O relógio da torre da Universidade, a cabra, tinha acabado de bater as onze
badaladas (23h00). O tempo, esse espaço virtual que divide o eventual em efeito
real, tinha escoado como um suspiro. No agradável espaço do Recordatário da Rainha Santa Isabel, aquelas
quase duas horas, a ouvir “histórias de vida” contadas na primeira pessoa, tinham passado a correr. O tema era,
relembro, “Coimbra e o Mundo –
Perspectivas em debate”. O excelente painel constituído por quatro eméritos
cidadãos de Coimbra, respectivamente, Américo Santos, Armando Braga da Cruz, Francisco
Andrade, Arnaldo Baptista e pelo anfitrião convidado para presidir à sessão
José Simão, foi um doce para os ouvidos dos presentes. A apresentação, muito bem desempenhada, esteve a cargo de Hélder Rodrigues e Isabel Garcia.
E foi anunciado o final da primeira parte com
a leitura de um poema de Pitty Tavarela, com o título “Estudante”. A seguir abriu-se o leque para perguntas e desabafos
intimistas, na mesma linha do ambiente nostálgico e romântico. Estava aberto o confessionário com acesso ao muro das lamentações.
Foi dada a palavra a uma senhora sentada no
canto direito. Como introdução, agradeceu a realização da tertúlia e a seguir
atirou a matar: “as nossas instituições
são quase impenetráveis para o cidadão”. Virando-se para Arnaldo Baptista, da
Praxis, rematou: “o empresário em Coimbra não é reconhecido nem acarinhado por
contribuir para o desenvolvimento da cidade.
A Estação Velha é para mim um frenesim. Está melhor. O cidadão de
Coimbra tem ideias megalómanas. Não tem de ter a Estação do Oriente (Lisboa),
tem é de estar limpa. A Hidráulica
(Agência Portuguesa do Ambiente) é um
problema –referindo os muros em mau estado que marginalizam o Mondego. O encerramento da linha da Lousã foi um
roubo aos cidadãos”. E continuou na plangência, “para refazer um muro que já existia tive de entregar 40
requerimentos. Quando me pediram o 41º desisti. Coloquei uns taipais e uns arames.
Tenho reclamado para os Monumentos Nacionais sobre o estado decadente
da porta da Igreja de Santa Cruz. Há tempos fui lá. Estive imenso tempo para
ser recebida. Quando veio o arquitecto, depois de lhe apresentar o problema,
disse que não se podia fazer nada porque era um Monumento Nacional. Ofereci-me
para colocar óleo a minhas expensas. Não senhor! Não podia, disse. As
instituições não ouvem nem servem o cidadão.”
Porque conhecia o problema do muro particular, pegou na
palavra José Simão. “Quero falar da
freguesia de Santa Clara!”, impôs a frio. “Nós temos cá um habitante muito
antigo, com cerca de 1800 anos. Foi descoberto nos Alqueves por Santos Rocha,
em finais do Século XIX. O Convento de São Francisco foi uma batota do Governo.
Foram lá descobertas trezentas e tal ossadas. Não sei onde páram. Até hoje não
me deram explicações. Há coisas que acontecem em Santa Clara! Agora está melhor
porque a cidade já não pode crescer mais em altura e então só pode crescer para
as margens. O quartel tem sido vandalizado. Não tem um único fio de cobre.
Roubaram tudo!”
Atrás de mim, outra senhora estava ansiosa
para exaurir e limpar a alma. “Sobre o fado,
em vez de ser apresentada a canção de Coimbra na Casa da Escrita, numa sessão
em que estive, foi apresentado o fado de Lisboa.
Tenho um prédio na calçada dos Gatos. Contíguo ao meu edifício, tem andado lá a decorrer uma obra.
Tinha andaimes. Era uma obra ilegal. Eu avisei para terem cuidado. O homenzinho
respondeu: “nós temos de morrer!”. Ontem caiu e não se sabe como está. Os
andaimes, depois do homem ter caído, desapareceram logo. Isto é tudo assim!”
A seguir falou um ex-funcionário da desaparecida
Poceram –fábrica de Cerâmica de Coimbra, liquidada por insolvência em 2010 com
150 empregados para o desemprego. “Na
década de 1990, a certa altura era preciso fazer remodelações na casa. Já havia
quatro milhões cabimentados em subsídios a fundo perdido. As autoridades locais
não deram andamento. Foi para a Figueira da Foz. O Santana Lopes fez tudo num
mês, e uma parte da fábrica foi para lá.”
Outra senhora, agora do lado esquerdo, pediu a
palavra. “O que é que o nosso poder local
fez?” –interrogou. E prosseguiu, “não
vamos para lado nenhum. Continuamos abandonados. Como é que os políticos estão
a desenvolver a cidade? Nós, a zona de Santa Clara, somos Marrocos. Já cá estou
há meio-século. Coimbra é mesquinha, pequenina, porque os políticos assim o
querem. Porque é que temos uma cidade envelhecida? Porque é que os jovens
passam cá e não ficam?”
Um homem em frente a mim disse: “a Universidade, o Hospital e a Câmara Municipal são os pilares do
emprego em Coimbra!”. E continuou, “De que modo é que isto ajuda os empresários? Pelo condicionamento (do
elevado peso do emprego público na cidade),
talvez esteja aqui a razão de Coimbra não progredir.”
Vitor Costa, artista plástico e ex-presidente
da Junta de Freguesia de Almalaguês, pediu para explanar. Virando-se para Braga da Cruz, questionou: “já se falou que os projectos aqui nascem, não se desenvolvem, e
florescem noutras cidades. Que proposta tem a comunicação Social?”
UM PERGUNTA DESESTABILIZADORA
Estava no final e tudo a correr tão bem -como
quem diz na paz dos anjos. Não sei se Deus estaria a tomar notas no seu imenso
caderno social onde apontará as frustrações e as vaidades do mundo. O que sei é
que eu, sentado na minha cadeira de espectador, enquanto escrevia, numa espécie
de balanço existencial entre o ser e
o parecer, estava dividido entre o ir
embora na concórdia do Senhor e não dizer nada sobre o que estava a assistir -já repetidamente visto vezes de mais- e plasmar o que pensava. Se partisse sem
um pio, não voltaria a mais nenhuma tertúlia igual, pelo tédio causado pela falta de consequência prática, mas
ficava bem visto –já que conhecia a maioria dos presentes. Se falasse –porque já
estou acostumado a ser assim- todos voltariam os olhos para mim e, numa unânime condenação intelectual, pensariam: “o que quer este gajo? Só veio cá para desestabilizar!”
E pumba! Como se lançasse uma
granada na encantadora sala protegida pela santa, atirei o mote e a pergunta: o tema da tertúlia é: “Coimbra e o Mundo – Perspectivas em debate” –de que modo é que o que se passou hoje
aqui sai para o conhecimento de Coimbra?
Numa primeira fase, notei o
incómodo mas aguentei. Numa segunda, em raciocínio lógico, pareceu-me que
perceberam e acomodei-me melhor no assento. De pouco vale contar bonitas
histórias e lamentos carpidos dos munícipes se circularem em circuito fechado.
O resultado é, como diria José Gil: a não-inscrição.
Se não chegar aos receptores visados não existe. A ser assim, será sempre uma acção sem qualquer
prestabilidade. Não passará de uma conversa de café. Tenho notado isto mesmo nos últimos tempos em Coimbra. Deste
problema gravíssimo, da irresponsabilidade da comunicação social na vida comunitária, ao não dar ênfase aos
eventos decorridos na cidade, falarei em outro texto.
Vá lá! Saí inteiro do Recordatário. Não sei se por todos os
presentes serem da minha faixa etária se por obra e graça da Rainha Santa Isabel.
1 comentário:
Amigo Quintãs obrigado pela intervenção, pelo agitar das águas, pela racionalização e frieza.
Também subscrevo a sua perspetiva, é preciso que das tertúlias as questões e as preocupações as ideias e as proposta, saiam das salas e dos seus participantes cheguem à urbe.
A cidade, os outros e a autarquia, precisam delas ter conhecimento.
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