(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Apesar
de há vários anos a esta parte Portugal estar diariamente a ser
vendido ao desbarato ao exterior e com promoções saldadas de toda a
espécie e feitio para o interior, mas cá dentro, legalmente, desde
01 de Março de 2015 em que foi promulgado o RJACSR, Regime Jurídico
de Acesso e Exercício de Actividades de Comércio, Serviços e
Restauração, “que pretende a sistematização de alguns
diplomas referentes a actividades de comércio, serviços e
restauração da área da economia”, seguindo o velho costume,
“começam” hoje os saldos de Natal. Antes da promulgação desta
Lei dos Saldos, Promoções e Liquidações, cuja última
actualização vinha de 2007, conhecida pela lei Serrasqueiro, havia
dois períodos: o de Verão, que ia de 15 de Julho a 15 de Setembro,
e o do Inverno, que ia de 28 de Dezembro a 28 de Fevereiro. “Tudo
o que fossem baixas de preços realizadas pelos comerciantes ou
grupos de distribuição fora desse período teriam que,
obrigatoriamente, apelidar-se de “promoções”, “descontos”,
ou eventualmente “liquidação total”, caso fosse essa a
situação, uma vez que a palavra saldos ficava proibida fora
daqueles dois períodos”.
Anteriormente
a 2007, antes da lei Serrasqueiro ser promulgada, havia apenas duas
temporadas de saldos no país: de 15 de Agosto a 30 de Setembro e de
15 de Janeiro a 28 de Fevereiro.
Com a entrada em vigor do
RJACSR -publicada na vigência de Pedro Passos Coelho- o período de
saldos ficou circunscrito a quatro meses de um ano civil e pode acontecer
sempre que o comerciante quiser. "Relativamente à venda a
retalho com redução de preço, embora se mantenha o período de
quatro meses por ano em que se podem realizar saldos, elimina-se a
limitação da realização dos mesmos em períodos definidos por
lei, conferindo aos operadores económicos a liberdade de definirem o
momento em que os pretendem realizar”.
O
resultado desta medida ultra-liberal, declaradamente a tornar legal a
lei da selva no comércio, a do mais forte, foi verificar um cada vez
maior empobrecimento dos mais vulneráveis, como quem diz os
comerciantes de rua. Na argumentação que serviu de suporte a esta
norma legislativa quando se afirma que os governos não devem mandar
nos stoks dos comerciantes e quando estes os devem colocar à
venda por preço baixo, em teoria, é verdade. Ou seja, se vivêssemos
numa economia fechada sem acesso fácil às importações, ou numa
economia ideal, em que todos os entes, embora não tivessem o mesmo
poder económico, estivessem obrigados às mesmas regras de
fornecimento, em princípio, tal prerrogativa não geraria
desequilíbrio de maior entre as partes. Acontece que a Globalização,
com o mercado livre, veio baralhar tudo. Uma marca, com várias lojas
em centros comerciais, o chamado grande comércio, facilmente pode
importar da China ou de outro qualquer país asiático contentores de
artigos com um valor de custo que se torna meramente residual. Este
mesmo artigo para um lojista tradicional, obrigado a adquirir apenas
algumas peças a um qualquer fornecedor grossista, pode ter um custo
várias vezes multiplicado. Na hora dos saldos, ou promoções, os
cinquenta por cento para os primeiros, para o grande comércio, pode
significar continuar a ganhar muito e para os segundos, para o
pequeno lojista, não ganhar nada. Afirmar que um comerciante
tradicional pode fazer o mesmo, importar e exportar, é completa
utopia versus demagogia. Só quem não conhece o nosso comércio interno, cheio de
assimetrias, pode defender que os meios estão equilibrados. Basta
ver quem faz publicidade nas televisões para apreender o estado
assimétrico.
Por
outro lado, devido ao diferencial de forças entre oponentes, pequeno
e o grande comércio, entrámos numa deriva onde os descontos, sejam através de promoções ou liquidações, deixaram de ser a excepção
para ser a regra. O resultado desta agressiva política de vendas é
o desvio contínuo de consumidores para as grandes superfícies e a
notória desertificação de todos os centros urbanos, cidades, vilas
e aldeias. Sem mexer nesta desvirtuada política económica de pouco
valerá o actual Governo ter criado a Unidade de Missão para a
Valorização do Interior. É uma ilusão de óptica da modernidade. O que sempre deu vida aos lugares mais
recônditos foi sempre o pequeno estabelecimento comercial e
industrial. Enquanto não se perceber que o grande comércio, com
sedes em países de baixa fiscalidade, funciona como os
Jacintos-de-água, uma das piores plantas invasivas do mundo, que
come tudo à sua volta, de pouco vale andar a carpir mágoas sobre os
que sucumbem nesta guerra sem quartel.
Por outro lado ainda,
devido à overdose de oferta diária e rotineira, hoje já
ninguém liga aos saldos, sobretudo, do comércio tradicional. Por um
lado, os comerciantes, cumprindo calendário, locais fazem tudo para
chamar a atenção dos clientes desertores e de pouco serve, por
outro, os consumidores olham para as montras com rebaixas como cão
a passar em vinha vindimada.
Estas
épocas especiais só tem interesse para as televisões, com
campanhas publicitárias massivas, que depois retribuem generosamente
em imagens gratuitas das grandes áreas.
Por
cá, como quem diz, pela Baixa de Coimbra, depois da azáfama de
ontem em marcar novos preços nos produtos, fazer etiquetas, alterar
montras, está tudo sereno. É assim uma coisa parecida com o jogo da
lerpa para um jogador em maré de azar: baralha-se, dá-se de
novo e as cartas saídas são um duque e dois ternos. Mas um bom
jogador, tal como o poeta, é um fingidor e continua a mostrar um
sorriso no rosto para não mostrar debilidade. Mas uma coisa é
certa: esta memorável lei dos Saldos, Promoções e Liquidações,
tem, inegavelmente, um contributo feliz para os comerciantes e
(alguns) prestadores de serviços: é o mexer na coisa mesmo
que a coisa, murcha pelo tempo, já não responda a estímulos.
Agora, com a nova lei
entrada em vigor em 1 de Março de 2015, vender ao desbarato pode ser
sempre que um homem quiser. O que seria do comércio tradicional sem
o beneplácito do legislador? É assim como a um condenado à morte
não lhe ser facilitados meios para colocar termo à vida e estar
obrigado ao espectáculo do estertor final. Isso é só nos
“staites”, por cá não. Aqui é diferente, há sempre uma
lei generosa que ajuda a facilitar o enterro aos mais débeis,
inclusive. E, sendo assim, em mimética, vestimos todos a opa para ir
beatificamente, com ar de santinho, na procissão decadente. E aqui
não não há santos nem pecadores de exclusão, todos, mas todos,
fazem a sua parte para manter a aparência social.
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