho artístico da
“performer”,
dirigiu-se-me assim: “Então,
está gostar? A mostra vai merecer um comentário seu positivo?”
Em
diálogo curto, tentei explicar-lhe a minha posição sobre estas
festas. Pouco ou nada convencido pela minha argumentação, foi à
sua vida. Certamente na sua passagem, se olhou para dentro dos
estabelecimentos comerciais, teria visto que as lojas, apesar do
envolvimento da festividade, estavam vazias. Mesmo com as mostras
artísticas a decorrer durante a tarde, às 13h00 o comércio nas
ruelas estreitas praticamente encerrou quase na totalidade e
deixando os artistas imóveis como se fossem mesmo estátuas reais.
Antes
de prosseguir vou fazer uma declaração de interesses. Pelo pessimismo notório, por me sentir
uma espécie de “Medina Carreira do comércio tradicional”,
nos últimos tempos tenho vindo a deixar de escrever sobre o que se
passa e como interpreto o que está acontecer na Baixa. A cada dia
que passa cada vez mais estou convencido que estou sozinho a falar
para o vento e, a ser assim, não sendo entendido, nem pelos mais
interessados, os comerciantes, nem pelo poder político que apenas
está arrebatado no resultado final de sucesso que transparece para
o público e pouco preocupado com o que está acontecer de facto, só
me resta mesmo cuidar de mim.
Repetindo
o que defendo há alguns anos, e foi isto mesmo que tentei mostrar ao
funcionário camarário, o que a edilidade está a fazer são festas
para “turista ver” e que para o comércio de rua
não traz absolutamente nada. São como fogo de artifício a ribombar
no ar. Saliento que, com esta crítica, não pretendo destruir o
trabalho apresentado e realizado pela autarquia. Discuto os meios e
os fins que levam à concretização e não o que se apresenta ao público. O que afirmo é que
estas festas, pelos elevados montantes gastos, não estão a ser
devidamente canalizadas para a revitalização da Baixa. São
formadoras de uma atmosfera festivaleira, oca, panfletária e sem conteúdo, e, para quem está de fora,
para quem aprecia sem se questionar para que serve, cativa simpatias
e gera ovação na aparência. Têm um elevado pendor político de “show-off”,
um faz de conta associado, que a todo o custo querem retratar uma
realidade que não existe. Com a conivência da comunicação social,
escrita e falada, que só revela a fachada e não o interior,
ostenta-se um centro comercial de vida, pujante de turismo, que está
na moda, activo e a mexer, como nenhum outro nacional. Neste quadro
falseado, a cidade muito fica a dever à SIC. Só para exemplificar,
na penúltima sexta-feira, sob responsabilidade da APBC, Agência
para a Promoção da Baixa de Coimbra, foi realizada mais uma “Noite
Branca”, pretensamente com o comércio aberto até à
meia-noite, com “Dj's” a actuarem em algumas praças e outros músicos dentro de algumas lojas.
Quem viu a reportagem no canal privado, mais que certo, ficou
impressionado. O que não se disse na peça é que pouco mais de
meia-dúzia de estabelecimentos comerciais estiveram abertos. No
Sábado, no “Primeiro Jornal”, a mesma coisa acerca
das “Estátuas Vivas”. Como não foi exibida a rectaguarda
desta alegoria, o que perpassa é um êxito jamais visto. Nestas
reportagens de pendor duvidoso na seriedade, nunca são entrevistados
comerciantes extra-organização para saber o que pensam destas celebrações.
A
questão é que, em face do alegado triunfo destes eventos, e não
havendo contraditório, para o cidadão comum que vê a farra do lado
de fora como um banquete gratuito, tomando conta da não adesão do comércio,
há uma tendência para a exaltação do poder político e na
culpabilização dos comerciantes. Ora, está visto, isto é o pleno
que os dirigentes autárquicos pretendem atingir, falando de Coimbra como
outras cidades, fazer de conta que está a alavancar a recuperação
dos seus centros históricos. Pura mentira! Inegável aldrabice! Digo
eu, que também não serei credível para muitos.
LADO-A-LADO,
UM CONCERTO E UM FUNERAL
Para
muitos dos que não fazendo parte da grande família comercial e
seguem o que persistentemente tento transmitir, estou em crer, mesmo
vendo o que está a acontecer, com ramos de negócio a desaparecer,
uns atrás dos outros, tomam-me como exagerado. Uma espécie de anjo
da desgraça. Para os outros, os que estão imbricados com a mão na
massa, os que aqui ganham a vida, sabem que o que escrevo é verdade
mas, aceitando passivamente, preferem não se manifestar. Em jeito de
protesto mudo de costas voltadas, o seu maior ruído percepcionado a
ecoar no silêncio é a manifesta falta de colaboração nestes
festejos. Em metáfora, é assim que, pela imagem de lojas fechadas
num desinteresse bem vincado e a banda a tocar, parece um funeral e
um concerto musical a conviverem no mesmo espaço. Nos últimos dias
encerraram três estabelecimentos na Baixa.
MAS,
AFINAL, O QUE É QUE SE PODE FAZER?
Até
parece que escrevendo muito sobre o comércio de rua, na linha de
salvação, sou senhor de grandes saídas reveladoras. Não, em
confissão e com a humildade possível, não detenho soluções
milagrosas. Tenho para mim que, de uma maneira geral, o estado de
desgraça é de tal modo caótico, e atingiu tal gravidade, que já
não haverá recurso possível para o inevitável desaparecimento da
loja tradicional de rua. Sem querer parecer profeta do infortúnio,
acredito que, sem tardar muito, se continuar a elevada carga fiscal
sobre a pequeníssima empresa, vão ser as câmaras municipais a
ocupar-se dos espaços comerciais, colocando lá funcionários pagos
pelo erário público para dar vida às cidades e vilas.
Dando
crédito, basta atentar às actuais quotas de mercado divulgadas nos
últimos tempos: comércio online já ocupa uma fatia de cerca de 51%
-com tendência para aumentar-; grandes superfícies cerca de 41%;
comércio de rua cerca de 8%. Se, por um lado, se verifica que o
comerciante tradicional resiste a novas formas informais de
transaccionar, o que resulta em seu prejuízo, por outro, também é
certo que, sendo o mais vulnerável, é atacado por todos os lados e
até por si mesmo. Vejamos algumas debilidades que se detectam a
olho nu:
-É
ofendido pela crise, na diminuição drástica dos rendimentos, que
redunda na queda da procura;
-Pela
oferta desmesurada, em concorrência feroz, que contribui para o
embaratecimentos dos produtos, com curtas margens de comercialização,
e que provoca a deflacção;
-Pela
mudança dos costumes, na troca do ter
pelo ser, isto
é, abdicando dos bens materiais em prole do imaterial, como viagens
e prazeres perecíveis e imediatos. Pela desvalorização das coisas, em opção por outras escolhas, o adquirir e ficar amarrado ao
futuro deixou de ser opção;
-Pela
intencional desregulação das leis de mercado, com promoções
diárias, debilitando o pequeno investidor e favorecendo os grandes
grupos;
-Pelas
vendas particulares em populares sites da Internet, em que poucos
pagarão um cêntimo de impostos, em que é desencadeada uma luta
desigual com a conivência do Estado. O lojista está encurralado.
Para além de não conseguir fugir a nada, com custos fixos
exacerbados, está preso a malhas administrativas e a obrigações
fiscais de confisco;
-Pelas
feiras e mercados, nascidos como cogumelos por esse Portugal fora,
apadrinhados pelas câmaras municipais. Apresentados como
revivificadores salvíficos dos lugares, poucos parecem perceber que,
contrariamente ao apregoado em que se tenta fazer crer ser
complementar, com estas medidas, estão a acelerar a morte do que
resta da antiga loja tradicional;
-Pela
desertificação habitacional nos grandes centros urbanos, as lojas
(sobre)vivem apenas dos imprevisíveis passantes. O cliente
fidelizado ao longo de décadas desapareceu;
-Pelo
abandono e carência de políticas locais e governamentais de
desenvolvimento;
-Pelo
desinteresse como as entidades nacionais ligadas ao turismo desprezam
o comércio de rua. Apenas se interessam pelo alojamento e hotelaria
em geral;
-Pela
desunião de classe e fraca capacidade de reivindicação. o comerciante tradicional, maioritariamente sexagenário, raramente ou nunca fala das suas dificuldades económicas. Morre sempre envolto num silêncio sepulcral.
Assim
a continuar, só
sobreviverão os negócios únicos no seu género e sem concorrência
e aqueles que estejam virados para o turismo massificado -enquanto
durar o trânsito internacional de pessoas, porque, como sabemos, o
turismo é um sector muito oscilante e dependente de vários
factores.
SUA
EXCELÊNCIA O TURISTA “PÉ-DESCALÇO”
Segundo
as estatísticas do INE, Instituto Nacional de Estatística,
divulgadas na última sexta-feira, “o ano de 2016 foi o
melhor de sempre para actividade no Centro, que registou crescimentos
na ordem dos dois dígitos a nível de hóspedes, dormidas e
receitas”, in Diário de Coimbra.
Ainda
no mesmo diário, citando a Turismo Centro de Portugal, é referido
que este crescimento revela “maior expressão nos mercados
externos”, com um auento de 13%, para 2,36 milhões de dormidas.
(…) Estes números comprovam os dados preliminares de que já
dispúnhamos. E comprovam também que a estratégia que definimos é
a mais correcta”, afirma Pedro Machado” (presidente da
Turismo Centro de Portugal).
Como
já percebi há muito, para a Turismo Centro de Portugal, o comércio
de Coimbra não merece qualquer referência, seja sobre esta actual
declaração do INE seja sobre outra qualquer passada. O que contam
são as dormidas, o resto é paisagem.
Atente-se
no facto de, progressivamente e sobretudo este ano, o turista ser
cada vez mais “low-cost”, de baixo consumo, mochila e
tenda às costas e telemóvel a captar imagens sem pedir licença.
Em
Coimbra verifica-se que a classificação de Património Mundial,
atribuído pela Unesco, foi um grande negócio para a Universidade.
Melhor dizendo, uma escandalosa classificação que, para além da
hotelaria e algum comércio de cortiça, pouco trouxe à Baixa e à
cidade. Um falhanço clamoroso. Com rotas viciadas, entre o Hotel Astória e a Praça Dom
Diniz, a cidade, e nomeadamente a Baixa, com a Rua da Sofia
abandonada, fica a vê-los passar na rota programada ao milímetro. Uma vergonha que poucos admitem! Quem leu ontem o Diário as Beiras ficou a saber que “O
turismo da Universidade de Coimbra vai facturar quatro milhões este
ano”. Continuando a citar o periódico, “A
afluência de turistas à Universidade de Coimbra continua a
aumentar, esperando-se que este ano ultrapasse o meio-milhão. A
larga maioria dos visitantes são estrangeiros, mas o número de
portugueses está a aumentar”. Ou seja, quando a actividade
comercial na Baixa morre um pouco todos os dias, a Universidade,
fazendo concorrência aos privados na venda de artigos alegóricos,
engorda perante o regozijo dos seus responsáveis e com o beneplácito
da autarquia, que não tem coragem de pôr fim a esta arbitrariedade
que redunda numa aviltante discriminação, e da Turismo Centro
Portugal, que, pela voz do seu presidente, nega estar a favorecer a
Universidade em detrimento da Baixa no seu todo. Defendendo a mesma cartilha doutrinal, a Câmara
Municipal de Coimbra, pela voz da vereadora da Cultura, afirma que
estão todos a trabalhar em conjunto para tornar Coimbra uma cidade
melhor. Entretanto as grandes casas centenárias de comércio vão
encerrando.
Para
quem permanecer na Baixa, aguardemos com serenidade o cair do pano
desta comédia trágica para os que, por insolvência, partem e para
os que, a conta-gotas, se vão aguentando e tentam ganhar a vida. Já
agora, porque a classificação consignada obedece a uma série de
requisitos, esperemos que a UNESCO não leia esta crónica.
Sem comentários:
Enviar um comentário