Nesta
Quarta-feira, 15 de Maio, com as temperaturas a rondarem os 30 graus
Celsius, o relógio marcava uns minutos depois das catorze. Em passo
apressado, envolvido em pensamentos, dirigia-me para a 2.ª
Repartição de Finanças, na Avenida Fernão de Magalhães. Na
Auto-Industrial, junto aos semáforos, fui despertado pela voz fina
do cauteleiro Valdemar que, com duas fracções de lotaria na mão,
apelava : “só restam estas duas. São mesmo as últimas!”
O
Valdemar Ribeiro Simões Martins, agora com 72 anos, invisual desde
tenra idade quando, devido à meningite, lhe foram retirados os
olhos, é uma figura típica da Baixa, normalmente com assento na
porta de entrada do Centro Comercial Sofia, na rua com o mesmo nome.
Volta e meia, sobretudo quando o encontro, adquiro-lhe uma
promissória da sorte.
Mais
uma vez dividido entre o calculismo da esperança de ganhar um prémio
e o ajudar a manter-se no ofício de cauteleiro, profissão em
desaparecimento e que só subsistirá se contribuirmos, sustive o
passo. Para lhe pagar os quatro euros da lotaria popular tinha uma
nota de dez euros e o icónico personagem da cidade não tinha trocos
para retribuir. Como já é habitual da sua parte, insistiu que
levasse comigo os números mesmo sem contra-pagamento. À minha
pergunta e se eu não voltar? Prontamente, respondeu: “eu
conheço-o! E sei que não me faria uma coisas dessas!”. Fui
beber um café, troquei a nota e, regressando para junto dele, deixei
todas as moedas.
Rompendo
por entre uma muralha de pessoas na entrada da administração
fiscal, retirando a senha correspondente ao meu assunto,
encaminhei-me para a secção, no primeiro-andar. No dia anterior já
estivera no mesmo local e foi-me dito pelo funcionário que precisava
de retirar da Internet um impresso referente ao assunto que lá me
levou e depois de preenchido era só entregar. Com imensa dificuldade
no preenchimento do modelo requerido, lá estava pronto para iniciar
o processo.
Chegou
a minha vez de ser atendido por volta das 15h00. Havia um problema:
faltava ainda um anexo, que não fora informado devidamente no dia
anterior. Pensando resolver desta vez tudo, passei ao rés-do-chão
para adquirir o dito anexo. Com cerca de quarenta contribuintes de
diferença entre o número em presença e a minha senha, dispus-me a
aguardar serenamente. Foi então que nas minhas costas comecei a
ouvir uns clamores de revolta: “já viram isto? Como é que,
sendo hoje o dia 15 e data de acerto de contas do IRS, estão a
mudar os computadores na hora de expediente?”.
Com
dois técnicos de informática a substituírem as máquinas, no
interior da repartição a desorientação por parte dos funcionários
era total. Se era certo que as reclamações do público assistente
eram uma espécie de ondas do mar, tanto se elevavam rapidamente como
logo a seguir se pagavam, a verdade é que o caos estava instalado.
Foi então que um proprietário de um estabelecimento próximo, com
um maço enorme de impressos acompanhados por cheque, foi ao balcão
e pediu explicações. Veio a chefe de secção e, tentando
contemporizar, com alguma bonança associada, lá foi dizendo que a
ordem de substituição viera de Lisboa e o homem lá acalmou.
A
porta principal da administração foi encerrada às 15h30 para poder
dar atendimento a todos os que esperavam.
Faltavam
dez minutos para as quatro horas – horário de encerramento – uma
funcionária interrogou se havia alguém para assuntos sem ser de
IRS. Levantei-me e referi que pretendia apenas um anexo2 para
concluir a minha diligência. Rapidamente tratou de a conseguir.
Havia um problema: a cópia custava 40 cêntimos e eu não tinha
moedas. Simpaticamente, disse: “não importa, vá lá acima e
veja se resolve o seu problema. Eu pago do meu bolso. Quando
puder, vem pagar-me, não se preocupe!”
Corri
para o andar cimeiro, faltavam ainda uns oito minutos para o fecho da
repartição. Com sorte, pensei para mim, a funcionária ajudava-me a
preencher a folha e eu terminava o meu fadário. Engano meu! Nem
pensar, argumentou a técnica! Não me ajudava a preencher o
formulário porque não podia. Tinha de ser eu a fazer a menção.
Que fosse à Internet, que lá se explicava tudo!
Furioso
que nem um cão raivoso, vim embora com o rabo entre pernas. Se é
certo que, como em todas profissões, nem todos os funcionários
públicos são iguais, o que está acontecer? Será uma questão de
humanismo em desaparecimento, ou é muito mais profundo?
Na
volta, reparei que o cauteleiro Valdemar já tinha partido. Em
reflexão, sendo ele info-excluído, sem ajuda, como será a sua relação com a Autoridade
Tributária?
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