sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A GAITA DO AMOLADOR

(Foto de Aguinalda Simões Amaro)




É Novembro. Pelo manto cinzento esbatido de pouca luz solar filtrada pelas nuvens de algodão que nos cobrem nas alturas, com as folhas a atapetarem o chão, o Outono impõe a sua carga poética. A cidade, como máquina que rodopia em torno de si mesma numa lenta modorra, num conflito permanente e inevitável entre o passado que se impõe, o presente que não satisfaz e um futuro pouco auspicioso mas certo, numa discussão sem acordo, cumpre a sua história. Seja pela época ou não, a verdade é que as ruas estreitas da Baixa, como rio cujo leito foi desviado a montante, estão vazias de gente. Nos poucos transeuntes que passam a calcarem a calçada, na sua maioria, são velhos carregados com o peso da sua existência, que já viveram mais de dois terços, e que agora, no epílogo da sumida vitalidade, como passarinhos em busca de um galho, procuram somente alguém que lhes dê atenção e os escute atentamente. São passageiros do quotidiano prontos a debitarem retalhos de uma vida, aos seus olhos, cheia.
Sem resposta perscrutável, muitas vezes se pergunta para onde foram as pessoas que antigamente se acotovelavam e emolduravam nas principais artérias. Como pincelada que se estendeu e cobriu o céu, a formatação tornou tudo igual. Desde a cor dos edifícios, às montras dos estabelecimentos comerciais, até às roupas que cada um veste, pouco difere na paisagem urbana. O ruído de fundo que outrora atroava identificando uma zona, e que numa miscelânea de sons formava uma composição musical, em nome do bem-parecer, transformou-se em silêncio invasor, em quietude que só a morte justifica e complementa, que veio para ficar.
Quando, como hoje aconteceu na Baixa, o nosso espaço audível é invadido pelo doce melancólico som da gaita do amolador há algo dentro de nós que acorda de um longo sono letárgico. Numa melodia suave e repetitiva, sem grandes tonalidades divergentes, a música torna-se transversal e faz-se ouvir-se até longe. Em metáfora, é como se voltássemos a ser criança e fôssemos envolvidos pela toada terna do embalar. Há qualquer coisa de místico na função laboriosa deste mester em desaparecimento. Enquanto percorre as ruas vazias de gente e cheias de um comércio desmotivado, que se revê na fotografia, vai soprando na gaita-de-beiços. O homem, amparado na sua bicicleta com dupla função de transporte e oficina móvel, é a imagem de um passado trucidado pelo progresso que não se condói com tudo o que seja artesanal. Como boneco articulado em cenário de “dejá vù”, o seu retrato não projecta somente a desertificação do colectivo desirmanado mas também um pouco de nós que se apagou, que se foi. É evidente que representações anímicas como esta do amolador só terão significado para os mais velhos. Porque somos o resultado de um pretérito, os jovens, com a interpretação do que conhecem e experienciam, decifram o presente à sua maneira e no âmbito do seu traquejo.
Não deixa de ser curiosa a forma ambígua como recordamos este símbolo de um pregresso, de um período ido. Por um lado, pela miséria associada a meados do século XX, traz-nos à memória um tempo que não dá grande prazer memorizar, mas, por outro, pela marca do fenecimento, associamo-lo à vida efémera que se esvai perante os nossos olhos.
Por que todo o artista deve ter identidade retratada, falei com ele. Dá pelo nome de Manuel Lourenço, e vem de Coruche. De tempos-a-tempos, não sabendo bem a razão, quem sabe a saudade que toca bem fundo, volta a Coimbra, à Baixa, e mesmo correndo o risco de não dar para o esforço da pedalada, em mensagem religiosa de entrelinhas, espalha aos novos e velhos o seu mágico ribombar de sons melódicos.

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