Para além do texto "REFLEXÃO: OS SEMÁFOROS DO DESPESISMO", deixo também as crónicas "OS BENQUISTOS DA CIDADE"; "UMA ORDEM NO MEIO DO CAOS"; e "VIVA COIMBRA".
OS SEMÁFOROS DO DESPESISMO
Nos últimos dias fomos surpreendidos pela colocação de
temporizadores em todos os semáforos da cidade. Em juízo de valor, é muito
provável que à maioria até passe despercebido, mas, para quem se deu conta,
mais que certo, estará a interrogar-se para que serve cronometrar o período de
espera, no máximo um minuto, que medeia entre o vermelho, laranja e verde. O
tempo se vai encarregar de provar que estas loucuras insensatas, gastadoras e
despesistas do erário público, são contraproducentes à saúde pública. Pelo
aumento do batimento cardíaco, são geradoras de ansiedade. Mais ainda, são
anátemas, maldições, instrumentais que num perseguir obsessivamente um
modernismo bacoco transforma a vida quotidiana num inferno. Aquele minuto de
espera enquanto o verde não caía era um momento raro de introspecção individual
para muitos de nós. A colocação destes relógios nos sinaleiros electrónicos,
para além do absurdo pelo vazio de utilidade prática, é uma invasão na nossa
rotina intimista. Haja bom senso, por amor de Deus!
OS BENQUISTOS DA CIDADE
São cerca de 14 horas naquela penúltima quinta-feira.
Venho dos lados da Rua da Sofia. Como todos os dias, em frente à Câmara
Municipal vou ser barrado pelas jovens utentes da meritória obra da Comunidade
São Francisco de Assis, que me irão tentar sensibilizar para ou comprar um objeto
ou contribuir com uma moeda. Ainda que compreenda completamente o fim deste
peditório –por que contribuí no primeiro dia- sinto-me
quase agredido pela forma como é feito –aliás, bem na mesma linha de
outros para instituições de solidariedade que se fazem nas ruas largas. Sinto
um conflito, porque sei que se não se dirigirem diretamente aos transeuntes
todos passam ao lado e nem um cêntimo cairá na esperança de vida destas
associações de solidariedade. Mas, por outro lado, este género de aproximação,
de abalroamento massivo, chateia e, porque caíram na vulgaridade repetida, cria
em nós anticorpos, uma má vontade
imanente, que faz repelir toda e qualquer solicitação, seja para boas ou más
causas. Perante a beleza da garota da Comunidade da Irmã Teresa não posso
evitar lançar um olhar ao seu belo colo. Estou velho, eu sei. Quando passamos a
"alimentar-nos" e a
contentar-nos com imagens, pressinto, estou realmente no epílogo da vida.
Paciência! Passemos à frente, que esta parte era perfeitamente desnecessária.
Com a bela rapariga ao meu lado, mesmo mirando os atributos que Deus lhe deu –e que tenha compaixão de mim por esta minha
fraqueza-, de uma forma cínica, vou dizer-lhe: tenha dó! Não pode ser todos os dias, menina! Também sou pedinte! Ela
vai rir-se, pensando que estou a brincar –é interessante verificar que quando
falamos sério, dizendo a verdade, por parecer tão inverosímil, quase nunca
acreditam no que dizemos. Deixo a miúda de mão estendida. Nos poucos metros que
me separam da Praça 8 de Maio vou a pensar nesta triste realidade em que
estamos transformados. Uma obra tão meritória e de entrega ao próximo, como sei
que é esta da Comunidade de São Francisco de Assis, para sobreviver tem de
estar a prostrar a mão há vários dias naquele local. Sinto algum desassossego.
Tinha obrigação de ser mais generoso. Deveria lembrar-me de outras ocasiões em
que também já pedi. Mas enfim! Avancemos, que estes desabafos não interessam
nada a quem lê.
Percorro uma dezena de metros e
estou agora no átrio da Igreja de Santa Cruz. No patim do vetusto templo um homem
realiza e apresenta uma mostra de magia, inserido na 17.ª Edição dos Encontros Mágicos de Coimbra. Em baixo, na pedra
clara e plana, e em cima, na esplanada do Café Santa Cruz, cerca de meia
centena de pessoas assistem à performance do artista estrangeiro, salvo erro
espanhol.
Por momentos, vou parar e pensar.
É o circo na cidade. Tento ter uma conversa séria com os meus botões.
Ilusoriamente, como se me dividisse em dois heterónimos, começo a admoestar e a
interrogar um deles: “lá estás tu com
essa mania de criticar tudo! Fosca-se! A animação não faz falta à cidade? Se
calhar, se não houvesse nada, às tantas, serias tu o primeiro a criticar, não?”.
Imaginariamente a minha outra personalidade vai responder: “pois, bem sei que não é fácil de gerir uma
coletividade. Tens razão, mas, comparando com o ato de pedir para a obra de São
Francisco de Assis, há qualquer coisa que me coloca os cabelos em pé. Apesar de
podermos classificar ambos de espetáculos cénicos, no sentido do desempenho
social, cada um deles tem uma moral diferenciada. Um, o da irmã Teresa, de
maneira altruísta, salva crianças sem pais, forma pessoas para a vida, tentando
evitar que caiam na delinquência, e para o conseguir o que tem de fazer?
Estender a mão à caridade. A outra, a exibição de magia, numa linha de
entretém, em que o circo substitui o pão, distrai e quimericamente alimenta as
massas. Mas há uma questão de pormenor, que é demasiado importante para deixar
passar em branco: estes shows, que começaram em 1998, inseridos na 17.ª
Edição dos Encontros Mágicos de Coimbra, este ano, durante cinco dias, custam
ao erário público a módica quantia de 36 mil e 500 euros mais IVA; no ano
passado 31 mil e 609 euros mais IVA; em 2007 60 mil euros; em 2006 54 mil
euros; em 2001 custaram 26 milhões 240 mil escudos, na nova moeda 130
mil e 1200 euros.”
Lá estás tu a filosofar! Isso interessa? São meros pormenores para quem não tem mais nada para pensar!”
Lá estás tu a filosofar! Isso interessa? São meros pormenores para quem não tem mais nada para pensar!”
UMA ORDEM NO MEIO DO CAOS
Quem entra na Rua Direita pelo lado de Santa Cruz, mais
que certo, deverá parecer-lhe estar a entrar numa zona de guerra recentemente
bombardeada. Continua a andar e de repente, no meio de buracos no chão e
paredes semidestruídas a esboroarem-se perdidas no espaço, depara-se com um
painel colorido com desenhos abstratos, numa das paredes de um edifício. Chama
atenção pelo contraste da ordem no meio de toda aquela desordem. No chão, podem
ainda ver-se sanitas e bidés, restos de um tempo passado, a servirem de vasos
com flores vivas, catos e outras plantas de várias cores e cheiros. Certamente
a primeira interrogação de espanto surge assim: “mas será que interromperam as obras por causa daquele painel?”.
Perante um andaime montado ao lado da obra, pode ainda surgir outra especulação:
“mas terá sentido estar a alindar uma
zona cujo final, por obras da planeada nova Avenida Central, será a destruição
de todo o edificado?”.
Quem vai responder a estas
questões é Carlos Costa, de 53 anos, e até há pouco, durante 15 anos, a
trabalhar na Áustria e na Alemanha. Desempregado de longa duração, está há dois
anos em Coimbra. É o residente
encarregue de, diariamente, logo de manhã, abrir o portão de acesso gradeado. A
intenção é, com os trabalhos de criação artística, levar outros a participar
também. “É um projeto da Divisão de Ação
e Família, da Câmara Municipal de Coimbra, e inserido num Programa Comunitário
para a Cidadania e Igualdade –diz-me com clareza e convicção, e apontando
em redor. Repare nesta envolvência
decadente, de morticínio visual, que instiga à violência e faz eclodir a
depressão a quem por aqui vive e por cá passa como transeunte. Com a nossa
arte, orientada pela artista plástica Tatiana Santos, que cria os desenhos,
procuramos inverter esta tendência de devastação e desalento psicológico. As
cidades são o que dela fazemos. Desde a Primavera que todos os dias estamos de porta-aberta
para quem quiser mostrar o seu talento. Não recebo nada do Estado. Faço tudo
isto por gosto. Mantenho-me ocupado e o facto de estar a criar eleva a minha
autoestima porque sei que estou a ser útil em alguma coisa. Com o meu exemplo
tento que outros me sigam. Felizmente que há sempre gente. Temos alturas de
estar aqui uma dezena de pessoas. Repare que todos materiais utilizados são coisas
velhas sem valor que teriam por destino o lixo. Nós estamos a dar-lhe uma nova
reutilização, uma nova forma, uma nova vida. Enquanto não mandarem tudo abaixo
neste corredor ladeado por prédios, vamos fazer aqui grandes coisas como, por
exemplo, uma horta suspensa; sapatos perdidos que encontramos por aí e vamos pendurá-los
naquela parede –e aponta. Você já viu
aqueles desenhos na Avenida Fernão de Magalhães, paralelo à Loja do Cidadão?
Venha daí comigo”.
E lá vou eu apreciar aqueles
quadrados geométricos pintados na parede e que, por verificação anterior,
pensava serem painéis de azulejo que sempre ali existiram. Conta-me Carlos, “não, não! Estes desenhos são uma criação
nossa tendo por princípio um vulgar mosaico. Estão lindos, não estão?”
Estão sim! Levei uma lição de vida
que não me vou esquecer tão cedo. Mesmo no meio da noite escura consegue-se
sempre vislumbrar a luz desde que estejamos de coração aberto. Muito obrigado,
Carlos Costa.
VIVA COIMBRA
Subitamente, numa manhã quase
outonal da semana passada, o Largo da Portagem acordou sem um dos taipais que
obstaculizava a panorâmica do hall de
entrada na cidade e de que aqui dei conta. Apenas se lá mantém um dos abortos. Como sempre, quando acontecem
destas coisas, ninguém viu nada, nem alguém ousa comentar. O único que viu com
certeza absoluta tudo o que se passou, num desrespeito por quem escreve –que
aliás, vindo de quem vem nem admira- entretido a tirar notas com o caderno e a
pena na mão, não liga aos meus apelos de procurar ser o mais objetivo
possível. Lá do alto do pedestal onde foi colocado, Joaquim António de Aguiar,
o “Mata-frades”, envolvido pela nuvem
em céu azul, nem se digna desviar o olhar da folha de apontamentos. Já nem
reclamei. Para quê? Se o fizesse estaria a perder tempo. Paciência! Até porque
sendo este personagem um lendário político, sem ofensa para quem o é, o que se
poderia esperar dele, se não o silêncio? Aliás, se falasse, está de ver que as
suas frases seriam titubeantes assim no género: “sim… talvez…nem por isso… ou antes pelo contrário!”
Em resumo, o que se deve extrair
é que, mesmo emendando a mão em ato de contrição, ficou bem a quem o fez. Errar
é humano. Quem nunca errou que atire o primeiro painel.
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