sábado, 1 de maio de 2021

HOJE É O DIA DA (NOSSA) MÃE

Hoje comemora-se o Dia da Mãe. Normalmente desvalorizo estas datas em jeito de efemérides póstumas. Bem no fundo, até entendo a intenção. Numa sociedade que nem tempo tem para pensar, é lógico, só mesmo com bandeiras existenciais, a chamar a atenção para tudo e mais alguma coisa, se consegue obter algum resultado prático. Mesmo assim, dando uma relativa importância à data comemorativa, dei por mim a recordar a minha saudosa mãe, falecida há cerca de uma dezena de anos. Escrever sobre ela, a mulher que me deu a vida, parece fácil mas não é. Sobretudo quando a memória, aturdida e ofuscada por teias, parece querer trazer ao cimo as passagens negativas mais marcantes e deixar lá no fundo as coisas boas. Para fugir a um destino marcado, que, a concretizar-se, me atrofiava, quase obrigado, abalei muito cedo da aldeia, ainda criança, e fui trabalhar para a grande cidade. Se somos o resultado de toda uma vida, baseada em momentos de alegria e outros de sofrimento, a verdade é que me custou muito a ultrapassar esse corte abrupto e traumático. Nas primeiras décadas subsequentes, dei em atribuir a culpa à minha progenitora – talvez Freud explicasse melhor, mas era como se a culpasse inteiramente de na altura devida não tivesse intervindo em minha defesa junto do meu pai e me deixasse partir desamparado. Certamente por associação ao meio em que fui criado, e em projecção existencial, sempre que visitava a povoação, sem o poder evitar, era invadido por um sentimento enorme de tristeza. Era como se o contacto com o lugar me trouxesse à memória um tempo de miséria que não queria recordar. À medida que fui envelhecendo, esta comoção, progressivamente, foi desaparecendo e foi dando lugar a uma imagem idílica marcante. E ainda hoje é assim. Nos últimos tempos de vida, já bastante combalida, sempre que me via, aquando de visita, no alto dos seus cerca de oitenta anos, a minha mãe levantava os braços em concha, agarrava-se ao meu pescoço, quase sem descolar, e dava-me beijinhos sem conta. Os seus murmúrios, quase ininteligíveis, eram repetidos até à exaustão: “meu filho… meu filho… meu querido filho!” Foram estas palavras de amor que me ajudaram a ultrapassar o lado menos bom da minha infância. Nos primeiros anos de vida não tinha memória de carinhos da minha geradora. E foi a manifestação de amor, embora tardia, que me ajudou a encontrar-me e a perdoar – se é que havia mesmo alguma coisa para absolver. É nestas alturas, num quadro de tanta ternura, que a carapaça, a minha armadura de todos os dias, cai. Tenho de fazer um esforço hercúleo para não chorar. É ali, naquela expressão sentida de “madona”, que sempre ligará uma mãe a um filho, que sinto que sempre fui profundamente injusto com os meus pais. Mas, em boa verdade, pouco posso fazer. Nem sempre reagimos todos da mesma forma perante uma situação igual. Até à morte, somos sempre o resultado de uma experiência de vida diária. Se por um lado, este saber empírico adquirido, mau ou bom, nos vai aperfeiçoando, tornando-nos melhores ou piores, consoante o cruzamento que nos aparece à frente e a estrada que encetamos, é sem dúvida a primeira dezena de anos que nos marcará para sempre. São estes primeiros anos de vida que constituirão a nossa identidade, intrinsecamente. Pouco importa que as restantes décadas sejam o oposto do início da nossa existência. Em estrutura mental, seremos sempre o produto desses primeiros anos, e no futuro, por muito que o evitemos, seremos sempre a consequência da nossa infância. E eu não tive uma meninice feliz. Não tive muito amor dos meus pais quando mais precisava dele. Pela vida miserável e difícil desse tempo, certamente preocupados apenas em conseguir que não passássemos fome, esqueceram-se de nos amar, a mim e à minha irmã. Como hoje, Dia da Mãe, perante um gotejar sôfrego de saudade, a sensibilidade e a fragilidade, numa mistura de emoções, tocam no mais profundo do meu ser. Imagino a minha mãe agarrada a mim. Cheiro o seu odor campesino que já há muito esqueci. A sua pele nunca conheceu um perfume e muito menos um desodorizante. Foi sempre aquela fragrância a lavoura que a acompanhou nas lides da terra. Relembro o seu rosto, quase agarrado ao meu, revivo aqueles sulcos profundos e multiplicados na sua pele, como se fossem lavrados pelo arado do tempo. Os seus cabelos brancos, cor de prata, caídos, meio desgrenhados pelos ombros, lembram-me a outrora forte cabeleira preta e a inevitável transformação física que sofremos. Feliz dia para todas as mães que ainda nos fazem companhia. Para as que já partiram, em evocação, uma lágrima de saudade.

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