quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

EDITORIAL: TENDO EM CONTA O COSTUME DE ANTANHO, COMEÇARAM HOJE OS SALDOS

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Apesar de há vários anos a esta parte Portugal estar diariamente a ser vendido ao desbarato ao exterior e com promoções saldadas de toda a espécie e feitio para o interior, mas cá dentro, legalmente, desde 01 de Março de 2015 em que foi promulgado o RJACSR, Regime Jurídico de Acesso e Exercício de Actividades de Comércio, Serviços e Restauração, “que pretende a sistematização de alguns diplomas referentes a actividades de comércio, serviços e restauração da área da economia”, seguindo o velho costume, “começam” hoje os saldos de Natal. Antes da promulgação desta Lei dos Saldos, Promoções e Liquidações, cuja última actualização vinha de 2007, conhecida pela lei Serrasqueiro, havia dois períodos: o de Verão, que ia de 15 de Julho a 15 de Setembro, e o do Inverno, que ia de 28 de Dezembro a 28 de Fevereiro. “Tudo o que fossem baixas de preços realizadas pelos comerciantes ou grupos de distribuição fora desse período teriam que, obrigatoriamente, apelidar-se de “promoções”, “descontos”, ou eventualmente “liquidação total”, caso fosse essa a situação, uma vez que a palavra saldos ficava proibida fora daqueles dois períodos”.
Anteriormente a 2007, antes da lei Serrasqueiro ser promulgada, havia apenas duas temporadas de saldos no país: de 15 de Agosto a 30 de Setembro e de 15 de Janeiro a 28 de Fevereiro.
Com a entrada em vigor do RJACSR -publicada na vigência de Pedro Passos Coelho- o período de saldos ficou circunscrito a quatro meses de um ano civil e pode acontecer sempre que o comerciante quiser. "Relativamente à venda a retalho com redução de preço, embora se mantenha o período de quatro meses por ano em que se podem realizar saldos, elimina-se a limitação da realização dos mesmos em períodos definidos por lei, conferindo aos operadores económicos a liberdade de definirem o momento em que os pretendem realizar”.
O resultado desta medida ultra-liberal, declaradamente a tornar legal a lei da selva no comércio, a do mais forte, foi verificar um cada vez maior empobrecimento dos mais vulneráveis, como quem diz os comerciantes de rua. Na argumentação que serviu de suporte a esta norma legislativa quando se afirma que os governos não devem mandar nos stoks dos comerciantes e quando estes os devem colocar à venda por preço baixo, em teoria, é verdade. Ou seja, se vivêssemos numa economia fechada sem acesso fácil às importações, ou numa economia ideal, em que todos os entes, embora não tivessem o mesmo poder económico, estivessem obrigados às mesmas regras de fornecimento, em princípio, tal prerrogativa não geraria desequilíbrio de maior entre as partes. Acontece que a Globalização, com o mercado livre, veio baralhar tudo. Uma marca, com várias lojas em centros comerciais, o chamado grande comércio, facilmente pode importar da China ou de outro qualquer país asiático contentores de artigos com um valor de custo que se torna meramente residual. Este mesmo artigo para um lojista tradicional, obrigado a adquirir apenas algumas peças a um qualquer fornecedor grossista, pode ter um custo várias vezes multiplicado. Na hora dos saldos, ou promoções, os cinquenta por cento para os primeiros, para o grande comércio, pode significar continuar a ganhar muito e para os segundos, para o pequeno lojista, não ganhar nada. Afirmar que um comerciante tradicional pode fazer o mesmo, importar e exportar, é completa utopia versus demagogia. Só quem não conhece o nosso comércio interno, cheio de assimetrias, pode defender que os meios estão equilibrados. Basta ver quem faz publicidade nas televisões para apreender o estado assimétrico.
Por outro lado, devido ao diferencial de forças entre oponentes, pequeno e o grande comércio, entrámos numa deriva onde os descontos, sejam através de promoções ou liquidações, deixaram de ser a excepção para ser a regra. O resultado desta agressiva política de vendas é o desvio contínuo de consumidores para as grandes superfícies e a notória desertificação de todos os centros urbanos, cidades, vilas e aldeias. Sem mexer nesta desvirtuada política económica de pouco valerá o actual Governo ter criado a Unidade de Missão para a Valorização do Interior. É uma ilusão de óptica da modernidade. O que sempre deu vida aos lugares mais recônditos foi sempre o pequeno estabelecimento comercial e industrial. Enquanto não se perceber que o grande comércio, com sedes em países de baixa fiscalidade, funciona como os Jacintos-de-água, uma das piores plantas invasivas do mundo, que come tudo à sua volta, de pouco vale andar a carpir mágoas sobre os que sucumbem nesta guerra sem quartel.
Por outro lado ainda, devido à overdose de oferta diária e rotineira, hoje já ninguém liga aos saldos, sobretudo, do comércio tradicional. Por um lado, os comerciantes, cumprindo calendário, locais fazem tudo para chamar a atenção dos clientes desertores e de pouco serve, por outro, os consumidores olham para as montras com rebaixas como cão a passar em vinha vindimada.
Estas épocas especiais só tem interesse para as televisões, com campanhas publicitárias massivas, que depois retribuem generosamente em imagens gratuitas das grandes áreas.
Por cá, como quem diz, pela Baixa de Coimbra, depois da azáfama de ontem em marcar novos preços nos produtos, fazer etiquetas, alterar montras, está tudo sereno. É assim uma coisa parecida com o jogo da lerpa para um jogador em maré de azar: baralha-se, dá-se de novo e as cartas saídas são um duque e dois ternos. Mas um bom jogador, tal como o poeta, é um fingidor e continua a mostrar um sorriso no rosto para não mostrar debilidade. Mas uma coisa é certa: esta memorável lei dos Saldos, Promoções e Liquidações, tem, inegavelmente, um contributo feliz para os comerciantes e (alguns) prestadores de serviços: é o mexer na coisa mesmo que a coisa, murcha pelo tempo, já não responda a estímulos.
Agora, com a nova lei entrada em vigor em 1 de Março de 2015, vender ao desbarato pode ser sempre que um homem quiser. O que seria do comércio tradicional sem o beneplácito do legislador? É assim como a um condenado à morte não lhe ser facilitados meios para colocar termo à vida e estar obrigado ao espectáculo do estertor final. Isso é só nos “staites”, por cá não. Aqui é diferente, há sempre uma lei generosa que ajuda a facilitar o enterro aos mais débeis, inclusive. E, sendo assim, em mimética, vestimos todos a opa para ir beatificamente, com ar de santinho, na procissão decadente. E aqui não não há santos nem pecadores de exclusão, todos, mas todos, fazem a sua parte para manter a aparência social.

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