“Hoje,
com a globalização e pela agressiva manipulação
das
necessidades pelas redes sociais, o consumidor,
ainda
que fragmentado em massa abstrata, é a
máquina
insaciável que, em busca de novidade
e
de festa, num canibalismo sem precedentes,
tritura
tudo à sua volta.”
A
semana passada, mais propriamente na quarta-feira, o Diário as
Beiras anunciava “IKEA
pode trocar Coimbra pela Figueira da Foz”,
ou seja, que preterindo Coimbra, a administração da multinacional
sueca poderia escolher a praia da claridade para se instalar. Embora
dois dias depois, na sexta-feira, o jornal viesse desmentir a sua
própria notícia -”IKEA não abre nem em Coimbra nem na Figueira”-
a querela disparou nas redes sociais com acusações directas para a
Câmara Municipal e para os comerciantes da Baixa de Coimbra.
Antes
de prosseguir, gostaria de deixar uma ressalva: embora seja parte
interessada -já que exerço uma actividade comercial na Baixa-, vou
analisar esta questão com objectividade, independência, justiça,
seriedade e, sem parecer fazer de advogado seja de quem for, tentar
construir uma crónica que sirva para reflectir sobre um assunto que,
a cada dia que passa, se torna mais urgente debater em profundidade.
Antes
de explorar de per si
as queixas que cada utilizador, em agremiação e individual,
endereça ao grupo profissional do comércio e à entidade municipal,
creio, vale a pena especular sobre o que escreveram e o que os motiva
a despejarem, com elevado grau de azedume, toda a sua frustração e
culparem por inteiro, por um lado, os comerciantes do estado
calamitoso desta parte baixa da cidade, por outro, o município por
incapacidade de conseguir fixar em Coimbra a marca da cadeia de
móveis descartáveis.
Comecemos por ler os comentários:
”O
IKEA, farto de esperar, olha com interesse para a Figueira da Foz.
Aqui instalam-se Cidadunzas e sonha-se com aeroportos internacionais”
”Mais
uma vez, Coimbra a ser posta de lado pelos seus desgovernantes
locais.
Perante
isto, só resta ao vetusto Presidente do Município de Coimbra e
Presidente da Associação Nacional de Municípios, um caminho que é
a demissão! Chega de atrofio e sufoco camarário e das desgraças do
PSD, CDS, PS e CDU, em Coimbra!”
“Enquanto
isso os que realmente querem comprar moveis no IKEA vão deixar o
dinheiro a outras cidades. Enquanto acharmos que é preciso ajudar o
comercio local, quando nem ele se ajuda a si próprio, Coimbra
continuará na cepa torta com com níveis elevados de desemprego.
Sim, porque não são as lojas do comercio da baixa que vão dar
emprego a tanta gente. Eu vou continuar a ir a Matosinhos
comprar no IKEA, já que
por aqui não encontro nada do género”
“Confesso
que esta lengalenga do comercio tradicional já começa a cansar.
Caramba, acordem! Ponham os olhos noutras cidades, e deixem de estar
à mingua das ajudas destes e daqueles e a achar que todo o mundo
está contra o comércio tradicional. E para que conste faço compras
no comércio tradicional e vou ao mercado.”
“Não
podemos ter aqui nada, porque com o já se viu, dá cabo do comércio
local. Enfim!”
“Coimbra
deve criar infraestruturas para atrair grandes clientes. Essas
empresas vão criar riqueza postos de trabalho, baixar o desemprego. É urgente uma mudança de política que faça as empresas escolherem
Coimbra”
“A
estreiteza de vistas dos comerciantes de Coimbra impressiona-me
sempre e não tenho dúvidas que a par da Câmara são responsáveis
pela decadência em que esta está cada vez mais a cair.”
“Enquanto
o disco tocar assim dificilmente deixamos de ser uma aldeia em ponto
grande!”
“Os comerciantes de
Coimbra (fechados no seu espírito empresarial da década de 60) lá
terão de continuar a ver os consumidores a irem a Loures ou
Matosinhos.”
“É
mesmo isso. Coimbra parou no tempo e os comerciantes também. Eu
também vou continuar a ir a Matosinhos já que em Coimbra o que há
neste campo é fraco ou não existe mesmo.”
“O que mudou foi a
sociedade, hoje a minha filha com poucos cliques compra coisas de
qualquer parte do mundo em meia dúzia de segundos, a com a rede de
transportes que Portugal hoje tem para a maior do País, em menos de
duas horas colocamo-nos a partir de Coimbra em qualquer dos outros
grande centros urbanos. Por isso não querer algo aqui porque vai
prejudicar o comércio local é uma enorme falácia, eu e muita gente
não deixa de comprar coisas no Ikea porque não há em Coimbra.
(…)
Goste ao não goste, os comerciantes da baixa se nos querem lá,
terão que nos tratar bem, ter variedade, qualidade e horários
flexíveis por que se não vamos a outro lado, oferta é que não
falta aqui em volta de Coimbra. (…) Pela idade que tem já devia
saber que o problemas dos comerciantes não dizem nada aos clientes,
eles querem é ser bem atendidos (…)”
O
RESSENTIMENTO E A POLÍTICA PARTIDÁRIA
Não
é preciso ser licenciado em sociologia para verificar que nestes
comentários estão envenenados por dois factores: o político
partidário, endereçado à Câmara Municipal, e o
ressentimento, no concernente aos profissionais de comércio.
Se o primeiro até se compreende relativamente bem, já que o homem,
socialmente, é um bicho político e a ideologia misturada com
partidarismo ofusca-lhe completamente o discernimento, já o segundo,
o sentimento despeitado contra os profissionais de comércio, custa a
entender. Mas, com esforço, até se chega a perceber. Claro que,
para se alcançar, é preciso especular sobre o que está por trás
deste comportamento:
Historicamente,
com maior intensidade a partir das teorias marxistas no terceiro
quartel do século XIX, o comerciante foi sempre visto pela
comunidade, sobretudo pelo comprador, como um rentista (que vive de
rendas), um explorador, um parasita social que se alimenta da
mais-valia, excedente das receitas sobre as despesas. O
respeito foi sempre “imposto” pela sua posição validada
pelo sucesso capitalista que, pela oferta de emprego, concessão de
empréstimos a juros, contribuição choruda para partidos em
campanhas eleitorais, sempre estabeleceu uma certa subserviência
quer do cidadão comum, quer do poder instituído pelo sistema.
Atente-se que, a atestar esta
tese de venerar por obrigação em relação directa com o estatuto,
estão os recentes desaparecimentos do nosso mundo de grandes
empresários com Belmiro de Azevedo e Américo Amorim e outros que,
nas exéquias, tiveram homenagem e quase honras de Estado. É verdade ou
não que o leitmotiv, o motivo condutor, que une todos os
empresários, grandes, médios, pequenos e pequeníssimos, é o
mesmo? Sabemos que o lucro é o horizonte-comum que os liga. Ora, por
conseguinte, porque razão são uns idolatrados, os grandes, e
outros, os pequenos, são renegados? Será somente o sucesso a razão
directa para a vassalagem? É óbvio que sim! Penso que fica também
claro o desprezo para os “varridos”, aqueles que insolventes
partiram sem nada, e o notório ressabiamento para com os
resistentes, os que, num anonimato que veio para ficar, com enormes
dificuldades se arrastam pelas vilas e cidades do presente.
Contrariando
outros tempos, em que as lojas eram o motor de revitalização dos
lugares habitados e o consumidor, o cliente, era o combustível que
fazia funcionar a máquina, nos nossos dias e desde há cerca de duas
décadas, inverteu-se o conceito. Hoje, com a globalização e pela
agressiva manipulação das necessidades pelas redes sociais, o
consumidor, ainda que fragmentado em massa abstrata, é a máquina
insaciável que, em busca de novidade e de festa, num canibalismo sem
precedentes, tritura tudo à sua volta. Sem consciência social, esta
molhe humana está a marimbar-se para a desertificação do interior
do país ou dos centros históricos das cidades -cuja essência de
causa é a mesma- e busca apenas o seu interesse narcisista. Dêem-lhe
festa de romaria, inovação e preços ao desbarato e tudo está
conforme as escrituras da nova doutrina consumista. Quer por parte de
instituições político-partidárias, quer por parte de desabafos
que por vezes se ouvem, ninguém acredite em lamúrias derramadas em
lágrimas de crocodilo sobre o esvaziamento da Baixa de Coimbra,
assim do género: “ai que pena isto estar assim! Está tudo
fechado!?! Quem viu esta zona e a vê agora! Gosto tanto da Baixa!”
Aos
olhos de muitos, talvez a maioria, que se esqueceram da sua origem
humilde e da memória dos seus ancestrais que trabalharam no
comércio, aqueles que por cá continuam, passando o exagero da
frase, são “feios, porcos e maus”!
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