(Foto de Aguinalda Simões Amaro)
É
Novembro. Pelo manto cinzento esbatido de pouca luz solar filtrada
pelas nuvens de algodão que nos cobrem nas alturas, com as folhas a
atapetarem o chão, o Outono impõe a sua carga poética. A cidade,
como máquina que rodopia em torno de si mesma numa lenta modorra, num
conflito permanente e inevitável entre o passado que se impõe, o
presente que não satisfaz e um futuro pouco auspicioso mas certo, numa
discussão sem acordo, cumpre a sua história. Seja pela época ou
não, a verdade é que as ruas estreitas da Baixa, como rio cujo
leito foi desviado a montante, estão vazias de gente. Nos poucos
transeuntes que passam a calcarem a calçada, na sua maioria, são
velhos carregados com o peso da sua existência, que já viveram mais
de dois terços, e que agora, no epílogo da sumida vitalidade, como
passarinhos em busca de um galho, procuram somente alguém que lhes
dê atenção e os escute atentamente. São passageiros do quotidiano
prontos a debitarem retalhos de uma vida, aos seus olhos, cheia.
Sem
resposta perscrutável, muitas vezes se pergunta para onde foram as
pessoas que antigamente se acotovelavam e emolduravam nas principais
artérias. Como pincelada que se estendeu e cobriu o céu, a
formatação tornou tudo igual. Desde a cor dos edifícios, às
montras dos estabelecimentos comerciais, até às roupas que cada um
veste, pouco difere na paisagem urbana. O ruído de fundo que outrora
atroava identificando uma zona, e que numa miscelânea de sons
formava uma composição musical, em nome do bem-parecer,
transformou-se em silêncio invasor, em quietude que só a morte
justifica e complementa, que veio para ficar.
Quando,
como hoje aconteceu na Baixa, o nosso espaço audível é invadido
pelo doce melancólico som da gaita do amolador há algo dentro de
nós que acorda de um longo sono letárgico. Numa melodia suave e
repetitiva, sem grandes tonalidades divergentes, a música torna-se transversal e faz-se ouvir-se até longe. Em metáfora, é como se
voltássemos a ser criança e fôssemos envolvidos pela toada terna
do embalar. Há qualquer coisa de místico na função laboriosa
deste mester em desaparecimento. Enquanto percorre as ruas vazias de
gente e cheias de um comércio desmotivado, que se revê na
fotografia, vai soprando na gaita-de-beiços. O homem, amparado na
sua bicicleta com dupla função de transporte e oficina móvel, é a
imagem de um passado trucidado pelo progresso que não se condói com
tudo o que seja artesanal. Como boneco articulado em cenário de
“dejá vù”, o seu retrato não projecta somente a
desertificação do colectivo desirmanado mas também um pouco de nós
que se apagou, que se foi. É evidente que representações anímicas
como esta do amolador só terão significado para os mais velhos.
Porque somos o resultado de um pretérito, os jovens, com a
interpretação do que conhecem e experienciam, decifram o presente à
sua maneira e no âmbito do seu traquejo.
Não
deixa de ser curiosa a forma ambígua como recordamos este símbolo
de um pregresso, de um período ido. Por um lado, pela miséria
associada a meados do século XX, traz-nos à memória um tempo que
não dá grande prazer memorizar, mas, por outro, pela marca do
fenecimento, associamo-lo à vida efémera que se esvai perante os
nossos olhos.
Por
que todo o artista deve ter identidade retratada, falei com ele. Dá
pelo nome de Manuel Lourenço, e vem de Coruche. De tempos-a-tempos,
não sabendo bem a razão, quem sabe a saudade que toca bem fundo, volta a
Coimbra, à Baixa, e mesmo correndo o risco de não dar para o
esforço da pedalada, em mensagem religiosa de entrelinhas, espalha
aos novos e velhos o seu mágico ribombar de sons melódicos.
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