quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

MORTE AO OURIVES E O REGRESSO DO EXTERMINADOR

Proibido pagar em dinheiro transações de ouro superiores a 250 euros
(Imagem da Web)


  

Numa obsessão pela normalização, como setas envenenadas envolvidas pelo vento, vinda em directivas comunitárias, quem não se recorda, há cerca de uma dezena de anos, da infantaria avançada securitária que praticamente rebentou com os nossos costumes populares, como a matança do porco, e quase exterminou produtos regionais, como, por exemplo, as amêndoas de Portalegre. O ridículo foi até ao ponto dos burocratas de Bruxelas, com o argumento de que as galinhas estavam infelizes quererem acabar com a produção de ovos que se vai fazendo por cá.
Se pensamos que estamos a salvo destes exterminadores implacáveis, pelo sim pelo não, vale mais comprar uma armadura. Eles estão aí e prontos a destruir a actividade de uma classe e a mandar para o desemprego milhares de pessoas com larga experiência empírica, com tarimba, com muito saber. Se não fosse trágico dava vontade de rir e acreditar que é simplesmente uma brincadeira. Infelizmente não é. Como sempre, seguindo os costumes normativos, veio em forma de decreto e dá pelo número 98/2015 de 18 de Agosto, aprova o (novo) Regime Jurídico da Ourivesaria e das Contrastarias e revoga os Decretos-leis 371/79 de 20 de Setembro, 57/98 de 16 de Março e 171/99 de 19 de Maio.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Desde a última legislação regulamentar para o sector das ourivesarias e outros negócios como, por exemplo, lojas de antiguidades, feiras e mercados, há cerca de uma dezena e meia de anos, que a compra e venda de metais preciosos, ouro e prata, e materiais gemológicos estava liberalizada. Ou seja, qualquer operador desde que colectado nas Finanças e inscrito na Contrastaria da Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM), pagando uma licença, poderia realizar o seu negócio livremente. O interessado em vender dirigia-se ao lojista ou comprador eventual e após acordo mútuo cada um seguia a sua vida.
Antes de prosseguir, convém esclarecer que a gemologia é a especialidade da geologia que estuda o carácter físico e químico dos materiais sejam de origem orgânica ou inorgânica que tem por objecto o adorno pessoal ou decoração de ambiente. “As gemas são substâncias que apresentam valores estéticos como cor e forma, além de durabilidade devido às suas propriedades químicas e físicas. As substâncias consideradas gemas podem ser minerais -na grande maioria - ou materiais de origem orgânica, sintética ou artificial.”

OS ANOS LOUCOS DO OURO

Com a crise internacional a desvalorizar as importâncias fiduciária e real da moeda, como é normal, o valor dos metais, nomeadamente do ouro, dispararam. Então, em qualquer esquina de vilas e cidades, abriram lojas de compra e venda de ouro e multiplicaram-se como cogumelos em solo fértil. Adquirindo hoje e vendendo o mais rapidamente possível para desfazer aproveitando só o metal –muitos sem sequer cumprirem as formalidades legais de participação às polícias. Num regabofe impossível de entender, num colaboracionismo execrável, foram até criadas multas pecuniárias para os infractores- o objectivo destes lojistas era enriquecer o mais rapidamente possível. Sem que ninguém se importasse com o valor museológico das peças, foram derretidas milhares de obras de arte e, pior, por deixar de ser compensador, arrumou-se para a prateleira uma grande parte de mestres-ourives tradicionais que se dedicavam a esta popular profissão portuguesa.

DEPOIS DE CASA ROUBADA

Nos últimos tempos, com a descida abrupta dos metais preciosos, com tendência para a estabilização de preços, como é óbvio, o encerramento das ditas lojas de ouro foi a esmo. Por outro lado, depois da saída de toneladas de património cultural para o estrangeiro e a loucura austeritária, em que as famílias foram obrigadas a vender os anéis e os dedos ficaram nus e já pouco terão para alienar, a razia está completa. No caso das ourivesarias tradicionais que se aguentaram e não embarcaram no comboio para Auschwitz para derreter os metais nos fornos, os últimos anos passados a navegar em mar encapelado, em termos de negócio, foram para esquecer. Devido aos preços elevados do metal amarelo, nem vendiam artigos novos nem velhos. Cada um, a seu modo e à espera de um amanhã melhor, tentava sobreviver com a venda e concertos de relógios. Os sobreviventes esperavam que o genocídio terminasse para poderem continuar na actividade.
É então que, pé-ante-pé, o anterior governo da Coligação PSD/CDS promulga a Lei 98/2015 de 18 de Agosto e que entra em vigor em 16 de Novembro, último.

UMA BOMBA NA OURIVESARIA

Até à promulgação desta lei, só para exemplificar, o custo de uma licença de “Restalhista com Est. Especial Antiguidade” para uma pequena “chafarica” de velharias e antiguidades era, com validade de um ano, de cerca de 50,00 euros. O mesmo se passava para uma pequena loja de ourivesaria que vendia uma pulseira de ouro nova e, em troca, adquiria uma peça usada. Agora, com a nova legislação, este comércio só tem duas opções: ou escolhe ser morto trucidado ou enterrado vivo. Sendo mais claro, ou opta apenas pela licença de venda de artigos novos –ficando proibido de reaver artigos usados em metais preciosos como, por exemplo e entre outros, relógios ou moedas em ouro e prata-, o que inevitavelmente vai conduzir ao encerramento do espaço, ou escolhe continuar a comprar e a vender bens usados. Porém, se enveredar por este caminho, entendido por mim como labiríntico processo de Kafka, está também a assinalar a morte comercial a prazo certo.

O CUSTO DA LEGALIDADE

Sem entrar na interpretação jurídica propriamente dita, vejamos o custo das licenças por parte da Contrastaria. O que anteriormente custava cerca de 50,00 euros em autorização anual passou agora para 590,00 euros, válida até 5 anos ou até ao seu cancelamento por parte do operador (art.º 42 -8). Ou seja, o pagamento da autorização passou de fraccionado, de anual, para inteiro, no tempo de cinco anos -isto porque, está de ver, o mercado está de boa saúde e pujante. Falo do designado “Retalhista de compra e venda de artigos com metal precioso usado»: exerce a título principal ou secundário a atividade de compra e venda, diretamente a particulares, de artigos com metal precioso usado, bem como a venda dos subprodutos resultantes da fundição dos artigos com metais preciosos, em estabelecimento aberto ao público.”
Como se fosse pouco o exorbitante aumento, agora, com a nova legislação, qualquer estabelecimento comercial está obrigado a, no prazo de 180 dias, requerer a licença de retalhista de compra e venda de artigos com metal precioso usado. O incumprimento pode, por parte da ASAE, levar ao encerramento e selagem das instalações dos operadores não licenciados.
Está ainda obrigado o operador a manter um registo diário com a descrição dos artigos comprados, nomeadamente, com o peso, a antiguidade, o estado de conservação e o seu valor e relevância cultural e histórica. Deve ter uma fotografia a cores, indicar o preço pago e o meio utilizado com o número de cheque, transferência bancária ou pagamento electrónico (art.º 66.º).
Até 31 de Janeiro de cada ano, o operador económico deve emitir uma declaração para a Polícia Judiciária em que constem todas as compras e vendas e o montante total das mesmas (art.º 66.º-8).
Os artigos destinados a fundição têm de ser comunicados à Polícia judiciária com antecedência mínima de 20 dias e de modo a ser aprovado o acto por despacho do director nacional.
Mas o pior nem é o custo da licença. Após a entrada em vigor da nova lei, qualquer estabelecimento de compra e venda de metais preciosos usados, embora sem permanência física no local de venda, tem de ser assessorado diariamente por um avaliador oficial empossado pela INCM (art.º 41.º- 4). Para cada peça sujeita a avaliação o perito está obrigado a emitir uma certidão da avaliação que efectuar e a passar um termo de responsabilidade pela apreciação (art.º 47.º). O que implica por parte do comerciante ou pagar uma avença mensal a um técnico ou o próprio operador candidatar-se ao curso ministrado pela Contrastaria da Imprensa Nacional Casa da Moeda.
Coimas (art.º 96.º): para pessoas singulares de 700 a 2,500,00 €, nos casos de infracção leve; de 2,700 a 7,000,00 €, nos casos de infracção grave; de 7,200,00 a 20,000,00 €, nos casos de infracção muito grave.
Para pessoas colectivas: de 5,000 a 10,000,00 €, infracção leve; de 10,200,00 a 37,000,00 €, infracção grave; de 37,200,00 a 200,000,00 €, nos casos de infracção muito grave.
Sanções acessórias (art.º 97.º): desde perda a favor do Estado; encerramento do estabelecimento por um período até dois anos; interdição de profissão ou actividade entre 2 a 10 anos; etc,.

O ACESSO DISCRIMINADOR AO CURSO

Sem levar em conta o conhecimento e o saber fazer dos muitos peritos de ourivesaria e pedras preciosas, para frequentar o curso de avaliador oficial é necessário possuir o 12º ano. Quantos comerciantes mais antigos possuem esta habilitação literária? Para além disso, e aqui até se compreende, para concorrer é necessário idoneidade (art.º 48.º).
Como um mal nunca vem só, os cursos são apenas ministrados em Lisboa e Porto. O resto do país é paisagem?
O curso custa 1,750,00 euros e mais 300 para acesso a exame. Em caso de chumbo e nova inscrição a exame obriga a novo pagamento de mais 300 euros.

A AVENÇA AO AVALIADOR E O CARRO À FRENTE DOS BOIS

Passados cerca de dois meses da entrada em vigor da nova lei, para além da Contrastaria que se limita a informar sobre a redacção normativa, não há ninguém, quer operadores quer os próprios avaliadores, que saiba dar resposta objectiva e como proceder. Por exemplo, tanto quanto julgo saber as seguradoras ainda não estão a fazer seguros obrigatórios (mínimo de 100,000 euros) para exercer a profissão de avaliador certificado (art.º 55.º). Por outro lado, ainda, os próprios peritos não sabem quanto cobrar. Ao que sei, a discussão gira em torno da margem de 100,00 a 300,00 euros. Quantos pequenos negócios podem pagar?

OS AVALIADORES NÃO CHEGAM PARA AS ENCOMENDAS

Tanto quanto julgo saber, na Comarca de Coimbra existe apenas uma dúzia de avaliadores certificados e no país cerca de 120. O que, segundo uma declaração anónima obtida, está a lançar o pânico por parte da Contrastaria INCM. Esta instituição não sabe como responder a algumas solicitações que se avizinham.

ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA OU DESTRUIÇÃO DA INCM?

Numa conduta mais que certamente ilegal, a Contrastaria está a exigir o pagamento de 18,45 euros a quem cancelar a inscrição na INCM. Repare-se que a licença é anual e, salvo melhor opinião, sujeita a caducidade por parte do requerente.
Em face deste desmesurado aumento e absurdas exigências em jeito de bomba atómica, é lícito perguntar o que pretende o legislador: Destruir todo um sector de actividade comercial? Fazer enriquecer a qualquer custo a Contrastaria? Ou, no limite, está na disposição de destruir esta instituição e mandar para o desemprego cerca de duas centenas de funcionários da INCM?

OUTRAS OBRIGAÇÕES AVULSAS

Apenas para o exercício da compra e venda de artigos usados, não esquecer que esta lei trouxe também outras prerrogativas como a obrigatoriedade de sistemas de vigilância nos estabelecimentos com a preservação das imagens durante 90 dias (art.º 67.º). 
E ainda a cotação diária dos metais preciosos no estabelecimento em local bem visível (art.º 63.º).
E ainda a proibição de transacções em dinheiro superiores a 250,00 euros. Têm de ser efectuadas em cheque ou transferência bancária (art. 68.º) -salvo melhor opinião, esta medida está ferida de inconstitucionalidade.

CONDIÇÕES DE EXPOSIÇÃO DOS ARTIGOS E DE VENDA AO PÚBLICO

Conforme o artigo 62.º. 
Do Comércio em geral:

 “1 — Os artigos com metal precioso só podem ser expostos para venda ao público desde que se encontrem legalmente marcados, nos termos do presente RJOC.
2 — É permitida ao retalhista de compra e venda de artigos com metal precioso, a venda ao público de artigos com metal precioso colocados pela primeira vez no mercado do território nacional, a par da venda de artigos com metal precioso usados, no mesmo estabelecimento ou ponto de venda, desde que:
a) Cada tipologia de artigos esteja exposta separadamente, em suportes físicos distintos e autónomos;
b) Os artigos com metal precioso usado se encontrem etiquetados com essa menção visível e expressa.
3 — Os artigos com metal precioso consideram-se expostos para venda ao público:
a) Desde que se encontrem dentro do estabelecimento de venda, ou em qualquer local próprio de venda autorizado, qualquer que seja o lugar exato onde se encontrem, incluindo dentro de gavetas, caixas ou outros móveis que impeçam a sua direta visualização pelo consumidor; ou
b) Quando se encontrem em trânsito e logicamente se possa concluir que se destinam a venda.”

Muita atenção a este artigo 62.º-3. Quer dizer que, por parte das autoridades, a busca, no mexer e remexer dentro do estabelecimento, está legalmente autorizada (art.º 71.º).
Em resumo, sem que ninguém me encomendasse a tarefa, mesmo com muitas falhas e sendo demasiadamente longo, julgo poder contribuir com este texto para algumas dúvidas suscitadas nos milhares de operadores comerciais.
Por último, sei que está a decorrer uma Petição Pública online para levar este assunto à Assembleia da República e à correspondente revogação desta absurda lei que, aparentemente, tem por objecto a destruição e o empobrecimento de uma classe profissional prestigiada e digna. Faço votos para que o bom-senso impere e a lei seja invalidada ou substituída.


(Texto enviado para conhecimento aos deputados eleitos por Coimbra à Assembleia da República, respectivamente, Helena Freitas (PS), Pedro Coimbra (PS) e José Manuel Pureza (BE))

ASSINE A PETIÇÃO PÚBLICA AQUI (CLIQUE EM CIMA)

TEXTOS RELACIONADOS:

"Quer ser Avaliador Oficial da INCM?" "Esperar no corredor pela morte do ourives"
"Editorial: caça ao pequeno-empresário"




1 comentário:

Anónimo disse...

Boa tarde sou Profissional do ramo embora não concorde com alguns pontos da RJOC diga-me lá tem casas de compra de ouro não tem????
Pois lamento mas a mama acabou as declarações depois do cliente saírem porque aquele não dá problemas podem irem para o lixo, o fazer o negocio no canto que o sistema de vídeo-vigilância não apanha, o comprar hoje derreter e vender amanhã e etc como bem sabe a história de cor. O enriquecimento ilícito acabou meu caro e ainda bem porque a pior merda que existia foi para à compra de ouro e olhe que conheço umas dezenas deles que de fazerem massas e pastéis julgam que hoje são alguém á custa de comprar ouro roubado e de não declara a fuga á fazenda em milhões. Sabe vou imprimir a sua noticia e andar com ela no bolso um dia que me de uma cólica e não tiver papel sirvo-me disto.