quinta-feira, 24 de novembro de 2016

UM NOVO OLHAR SOBRE A PROBLEMÁTICA DO SEM-ABRIGO: PRECISA-SE






1 -Tendo em conta que, com mais ou menos pobres, ao longo da história universal sempre existiram desigualdades, se quiséssemos ser parciais na análise sociológica diríamos que a Revolução Industrial, século XVIII/XIX, com o nascimento da técnica associada à indústria, foi a “fábrica” que criou o moderno sem-abrigo. Até aí com a mão-de-obra indiferenciada, sobretudo com a criação da produção em série, e a linha de montagem associando o salário à alta eficiência, em finais de XIX e começos de XX, se, por um lado, foi criado um operário especializado apenas numa fase parcelar do produto e os custos de produção, incluindo o soldo de fome, baixaram substancialmente para cerca de metade, por outro, esta convulsão social, numa espécie de triagem aceite comunitariamente, seleccionando os mais ágeis, passou a gerar, como nunca, os chamados inadaptados do sistema -os excedentes de um processo que não tem contemplação pelos assistémicos, aqueles que ou não detêm capacidades ou recusam entrar na formatação da regulação social. Embora a pobreza já fosse reconhecida e mais notada com o desenvolvimento dos centros urbanos em finais da Idade Média, século XV, a verdade é que a Revolução Industrial, presumivelmente, teria gerado, acima de tudo nos primórdios do século passado, grandes camadas de desnutridos e miseráveis sem qualquer apoio social.
Sem grandes tiradas históricas, mas para melhor se compreender, poderíamos dizer que o marxismo, pensado por Marx por volta de 1850 -que defendia que a mudança social só era possível em corte horizontal, com uma revolução- visava, por um lado, combater o Liberalismo revolucionário eclodido na Revolução Francesa, em 1789, mas também, por outro, defender os abusos da dominante classe industrial progressivamente a aumentar na nova sociedade mecanizada. Em face da radicalização de Marx, foi assim também que, para combater a ortodoxia marxista, nasceu a Social Democracia -embora sendo de esquerda, este conceito preconizava que, através do reformismo, era possível a transição para o Socialismo gradualmente, tornando a sociedade mais igualitária, sem golpes transversais. É assim, depois da Primeira Grande Guerra, 1914-1918, e a crise de 1929, que esta linhagem ideológica se apercebe da indispensabilidade de ser criado o Estado de bem-estar Social para proteger e defender a população de grandes cataclismos naturais, sociais, e económicos garantindo o mínimo de dignidade social, desde o nascimento até à sua morte. Com o sucesso da Social-Democracia nos países do Norte da Europa logo a seguir ao final da 2ª Guerra Mundial, após a queda dos regimes ditatoriais e autoritários, os países do Sul, incluindo Portugal, por alturas de 1970, adoptando a Democracia e transformando-se em estados de Direito, aplicaram a mesma fórmula de Estados Providência dos países nórdicos.  Porém, com enormes diferenças. Lá, nas nações escandinavas, retirando os pilares estruturantes como educação, saúde e justiça, só é distribuído pelo Estado o que cada um, proporcionalmente, contribui ao longo da sua vida. No Sul da Europa, mais propriamente em Portugal, fez-se o contrário. Num igualitarismo exacerbado, entendeu-se que, pelo simples facto de ser cidadão, qualquer um tinha direito a receber, mesmo sem contra-prestação. Para piorar, os directores-gerais, outros e políticos de carreira, com as suas subvenções e reformas milionárias e outras benesses, apelando para si e para as suas famílias, para além de erros crassos na administração, hipotecando o futuro da Segurança Social e elevando até ao infinito a dívida pública, fizeram com que, em consequência, o que resta hoje da matriz social-democrata seja um esqueleto.
No final da década de 1960 a Revolução Digital começa a dar os primeiros passos e, de certa maneira, a destruir o que, mesmo com erros de percurso, começava a a ser um bom plano para a dignificação da humanidade. Com avanço da transformação, de sociedade maquinal para informática, constata-se que, em comparação com a Revolução Industrial, esta mudança, sendo demolidora do emprego, procria novos disfuncionais como nunca se vira até aqui.
Os governos nacionais europeus, envolvidos numa filosofia de esquerda, tendo noção que têm responsabilidade no envio de activos para o desemprego desagregador, e consequentemente pobreza, e são compartes na discriminação, tornam-se paternalistas por decreto -é assim que, por cá, os socialistas António Guterres, em 1995, implementou o Rendimento Garantido e José Sócrates o Complemento Social para Idosos.

2- Se, sem dúvida, se verifica que estas medidas governamentais foram almofadas que atenuaram a queda, que sem elas teria sido catastrófico para a população portuguesa, é também verdade que foram somente prerrogativas políticas. Ou seja, não sendo o antibiótico para expurgar a doença, estas providências foram simplesmente analgésicos para atenuar a dor. Isto é, a mostrar o resultado, facilmente se apreende que, quando no século passado, sem subsídios de inserção, a sociedade se dividia em três classes, Rica, Média e Pobre, actualmente, com imensos apoios sociais, é divisível pelo radicalismo de dois polos: muitos mais ricos e muitos mais pobres. Portanto, sem estrutura social mediadora, desapareceu a Classe Média.
Por outro prisma, os excedentários sem integração para o trabalho são cada vez em maior número. A consequência directa é, referindo a Baixa de Coimbra, constatar um aparente aumento de sem-abrigo a vaguear durante o dia, como autómatos e sem nada fazer, pelas ruas e dormir, à noite, em entradas de portas e prédios devolutos. A situação entrou de tal modo na visão costumeira do citadino que já nem liga.
Qual é a resposta do Estado para esta calamidade? É subsidiar IPSS, Instituições Particulares de Solidariedade Social, para, distribuindo gratuitamente alimentos, roupas, agasalhos para o frio e tentando fazer o acompanhamento personalizado do sem-tecto. É assim que, diariamente, num espectáculo discriminador, decadente e depressivo, se assiste junto à Loja do Cidadão a filas intermináveis de pessoas à espera de um pão. Não quero ser injusto, já o escrevi aqui, o problema não é de substância mas de forma. Quero dizer que, linearmente, pela substância, não se pode estar contra a ajuda prestada aos desabrigados da sorte. A forma está errada -tem de estar pelos resultados obtidos nos últimos vinte anos. Não se pode continuar a dar sem exigir algo em troca. Se persistirmos neste caminho, para além de estar a alimentar a depravação da ordem moral, estamos a contribuir para a não integração de muitas pessoas válidas, com muito saber, cujo destino é o alcoolismo e a toxico-dependência.
Vendo o problema pela solução, de cima para baixo, sem mais nem menos, também não se pode exigir o cumprimento imediato de regras a pessoas cujo modo de vida é, há muito tempo, o desapego à disciplina. Exigindo devagarinho, é preciso dar-lhes tempo para a ressocialização.

3 – Sendo justo, em caso de denúncia localizada, não se pode afirmar que as autoridades responsáveis não actuem. Pode até não ser no imediato, mas a resposta surge logo que possível. Então, o que fazem os técnicos de serviço social ligados à autarquia ou a outras associações? Com muita calma e gentileza, convencem o desprovido da sorte, normalmente já muito doente e num estado decrépito, a ser internado para se tratar. Depois de muito tempo desperdiçado, porque não é fácil lidar com estas pessoas, transportam o necessitado para o hospital. Quem denuncia bate palmas à acção e fica em paz com a sua consciência. Passados uns dias, normalmente pouco mais de um mês, no mesmo banco da praça, no mesmo sítio da cidade, aquele que foi aconselhado a ser internado, lá está com roupa lavada e, de aspecto, sãozinho como um pêro. E, até se repetir o procedimento -veja-se aqui o caso do Cadaxo, que aparece na foto em cima tirada hoje-, lá vai continuar, porque lá, naquele banco, naquela esquina, como atracção fatal, estão as suas raízes comunitárias. Aqui é o seu pequeno universo triste de sozinho e alegre por ver os transeuntes passarem. Ali está tudo quanto aquele indivíduo detém.
Portanto, vê-se bem que, mais uma vez, se estão a desperdiçar recursos: em vez do antibiótico dá-se uma aspirina. Excepto o sem-abrigo, que fica na mesma, desde o denunciante (estou a incluir-me) aos serviços, ficam todos bem na fotografia. Na totalidade, todos concorremos para um Estado Social Falhado.

O QUE FAZER?

Há cerca de três anos falei com um jovem ligado a estas questões de tasfega societário. De nome Daniel Simões, mestre em psicologia comunitária, apresentou-me um plano que poderia dar resposta a todas as formulações apresentadas. Segundo o Daniel, há uns anos, numa conferência em Lisboa, apresentou o projecto e foi muito bem recebido. Porém não lhe deram provimento -imagino que iria tocar em muitos interesses instalados e, naturalmente, não dá jeito a muita gente que vive disto. Vale mais continuar tudo igual, alimentando um sistema viciado, e o Estado continuar a gastar rios de dinheiro para nada.
Então, em que consistia o seu plano? (como já passou algum tempo, admito falhar em alguns pormenores)

O PROJECTO DOS TRÊS PASSOS

É necessário um espaço razoável, de dimensões médias. Seria constituído por três salas -daí chamar-se três passos- umas a seguir a outras. Poderia ser, ou não, gerido por entidades ligadas à problemática dos desenraizados.

Esta sala primeira, de paredes completamente brancas ou até com pinturas em grafite, teria apenas plantas e sem qualquer móvel de madeira. No limite teria um banco de pedra para colocar alimentos em cima e que seriam tomados pela mão de cada um e em pé. O vazio, com ruídos sonoros a imitar a rua, seria o tangível. No caso de ser inverno, o frio seria um elemento natural e objectivado. Deve haver um ou mais técnicos de Serviço Social.
(Em vez de, tal como agora se faz em que são as instituições a ir ao encontro do sem-abrigo e a dar sem nada pedir) Aqui é o necessitado que vai procurar ajuda, que pode ser simplesmente alimentação. Entra, dirige-se ao técnico, que sem grande regulamentação lhe pergunta o nome próprio, e diz ao que vai. Imaginemos que quer comer. O responsável diz: "antes de concretizar o seu desejo, temos uma regra, apenas uma: tomar banho. Toma primeiro duche, damos-lhe uma roupa lavada, e em seguida vem comer."

É possível que este comportamento se repita durante algum tempo. Cabe ao técnico, através de apreciação e persuasão, convidar este utente a passar à segunda sala -que apenas ocupará quando estiver capaz e depois de percorrer a primeira.

A segunda sala de paredes pintadas com cores suaves, embora simples, já tem um ou outro móvel em madeira. Há uma grande mesa onde, juntamente com outros, se come sentado. Esta sala está aquecida. Ouve-se uma música suave de fundo e uma televisão transmite imagens sem som. Continua-se a empregar a mesma regra obrigacional de só comer depois de tomar banho e vestir roupa lavada.

(Mais uma vez cabe ao técnico aferir a possibilidade do utente já estar mais adaptado e passar à terceira sala)

A terceira sala também com aquecimento, com sofás de cores vivas e vários móveis, tem as paredes pintadas de cores berrantes. Uma estante, com muitos livros, preenche uma parede e está à disposição do utente. Um LCD transmite imagens e sons para quem se acomodar neste compartimento. Para frequentar esta sala é obrigatório fazer formação profissional e frequentar aulas de integração social.

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