Algumas
vezes isolados, sem nada que o faça prever,
como
autómatos, fazendo lembrar bonecos de corda,
viram-se devagar para trás
e, dando uma volta sobre
si
mesmo, começam a falar sozinhos:
“Ai! O que aconteceu
aqui? Está tudo fechado!
É
uma vergonha! Quem viu esta rua antigamente...
Não
pode ser! Foi o que fizeram os centros comerciais...
É
a Câmara que temos!”
Na
Rua Eduardo Coelho, nos últimos dias encerraram duas lojas e uma
terceira, sem haver interrupção na actividade comercial, mudou de
dona. Na entrada da antiga via dos sapateiros, junto à do Corvo, no
espaço de vinte metros até à cortada para a Rua das Padeiras, há
seis lojas encerradas. Então, para os mais atentos, assiste-se
diariamente a um quadro socio-comportamental digno de registo. Os
passantes, já com idade acentuada, entram na artéria, olhando à
sua volta percorrem os primeiros dez metros, e estacam em frente ao
Largo da Freiria. Algumas vezes isolados, sem nada que o faça
prever, como autómatos, fazendo lembrar bonecos de corda, viram-se
devagar para trás e, dando uma volta sobre si mesmo, começam a
falar sozinhos: “Ai! O que aconteceu aqui? Está tudo
fechado! É uma vergonha! Quem viu esta rua antigamente... Não pode
ser! Foi o que fizeram os centros comerciais... É a Câmara que
temos!” E, retomando o passo entretanto interrompido, vão
à sua vida. Esta manifestação dos transeuntes é repetida ao longo
do dia.
E
poderíamos perfeitamente terminar a crónica por aqui. Mas não, sem
pretender fornecer respostas objectivas, vamos tentar analisar esta
conduta individual. O que levará as pessoas a agir assim? Complexo
de culpa? Necessidade de apontar um culpado para a degradação
comercial e paisagística? Catarse, evacuação das coisas ruins,
purificação da alma por meio de uma descarga emocional provocada
por um choque?
A
Baixa da cidade, sobretudo para os citadinos que ultrapassaram o
meio-século, esteve sempre presente na sua vivência, era uma
espécie de projecção espiritual.
A
Baixa até ao virar do milénio foi sempre o coração da cidade, era
aqui que se sentia o pulsar da vida comercial, prestação de
serviços e habitacional. Com a descentralização da urbe, pelo seu
alargamento, o comércio e os serviços, privados e públicos, foram
sendo transferidos para outras partes. Por seu lado, a habitação, pelos seus prédios centenários, sempre foi muito ineficaz na
falta de conforto -essencialmente devido a rendas antigas de baixo
valor que contribuíram para o gradual empobrecimento dos senhorios-
e não se foi renovando. Em muitos casos, à medida que os seus
habitantes iam morrendo, os locados iam ficando vazios por falta de
dinheiro dos proprietários para realizarem obras. Hoje, não se sabe
exactamente quantos prédios se encontram esvaziados e abandonados
-creio, muitas vezes até desconhecendo a quem pertencem. Retirando o
alojamento local com pessoas em trânsito e alguns estudantes, a
maioria de residentes, muitos a viverem sós, será de um escalão
etário elevado, tornando-os dependentes da assistência aos idosos.
Por sua vez, as políticas para o centro histórico nos últimos
vinte anos foram desastrosas. Basta lembrar o projecto do Metro
Ligeiro de Superfície, com as suas ameaças de expropriação no
canal entre a Rua da Sofia e o Largo das Olarias, que fez encerrar
muitos negócios e expulsou várias dezenas, senão centenas, de
nascidos e criados na zona para a periferia da cidade. Por seu lado,
à medida que a actividade económica ia enfraquecendo, passando de
milhares de trabalhadores assalariados para escassas centenas
divididas acima de tudo entre o auto-emprego precário,
proporcionalmente, todos os ramos de oferta iam enfraquecendo e, em
consequência, tornando as ruas mais vazias. Não fora a
classificação de Património Mundial pela UNESCO e o cenário ainda
seria muito pior.
É
normal falar hoje com conimbricenses que moram, por exemplo, na Solum
e já não vêm à Baixa há mais de um ano. E não vêm porquê?
Porque não têm necessidade. Na sua área de conforto residencial,
desde comércio a pequenos serviços, existe tudo. E mais: não se
preocupam com o custo de estacionamento. A meu ver, nos dias que
correm, o pagamento de estacionamento transformou-se numa forte
obstrução psicológica para que as pessoas venham à Baixa. Para
desconstruir este preconceito em forma de estigma, nem que fosse temporariamente, por
exemplo, era preciso que a edilidade anunciasse que o estacionamento
público só seria onerado até até às 14h00. O resto do dia seria
gratuito em todos locais destinados a automóveis, parques, praças e
ruas. O que deixaria de ser cobrado, tendo em atenção o valor
maior, que é a recuperação da Baixa, não valeria o esforço?
Então,
pelas razões apontadas, sem pretender dar cabal explicação, dá
para compreender os desabafos e clamores que as pessoas manifestam
perante as muitas lojas encerradas e ruas vazias.
Vale
a pena pensar nisto?
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