(Escrevi
esta história baseada num caso real em dezembro de 2013)
Neste 20 de Dezembro o autocarro parou junto ao rio Mondego. Estava o Sol no centro de um dia friorento à sombra. Do meio da pequena multidão uma mulher esguia e de meia-idade saiu em passo ligeiro mas resoluto. Era baixa, com pouco mais de metro e meio. Era incrivelmente magra, muito magra, como se a gordura numa qualquer reivindicação se negasse a encher o corpo. Vestia com simplicidade roupas que, de tanto serem repetidas, pareciam querer manifestar-se pelo excesso de uso. Quem olhasse aquele rosto fechado de frente veria dois olhos negros, embaciados de tristeza mas, ao mesmo tempo, um olhar duro, petrificado pela mágoa, como se o pouco e o muito já não fizessem qualquer diferença, se tivessem imunizados à dor, e estivessem prontos a levar qualquer pancada do destino.
Como fantasma perdido nas
trevas em busca de um encosto que lhe consubstanciasse afirmação,
atravessou a avenida quase sem dar pelos carros e, no seu andar
rápido, entre o suave vacilar de pena e o carregar os pés no chão
de dentes cerrados, entrou nas ruas largas da calçada. A sua mente
estava longe, cavalgava sobre um corcel de memórias. As pessoas que
consigo se cruzavam sem as ver com definição, aos seus olhos,
pareciam sombras que se moviam em câmara lenta. Nem a música
espalhada ao vento de “O Natal existe” a fez hesitar em calcar as
pedras quase com raiva. A letra da canção parecia gozar com a sua
disposição “quero ver você não chorar, não olhar para trás
nem se arrepender do que faz”. Pensou para si, “não chorar
como? Só se fosse pelo motivo da fonte das lágrimas ter secado”.
Sentiu-se invadida por uma irritação surda. Se não fosse por
coisas, apetecia-lhe mandar um grito para o ar acompanhado de uma
grande asneira. “Que merda de tempo este que se vive agora no
Natal! Anda tudo lixado, com a alma mais negra que a chaminé da casa
de aldeia onde nasci, e tudo finge que é feliz. Esta época
natalícia faz-me lembrar o período pré-eleitoral em que anda tudo
a cantar hossanas ao candidato. Passado um mês desaparece a nuvem de
euforia, vem a solidão e a falta de expectativa, e regressa a
realidade que sempre esteve no meio de nós e nos há-de acompanhar
até ao fim dos nossos dias. Nunca gostei muito do Natal. Nesta
quadra sou assolada por memórias que de boa vontade expurgava. Casei
próximo de Dezembro. Rodou o calendário e quando pari os meus
filhos andavam S. José e Maria à procura de um estábulo indecente
para parecerem os mais segregados desta vida simbólica de pobreza.
Também nesta época, estava o solstício de Inverno a preparar-se
para polvilhar tudo de branco, foi quando a minha mãe morreu –que
saudades que eu tenho dela!
Faz tantos anos que dei o
sim lá na igreja da Rainha Santa –tantos, tantos! Quantos? Sei lá!
Até já me esqueci. Tantas esperanças que coloquei naquele ramo de
camélias amarelas! Era o tempo das flores. Quando casei ainda se
apanhava no ar o cheiro dos cravos. Agora o cravo feneceu, já só
resta a memória e o espírito revolucionário num livro que tenho lá
em casa e nos móveis que ainda mantenho e não pude trocar por
outros mais modernos. Do cravo passámos a escravo. Mas, agora que
penso nisso, somos subjugados a quê? E Porquê? E Eu? Sou submissa a
quem? Se calhar do destino, deste fado de má-sorte. Sempre trabalhei
tanto, tanto, até agora para eles! Para todos! Para a minha família!
Nunca cuidei de mim. Não soube pugnar pelos meus interesses. Há
décadas que não vou ao cinema! Há séculos que não vou dançar. E
quando foram as últimas férias que gozei fora? Estive sempre em
segundo lugar. A primeira escolha era deles. Eu apanhei sempre o que
restava, o que não lhes interessava. Porque é que este meu filho me
havia de fazer isto? Deus queira que ele se safe! Tive mesmo azar!
Anda uma pessoa a criá-los para isto! Porque é que ele me fez
isto? –E olhos começaram a humedecer. Ao longo destas
décadas, tanta escada que encerei! Tanta casa que arrumei! Tanta
roupa que passei a ferro em casa das senhoras! Tanta merda que eu
limpei depois de sair da repartição pública em segundo trabalho
forçado e até às tantas. Porque é que ele me fez isto? O que eu
sofri para pagar as propinas lá na Faculdade de Economia e não o
consegui ver licenciado. Mas ele é tão inteligente! Como é que os
mais espertos, tendo um talento inato, se transformam nos mais
burrões? Porque é que o meu filho me fez isto?”
Quase sem dar pela
distância, chegou à Praça 8 de Maio e entrou na Igreja de Santa
Cruz.
II
Transpôs a porta do
templo e foi banhada pela atmosfera fria da pedra secular, onde o
silêncio envolvente convida à introspecção, ao remanso da
essência, e a oração surge sem ser requisitada. Havia um cheiro a
Natal misturado em odores de incenso e vela queimada. Algumas
mulheres, com ar solene, de cabeça baixa, em sinal de respeito
total, encaminhavam-se para um dos lados, presumivelmente onde
estaria representada a Sagrada Família e com o Menino Jesus.
Como um saco de águas
rebentadas para dar à luz, as lágrimas irromperam por aquela face
martirizada pelo tempo e o sossego como testemunha. Num dos muitos
bancos de madeira corridos, acomodou-se, deu um último olhar para o
púlpito reluzente a ouro enegrecido pelos anos e fumo de velas,
marcas de fé num derradeiro milagre, e cerrou os olhos. O pranto,
como fio de água provindo das profundezas da terra, continuava a
correr pela pele sulcada de bainhas madrastas. Como um condenado à
morte, em que lhe resta apenas uns minutos de vida e só um milagre a
pode salvar, ajoelhou e mentalmente encetou um monólogo
emudecido: “Senhor, ajuda o meu filho! Sabes que nunca Te pedi
nada para mim. Dá-me uma mostra de que és bom. Bem sei que não fui
boa mãe ao dar-lhe tudo de mão-beijada. Pensei que estava a fazer o
melhor. Enquanto eu trabalhava pela noite dentro, correndo de Seca
para Meca, contando os cêntimos, ele moinava. Quando eu me levantava
de madrugada para deixar o seu almoço prontinho em cima do
fogão chegava ele meio borracho e com outras coisas mais que o
alucinavam. Eu via mas não queria ver nem crer. Tive sempre
esperança que ele mudasse. Ele é bom menino, Senhor! Tenho a
certeza. É certo que é muito manipulador e, fazendo que ouvia,
nunca escutava ninguém. É muito inteligente, mas pouco
disciplinado. Talvez seja este o verdadeiro problema. Nunca tive mão
na sua vontade. Às vezes irritava-me com ele mas quando se abraçava
a mim, naquele gesto apertado, acabava a derreter-me e estragava
tudo. Sempre foi diferente do irmão, o outro meu filho que está lá
longe do outro lado da fronteira. Ajuda o meu filho, Senhor! Dá-lhe
uma outra oportunidade. Apesar dos seus quase 35 anos continua a ser
uma criança crescida. Bem sei que contribuí para ele ser assim. Eu
sei! Mas tem dó! Ele é um fruto desta sociedade conspurcada pelo
vício, onde a necessidade de abstracção implica a recorrência a
ansiolíticos, a álcool, a droga, como ele. Foi por esta que
o meu filho, em associação com outros, começou a assaltar pessoas
na cidade. E eu sem saber de nada! Levei um baque, Senhor! Quando a
polícia me bateu à porta para o levar sob prisão fiquei em choque.
Como foi possível? Como foi possível ter-me feito uma coisa
destas?
Daqui a meia-hora vai ser
lida a sentença no Tribunal. Pela Tua incomensurável misericórdia,
neste Natal de 2013, ajuda o meu filho! Pelo Teu omnipotente poder de
influência sobre a humanidade, prepondera a juíza. Faz com que ela
tenha compaixão e lhe dê uma oportunidade de reinserção social.
Fazes isso, Senhor?”
III
A sala fria do
Tribunal estava repleta. O ambiente era de tensão, emoção e
expectativa. Sabe-se lá o que iria na cabeça de todos aqueles
familiares?! Dentro de momentos, pela leitura da sentença proferida
pela juíza presidente do colectivo, iria ser decidida a vida, o
futuro daqueles três jovens. A súmula de crimes cometidos pelos
arguidos contra a comunidade ficou ali bem vincada e esclarecido que
causaram temor social, como tal iriam ser castigados. E foi lido o
acórdão na parte decisória que mais interessava. E num caso nunca
visto a magistrada chorou. De entre os presentes, uma mulher suspirou
fundo e olhou para cima. O seu menino tinha sido condenado a pena
suspensa.
(BASEADO
NUMA HISTÓRIA REAL)
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